terça-feira, 31 de dezembro de 2013

"Sina" em glorioso vinil ...

““Enceguerado”. Movido por um desejo irracional, sem fundamentos, indomável. Ímpeto que não conhece bem ou mal – estende a mão a um Zé Ninguém, passa a rasteira noutro amigo, se desculpa e alega que o amor mata diariamente. Numa cidade pacata por natureza, um homem caindo de velho senta na porta de casa todas as tardes para ouvir as histórias trazidas pela brisa. Ela sopra “fuga”. Brisa que amansa e atiça. Uma intelectual se entrega à religião; o garoto troca o futebol pelos acordes envenenados do blues; o papudinho abraça a garrafa; o pescador joga a rede na esperança de estrelas e acordes. É sempre a brisa. Brisa que pariu “Baggios”, “Zorrões”, “Leões”. Sonhadores, almas em busca, vítimas do mapa rasgado na palma da mão direita. A vida é um nó cego, não desata por força da insistência. Somos todos reféns da própria SINA.”

O belíssimo texto acima, sem indicação de autoria, está no também plasticamente belo encarte da versão em vinil de “sina”, segundo disco da banda sergipana de blues/rock The Baggios. Estou com o bolachão, verdinho, em mãos. Depois de apreciar mais uma vez a capa, excelente trabalho da dupla “snapic” tendo o maluco beleza Agapito e a estação de trem desativada de São Christóvão como modelos, repouso-o no prato de meu 3em1 velho de guerra, que tantas alegrias me proporcionou nesses mais de 20 anos de uso ininterrupto, sem nunca precisar de pausa para conserto, e conduzo o braço com a agulha aos primeiros sulcos, que me disseram o seguinte:

Uma batida percussiva ao mesmo tempo tribal e moderna abre “Afro” – e o disco – como que avisando ao ouvinte que a mesma banda estava de volta, mas com vários “algo” a mais. Nem tanto no ritmo, que continua deliciosamente calcado no blues com sotaque brasileiro e, quiçá, nordestino. E SERGIPANO, ouso dizer! Me causou estranheza à primeira ouvida, mas isto é, muitas vezes, um bom sinal. Foi o caso, aqui. Está totalmente assimilada e é, sem sombra de dúvidas, uma belíssima musica.

É seguida por “Blues do aperreio”, mais na linha do que os Baggios vêm desenvolvendo já há mais de uma década como sonoridade. E por “Sem condição”, o primeiro “single” – uma pepita lapidada com esmero à base de riffs de guitarra poderosíssimos acompanhados por uma bateria potente e precisa. Perfeita.

Em “Salomé me disse”, mais um pouco de estranheza: Em ritmo de valsa, Julico desfia mais uma de suas letras sobre perdas amorosas, aqui num clima de “mea culpa”. Se é um pedido de desculpas por algo, fosse eu a Salomé do título, teria chorado ao ouvir. E perdoado, evidentemente.

E então temos “sina”, a música, cuja letra – todas elas, pelo menos aparentemente, autobiográficas e/ou confessionais – emula a de “o azar me consome”: fala das desventuras de quem quer apenas ser honesto num mundo cheio de perfídia e falsidade. Mas sem melancolia ou baixo astral. O clima está mais para o confronto, a persistência. Ele não vai desistir, apesar das coisas não darem certo para ele, em muitos momentos.

Fechando com chave de ouro o lado A – lembrem-se, estou resenhando o vinil! – “Esturra leão” e seus sensacionais arranjos de sopro. Aqui Julico discorre sobre outro tema recorrente em suas letras: o retrato das figuras folclóricas das Terras do Cacique Serigy. “Leão”, segundo me consta – não o conheço – é um personagem real – e fascinante, a julgar pelo que está escrito. Fugiu de Estância – cidade sergipana bastante citada na literatura de Jorge Amado, que costumava passar férias por lá – depois de confessar ter assassinado e enterrado sua amada. Seu pedido de perdão hoje ecoa nos sulcos do vinil, cujo primeiro lado se encerra num “fade” sensacional. Perfeito.

Numa bem sacada noção de continuidade, o lado B começa focando em outro “figura”, “Zorrão”. Também fascinante, deu até vontade de conhecer. A segunda, “Vagabundo arrependido”, é uma espécie de segunda parte de “Salomé me disse”, já que tem praticamente o mesmo ritmo. Gostei. Rebuscado, parece coisa de disco conceitual.

Depois de “De malas prontas” – mais um tema recorrente, a partida, quase sempre triste – o disco se encerra com uma sequencia de três músicas praticamente perfeitas: “Domingo”, com seu delicioso ritmo “roots” arrastado; “Tardes amenas”, com um sensacional arranjo de órgão de Rafael Ramos; e “Descalso”, levado na base da viola e do “slide guitar”. De bônus, uma emocionante homenagem ao Baggio, andarilho da cidade histórica de São Cristóvão, onde Julico, o mentor da parada, ainda reside.

E é isso. Nada mais a declarar sobre esta pequena obra-prima do rock independente – MESMO! – brasileiro. Um chute no saco da mediocridade que impera ao nosso redor.

Quem ainda não conhece está TOTALMENTE por fora ...


por Adelvan

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