segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

dep* Marcelo Déda

O governador de Sergipe, Marcelo Déda, de 53 anos, morreu às 4h45 desta segunda-feira (2) no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde estava internado para tratar de problemas decorrentes de câncer no estômago e no pâncreas. Ele lutava contra a doença havia quatro anos.

Para além das divergências e da decepção com sua atuação à frente do governo do estado, fica, na minha memória, a imagem de um brilhante orador e militante político, que muito me inspirou, por muito tempo, em minhas tomadas de posição no campo ideológico. Foi um dos fundadores e um dos mais combativos quadros do Partido dos Trabalhadores em nosso estado. Eleito Deputado Estadual em 1986 com votação recorde, repetiu o feito em 1994, desta vez disputando o cargo em nível federal. Teve uma atuação impecável em Brasilia, onde exerceu a liderança do partido na Câmara, no enfrentamento do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.

Iniciou a campanha para a prefeitura de Aracaju, em 2000, em último lugar nas pesquisas, e terminou eleito no primeiro turno com votação consagradora. Assumiu ao som da Internacional Socialista. Eu estava lá, na festa da posse. Cantei junto. Ele já havia, na verdade, feito uma tentativa anterior, sem sucesso, em 1985, com o objetivo de firmar o nome do partido no cenário local. Na época, com 25 anos e sem recursos para a campanha, o candidato fez todos os programas eleitorais gratuitos de televisão ao vivo e apenas com a bandeira do PT na parede do cenário, montado no Tribunal Regional Eleitoral (TRE). “A lei me facultava fazer ao vivo, então eu ia cru, pregava uma bandeira com durex e estava pronto o cenário do ‘ao vivo’. Aquilo que era uma desvantagem virou uma vantagem porque me transformei no âncora do programa eleitoral”, relatou o governador de Sergipe em sua página oficial na internet.

Fez uma excelente administração, que mudou a cara da cidade. Foi reeleito em 2004 com 71,38% dos votos válidos. Seu segundo mandato, no entanto, foi contaminado pelo projeto de chegar ao governo do estado. Em 31 de março de 2006 renunciou ao cargo de prefeito de Aracaju, sendo substituído por seu vice, Edvaldo Nogueira, do PCdoB. Conseguindo uma vitória histórica, que simbolizou uma mudança no cenário político sergipano, Marcelo Déda é eleito governador com 52,48% dos votos. Derrotou João Alves Filho, do DEM, ainda no primeiro turno. O feito seria repetido em 2010, contra o mesmo adversário - que hoje, graças ao desgaste do projeto político de centro/esquerda por ele comandado e costurado à base de concessões e alianças com setores conservadores da política estadual e municipal, é o prefeito de Aracaju.

Não deixará, no entanto, uma grande marca, como governador. Apesar da brilhante reformulação das emissoras publicas educativas e dos esforços empreendidos no campo da infraestrutura, com destaque para a recuperação da malha viária do interior do estado; da segurança pública, com o "upgrade" no soldo e o reaparelhamento da polícia; e da saúde, com a construção de dois novos hospitais regionais e de cerca de outros 12 hospitais municipais, com o objetivo de desafogar o atendimento precário do HUSE(Hospital de Urgência de Sergipe) - tem patinado nos resultados. Especialmente nesta área e na da educação, cuja situação continua calamitosa, com constantes enfrentamentos entre o governo e o Sindicato dos professores da rede estadual de ensino. Além disso, apesar da vitória de seu sucessor, Edvaldo Nogueira, na eleição de 2008 para a prefeitura de Aracaju, viu seu projeto político naufragar na cidade, com seu principal adversário se sagrando vencedor no pleito do ano passado.

Avanços pontuais importantes aconteceram e precisam ser valorizados e preservados, pois a conjuntura política é muito adversa, e tudo pode ser posto a perder. As "forças ocultas" são terríveis, e é preciso muito estômago, inteligência e jogo de cintura para se equilibrar neste lamaçal. Nem Déda conseguiu, infelizmente: fez um pacto com o diabo em nome do pragmatismo, e foi traído, como previsto, o que causou um sério revés em seu projeto político. Mas ele tentou. Acredito nisso, sinceramente. E continuaria tentando, não tivesse sido pego numa armadilha do destino.

Fará falta. Como político - apesar dos pesares - e como ser humano. Para atestar a última afirmativa, reproduzo aqui o depoimento de um amigo, Bruno Aragão, que tinha contato pessoal com ele e com sua família:

"Tenho aqui na minha pequena biblioteca particular duas edições de "Cem Anos de Solidão", um dos meus livros preferidos. A primeira é uma bonita e completíssima edição em capa dura comemorativa dos 40 anos da obra-prima de García Márquez, lançada pela Real Academia Española. Um pequeno parágrafo nas últimas páginas do livro, que traz até a árvore genealógica dos Buendía, informa, à guisa de curiosidade, que aquela edição acabou de ser impressa no exato dia em que "Gabo" completava oitenta anos. Luxuosa e algo mística edição.

A outra edição não tem nada de especial em si. É uma brochura pequena e surrada lançada pela Record nos anos 80, com páginas em papel-jornal há muito amareladas e capa em papel-cartão; o tipo de edição popular que um estudante quebrado compraria em um sebo qualquer ou nas banquinhas dos corredores de sua universidade, e que era, senão um "livro de bolso", um "livro de bolsa". É dessa última edição que eu gosto mais.

Lembro que ainda quando iniciava minha própria carreira de universitário quebrado, em alguma tarde ociosa dessas que a gente tem quando é universitário quebrado, eu puxei esse livro, cheio de apetite literário, da estante de minha mãe. Mas antes que eu pudesse mergulhar nas agruras da família Buendía, a mera folha de rosto do livro me lançou de imediato à história da minha própria família. Não era ali a assinatura de um familiar, mas de certo modo era: "Marcelo Déda, abril 1986".

Quando firmada, aquela não era ainda, por questão de meses, a assinatura de um deputado estadual. Não era a assinatura de um deputado federal recordista em votos e atuação coroada de louros. Não era a assinatura do prefeito de candidatura ridicularizada eleito em primeiro turno, nem do governador de adversário "imbatível" eleito, uma e outra vez, em primeiro turno. Era a assinatura de um dos mais próximos amigos de meus pais, ao lado dos quais o dono do livro, àquela altura de seus 26 anos, já tinha vivido muita coisa.

De verdade um dos amigos mais próximos: não bastasse o fato de nossas famílias habitarem juntas, naqueles anos, muito mais passeatas, comícios e plenárias do que nossos respectivos apartamentos, durante algum tempo eles, os apartamentos, ocuparam o mesmo edifício, separados apenas por três ou quatro lances de escada muito comunicantes. Temporadas havia em que minha irmã só voltava para o nosso andar (o sexto) para dormir – quando voltava. No condomínio e na escola em que estudávamos todos juntos, não faltava quem acreditasse que Manuella e Marcella eram irmãs, e a quem perguntasse eu afiançava que sim.

O dono da assinatura, o dono do livro que minha mãe tomou emprestado e jamais devolveu – em troca, a defesa gostaria de frisar, de obras completas da Mafalda também jamais devolvidas – já tinha então emparelhado ombros com meus pais no mesmo DCE da UFS, na coleta de assinaturas para fundar um tal partido de trabalhadores, nos primeiros enfrentamentos pós-ditadura a coronéis mais senhores-de-toda-criação do que aqueles que habitavam Macondo. E começavam a criar seus filhos em meio a suas batalhas políticas e pessoais.

Meus pais se separaram; mais tarde, se separaram do PT. Muita coisa aconteceu desde abril de 1986. Mas a assinatura do livro, a mesma registrada em quase todos os termos de posse que um homem público pode assinar nesta vida, e todos os atos públicos importantes que decorrem disso, esta seguiu igual. E renderia muito estudo a um grafologista de plantão.

É uma assinatura horizontal e dianteira, que tem algo de flecha lançada no ar. Mas muito leve, orgânica, quase feminina. Começa numa linha reta, revela o nome daquele que assina, com uma letra curvilínea, e prossegue em linha reta. Tem algo de ramo de planta se enroscando num fio de arame à disposição e inventando um jeito de florescer. Ou de onda que a brisa marinha desperte fazendo cócegas no mar sereno, abrindo do mar seu sorriso branco, e retorne, sob o afago da mesma brisa, à serenidade primeva. É a assinatura de alguém que quer ser inscrito no curso da História. Mas há nela, me parece, mais lirismo que grandiloquência. É menos a assinatura de um político do que a assinatura de um poeta.

Pensar nisso me faz lembrar que nos dias da minha infância o deputado aclamado pelas massas tinha sempre caráter suficiente para ser, intramuros, um folgazão completo em performances domésticas com filhos ou quase-filhos de tão hipnotizados por sua doçura e carisma; me faz lembrar de como o líder nato deixava sempre a cargo da então esposa a direção do automóvel da família e outras direções, o que não era pouco numa esquerda também ainda muito machista; ou do intenso debate em que um dos melhores oradores que a república brasileira já viu em atuação convenceu minha mãe a assinar para mim as revistas da Turma da Mônica, com um discurso da maior gravidade e aqueles plurais perfeitos de moço de Simão Dias formado no Atheneu Sergipense. Faz lembrar que antes de tudo isso, ele escrevia e filmava. Tanta coisa.

Nunca tive planos de devolver o livro duas vezes surrupiado, crime prescrito e – espero – já bem perdoado. Gosto de tê-lo aqui perto de mim, de ter esta assinatura elegante à mão para uma eventual consulta. Ela vai me inspirar sempre e inspirar aqueles que descenderem de mim sempre, se descendentes eu tiver, como o dono da assinatura irá. É tudo o que eu consigo dizer neste domingo em que meu coração está muito, muito apertado."


(*) Descanse em paz.

A

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