quinta-feira, 18 de junho de 2015

São Leibowitz, ora pro nobis

Os fãs da literatura de ficção científica no Brasil têm todos os motivos do mundo para louvar e incensar – além de COMPRAR os livros, claro  - da editora Aleph, que vem fazendo um belíssimo trabalho nesta seara. Seja relançando clássicos conhecidíssimos, como “2001 – uma odisséia no espaço”, “Eu, robô”, “Neuromancer”, “Laranja Mecânica” (em belíssima edição comemorativa), “O Planeta dos Macacos”, “Duna” – e suas seqüências - e “Andróides sonham com ovelhas elétricas” (AKA Blade Runner), de nomes consagrados como Phillip K. Dick, Isaac Asimov, Frank Herbert e Arthur C. Clark; seja colocando na praça a nova leva de títulos da franquia Star Wars.

Ou resgatando pérolas esquecidas, há muito tempo fora de catálogo, como o obscuro – por aqui - “Um Cântico para Leibowitz”, do norte-americano Walter M. Miller Jr. Publicado originalmente em 1959, no auge da guerra-fria, narra uma rebuscada aventura que se passa num futuro pós-apocalíptico onde a humanidade passa a rejeitar o progresso científico que a levou à autodestruição. Rejeição que a leva a uma nova idade das trevas, mas que não impede o renascimento. Renascimento que, no entanto, a conduz, novamente, à beira da aniquilação, num círculo vicioso que ilustra o ditame de que aqueles que falham em aprender com a história estão condenados a repeti-la.

Entrou numa lista dos dez melhores do gênero que a mundialmente prestigiada revista Time publicou em 2010. Não se trata, no entanto, de um reconhecimento tardio: já na época de sua publicação ganhou o prêmio Hugo como melhor romance, em 1961. Graças, em grande parte, à originalidade da trama, que tem início seiscentos anos depois do chamado Dilúvio de Fogo, no qual a maior parte da população mundial foi dizimada, e é dividida em três partes – Fiat Homo, Fiat Lux e Fiat Voluntas Tua - nas quais Miller desenvolve uma narrativa brilhante que se desenrola ao longo de quase dois milênios, com saltos temporais brutais que, no entanto, não prejudicam a fluidez do texto. São, na verdade, três Histórias distintas que giram em torno de uma abadia na qual monges se dedicam a preservar a “memorabília”, o que restou da devastação nuclear e da “simplificação”, a caça às bruxas que veio a seguir. “Bruxas” encarnadas, no caso, nos doutores detentores do saber, como professores e cientistas. A ordem que ocupa a abadia é, por sinal, consagrada a um destes “doutores”, um tal Leibowitz, que se tornou um mártir – e santo da igreja católica! – ao dar sua vida pela preservação do conhecimento.

“Um Cântico para Leibowitz”  foi o único livro publicado em vida por Walter M. Miller Jr. Reflete sua visão de mundo, marcada por um forte componente religioso – converteu-se ao catolicismo em 1947, aos 25 anos de idade, depois de uma passagem traumática pelo exército durante a Segunda guerra mundial na qual esteve presente em cerca de 53 bombardeios sobre a Itália e os Bálcãs. Num desses ataques foi destruído o Mosteiro Beneditino de Monte Cassino, o mais antigo do mundo ocidental. Sofreu de depressão por décadas e tornou-se patologicamente recluso. Suicidou-se, com tiro de revólver, em 11 de janeiro de 1996, em Daytona Beach, Flórida, poucos dias antes de completar 73 anos. Não havia muito, tinha começado a seqüencia do “Cântico’’, “Saint Leibowitz and the Wild Horse Woman”, que foi terminada pelo “ghost writer” Terry Bisson, a seu pedido.

Uma crítica ácida à perseguição ao conhecimento e à livre expressão, a obra de Miller é aclamada no mundo e merece muito ser redescoberta em nosso país. Inclusive porque os questionamentos por ele levantados continuam atuais – basta olharmos a realidade que nos cerca, com a ascensão do Estado Islâmico no Oriente Médio e a intolerância ideológica e religiosa grassando entre os bits e bytes da tecnologia de ponta ocidental. A Editora Aleph está de parabéns pelo resgate – caprichado, com direito, inclusive, a um glossário de termos  e textos em latim utilizados pelo autor.

Um cântico para Leibowitz / Walter M. Miller Jr. / Aleph/ 400 p. / R$ 49,90 / www.editoraaleph.com.br

quinta-feira, 11 de junho de 2015

ZONS NA ILHA

Gravado na Barra dos Coqueiros num cenário idílico, em meio à exuberante natureza local, “na Ilha”, o novo filme do projeto ZONS, mostra cinco nomes dos mais representativos da cena musical independente sergipana capturados pelas lentes sempre atentas de seus talentosos realizadores, comandados por Victor Balde e Edezio Aragão. Mais um valioso registro da riqueza de ritmos que temos por aqui.

Alex Santana abre – literalmente – os portões da casa “engolindo sapo” com sua MPB de letras ácidas. É seguido pelo punk rock “nervoso” da Renegades of punk e pelo reggae roots “classudo” da Reação, convocando a todos para um “Boicote geral”; na seqüência temos o interessante mix entre a modernidade – via batidas eletrônicas – e a tradição dos ritmos populares cometido pela Coutto Orquestra e um “ijexá” estilizado muito bem interpretado pela perfomática Patricia Polayne e por uma banda afiadíssima, com destaque para o diálogo perfeito entre os teclados de Leo Airplane e a percussão comandada pelo maestro Pedrinho Mendonça e sua “Burundanga”. Por fim, o sensacional rock psicodélico da Plástico Lunar. E um belíssimo plano aéreo que revela, ao fundo, a “mata”, ou o bosque – falar selva acho que seria exagero – de concreto da cidade de Aracaju ...

O resultado foi perfeito, com talento transbordando por todos os lados: da edição, primorosa, à captação de som – Luiz Oliva, coisa nossa – e aos artistas perfomáticos que enriqueceram com sua presença o conjunto da obra. Destaque – sempre! – para o sempre presente Leo Airplane, provavelmente o mais versátil e talentoso músico sergipano.

O filme foi lançado em grande estilo na tela grande, com sessões no Cine Vitória, no centro de Aracaju. Está disponível num pendrive personalizado que pode ser adquirido no site www.zons.art.br

A.


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terça-feira, 9 de junho de 2015

A MORTE DE STÁLIN

A Editora Três Estrelas, selo do grupo Folha de São Paulo, que já havia nos presenteado com a quadrinização da história da criação da primeira bomba atômica, agora lança “A Morte de Stálin”, graphic novel francesa com roteiro de Fabien Nury e desenhos de Thierry Robin. Uma tragicomédia de erros baseada em fatos reais que narra, de forma romantizada, a luta pelo poder iniciada com a morte do tirano que governou a União Soviética com mãos de ferro por cerca de 30 anos. Vale especialmente pelo preciosismo da edição e pelo talento do desenhista, que reproduz pessoas e acontecimentos de forma rebuscada, com atenção para os mínimos detalhes – destaque para as cenas da grandiosa cerimônia de sepultamento do líder, habilmente reproduzidas a partir de imagens de arquivo.

Quanto ao roteiro, começa bem, com uma boa dosagem de fatos reais e fictícios. Utiliza como ponto de partida uma história divertida e inventiva que gira em torno de um suposto telefonema do “generalíssimo” à rádio estatal solicitando a gravação de uma peça clássica que acabara de ser executada ao vivo. O caos se instala, já que a perfomance não havia sido registrada. Tudo teria que ser refeito! Os músicos, apavorados, conseguem se reunir para uma nova execução. Temem, no entanto, que “Koba” perceba o improviso, fruto dos percalços da empreitada. Mas são “salvos pelo gongo”: o Camarada Stalin, “guia genial dos povos”, tem um derrame cerebral, do qual não se recuperará. Naquela mesma noite começam as conspirações para sucedê-lo, encabeçadas por Lavrenti Béria e Nikita Kruschev – muito bem caracterizados, diga-se de passagem. A caracterização dos personagens, reais ou fictícios, é um dos pontos fortes da obra. 

É lamentável, no entanto, que o roteirista, a partir de determinado momento da trama, tenha errado a mão e enveredado por delírios fantasiosos desnecessariamente exagerados e dignos de uma comédia “pastelão” da pior espécie, extrapolando o necessário e justo romanceamento da narrativa para resvalar na falsificação histórica pura e simples. É o caso, por exemplo, da cena em que o filho de Stálin, bêbado, confunde a autópsia com um suposto flagrante do assassinato de seu pai! Ou a transposição para a época retratada de um episódio terrível e dramático que realmente aconteceu, mas nos tempos do czar, o que leva os que fazem uma leitura apressada, sem conhecimento dos fatos, a crer que o governo soviético havia mandado abrir fogo contra a turba descontrolada que invadiu Moscou para prestar suas homenagens.

O autor tenta se explicar, num posfácio: diz que utilizou-se de metáforas para emular a peculiar noção de “verdade” dos soviéticos. As mortes decorrentes dos tumultos gerados pelas trapalhadas burocráticas da "nomenklatura" atordoada com a súbita ausência de seu líder seriam equivalentes, portanto, às que aconteceram durante o "Domingo Sangrento", quando as tropas do czar dispararam covardemente sobre uma multidão desarmada. E o que Vassili, o filho bêbado e fanfarrão, não fez - como atirar nos médicos e convocar a imprensa estrangeira para denunciar um complô para matar seu pai - poderia ter feito - não saberíamos, em todo o caso, pois seus atos seriam certamente encobertos pelo véu da censura.

A mim não convenceu, esta explicação. Achei a abordagem absolutamente desnecessária. Porque, neste caso, a realidade dos fatos que é pública e notória e faz parte da História já é mais do que suficientemente cheia de tragédias e situações farsescas. Desnecessária e inconveniente – pra não dizer desonesta – em se tratando, também, de uma publicação de um selo que se propõe a publicar apenas livros de não ficção, segundo consta no release do site da editora. Em nome de uma suposta liberdade artística e de um perseguido - sem sucesso, a meu ver - tom farsesco - a ironia começa pelo subtítulo, "Uma História Soviética Real - o que temos é uma verdadeira falsificação da história. Típica, aliás, das práticas abomináveis do personagem - e do regime - retratado.

Em todo o caso, é sempre muito bom ver publicadas no Brasil histórias em quadrinhos que fogem do esquema comercial viciado dos super-heróis norteamericanos ...

Título: A Morte de Stálin
Subtítulo: Uma História Soviética Real
Autor: Fabien Nury, Thierry Robin
Tradução: Paulo Werneck
Especificações: Brochura | 152 páginas
ISBN: 978-85-6849-307-6
Dimensões: 310mm x 230mm
Editora: Três Estrelas
Idioma: Português
Peso: 710g



sexta-feira, 5 de junho de 2015

SERES URBANOS

Temos assistido, nos últimos anos, a um precioso resgate da produção alternativa da década de noventa do século passado, com o relançamento, agora em edições mais caprichadas, de trabalhos de gente como Alberto Monteiro, Joacy Jamys, Henry Jaepelt e Law Tissot. Todos publicados, originalmente, em fanzines xerocados e distribuídos de mão em mão ou via correios.

Estes “fanzineiros” eram, na sua maioria, artistas “solo”, encarando de forma solitária a tarefa de produzir, reproduzir e distribuir suas publicações para o Brasil e o mundo. Haviam, no entanto, os que preferiam se unir em grupos, muito antes do termo “coletivo” entrar – e sair – da moda. No nordeste brasileiro destacavam-se dois, ambos dedicados, principalmente, à produção de Histórias em quadrinhos: o “Grupo de risco”, do Maranhão, que editava a revista “Singularplural”, e os “Seres Urbanos”, de Fortaleza, Ceará, que colocaram na praça, entre os anos de 1991 e 1998, uma série de publicações antológicas, em edições caprichadas, muito acima do padrão vigente.

Uma boa parte desta produção está agora compilada no livro que leva o nome do grupo e que foi lançado com o apoio da Secretaria Estadual da Cultura do Governo do Ceará. São 100 páginas de quadrinhos existencialistas impressos de forma impecável em papel de primeira qualidade, apresentando uma produção com uma impressionante diversidade de estilos, além da diagramação e experimentação gráfica primorosa e ousada – numa das páginas, por exemplo, um personagem de quadrinhos é esfaqueado pela perna de um balão de diálogo! Noutra, vemos o resultado de um projeto de arte postal coletiva em que Lupin, um dos “Seres” – que na verdade já produzia antes mesmo da criação do grupo - enviou cópias de uma imagem aleatoriamente para várias partes do mundo solicitando que quem as recebesse enviasse de volta com algum tipo de intervenção. Trabalho de gente extremamente talentosa, que merece muito este resgate ...

O espanto começa pela capa, com um belíssimo desenho de Weaver, e prossegue à medida que vamos avançando nas páginas e mergulhando no universo dos caras, repleto de reflexões e angustias que mesclam de forma perfeita o quotidiano das pessoas mais comuns com o dos “outsiders”, dos “rockers” ao típico cidadão trabalhador, do “underground” ao senhor que se ressente da falta da esposa que preferiu ficar em casa assistindo televisão a acompanha-lo numa trivial ida ao centro da cidade para levar um relógio para consertar. Das tiras tirando sarro do jeito cearense de ser aos tipinhos presentes nas festinhas do submundo, sempre com textos afiados e cheios de grandes sacadas. Angustia e bom humor de mãos dadas. Celebração e decepção, lado a lado.

É o que vemos, também, na grande “autoentrevista” reproduzida no final, onde os caras passam a limpo sua trajetória e explicam – ou não – suas motivações e as circunstancias que fizeram com que as coisas tivessem acontecido da forma que acontecerem – a qualidade das cópias, por exemplo, se explica pela oportunidade oferecida por uma copiadora, que cedeu uma sala para o grupo em troca de parte de sua força de trabalho. Nada “de graça”, portanto. Nada “de mão beijada”: o que conseguiram, foi porque foram atrás – até porque não tinha ninguém nascido em berço de ouro ali, eram todos oriundos da periferia da cidade, que crescia – e cresce! – verticalmente e vertiginosamente.

Para o que não conseguiram, paciência. Ou um grande “foda-se” – com a consciência de que parte dos motivos foi sua própria falta de noção, como da vez em que tentaram vender para uma campanha antidrogas uma “cartilha” totalmente politicamente incorreta que se chamava LSD – Leitura Sobre Drogas. A outra parte vai pra conta da dificuldade natural que uma empreitada desse porte encontra numa cidade “solar”, centrada na indústria do turismo, que tende sempre a dourar a pílula da realidade e fechar os olhos para a diversidade cultural, punindo com o ostracismo aqueles que teimam em ir além do sonho tropical.

Os “Seres Urbanos” são Weaver, Marcílio, Elvis, Lupin, Kaos (in memoriam), Galba e Mychel. Estão na rede, aqui. O livro é fundamental, imperdível, e pode ser adquirido AQUI. AQUI, uma matéria sobre o lançamento, em vídeo. Abaixo, uma pequena seleção pessoal de trechos dos textos, sempre ácidos e certeiros. Só pra que vocês tenham uma idéia do que eu estou falando ...

“Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram”

“Sempre que sinto falta de algum conforto eu me lembro dos golfinhos: se eles possuem um cérebro desenvolvido e passam a vida brincando, então nós humanos estamos fazendo algo errado”

“Estou ansiosa para crescer e sair da escola” “Crescer? A verdade é que sua geração terá que trabalhar em tempo integral e fazer cursos de atualização de computação, um após o outro, durante toda a vida, pra não se tornar um profissional defasado. O único contato de sua geração com o mundo será de forma artificial, através da TV.” “Em compensação, a TV terá milhares de canais.”

“O que nos preocupa no mundo não é ele ser tão grande, e sim a natureza humana ser tão pequena”

“Lili voltou dos states magérrima. “Que são esses xis nas suas mãos, Lili?”, perguntou Rita. – Mulher, agora eu sou straight edge.  – istrei o que ???!! Perguntou Wanda fazendo careta e levando todas a gargalhar. Lili deu um pequeno sorriso sem graça e se sentiu mais uma vez solitária entre suas amigas de infância.”

“Ed acordou e sua esposa havia partido. Vários pedaços dela estavam espalhados pela casa. “Devia ao menos ter deixado meu café feito”

“No início da noite do dia 29 de agosto de 1995, após um dia como outro qualquer de trabalho, Juvêncio Colares parou estático no meio da rua. E ficou lá parado pelo resto de sua vida.”

“Qualquer idiota é capaz de pintar um quadro. Mas só um gênio é capaz de vendê-lo.”

“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém escuta, é preciso sempre recomeçar”

A.


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