terça-feira, 11 de novembro de 2014

Vida e Destino

(#) O romance Vida e Destino, do dissidente soviético Vasily Grossman (1905-1964) é uma das maiores obras-primas do século 20. Grossman usa o cerco de Stalingrado durante a Segunda Guerra Mundial – talvez o momento histórico mais trágico e sanguinário, no qual os homens tiveram seus narizes esfregados na sua própria e mais fétida bestialidade – para tecer uma profunda e monumental ode de amor pela humanidade, pela vida e pela liberdade.

Em 1959, ao terminar de escrever o romance, Grossman submeteu o manuscrito aos censores da KGB. No dia seguinte seu apartamento foi invadido por agentes e sua máquina de escrever foi confiscada. O chefe da censura lhe disse que seu livro era uma ameaça ao comunismo pior do que as bombas atômicas americanas e que um livro assim subversivo não seria publicado nem em 200 anos. Foi só graças ao físico dissidente Andrey Sakharov, que contrabandeou para o ocidente um microfilme da obra, que o livro foi finalmente publicado na Suíça, em 1980. É incompreensível como até agora não tenha sido publicado do Brasil.

NOTA DO BLOG: Não mais! A Editora Alfaguara acaba de lançá-lo, em edição primorosa, com capa dura e traduzido diretamente do russo. Soube por um acaso, numa visita a uma livraria da cidade, semana passada. Na verdade, devo confessar que nunca, pelo menos que eu me lembre, havia ouvido falar deste livro! Estranho, levando-se em conta que sou meio "russófilo", como os leitores deste blog já devem ter percebido, mas de certo modo normal, já que mesmo a primeira versão em português só havia sido lançada em terras lusitanas no ano de 2011. A leitura da sinopse da contracapa muito me interessou e cá estou, procurando tudo a respeito na grande rede. Comprá-lo irei e lerei assim que for possivel.

Um trecho da obra

Como não sou crítico literário e não sou capaz de – com meus comentários – fazer jus à grandeza dessa obra, me limito aqui a traduzir (do inglês) uma de suas mais belas passagens, no afã de divulgar no Brasil esse livro fundamental e na esperança de que algum editor se decida a publicar essa obra definitiva.

“Quando uma pessoa morre, ela sai do reino da liberdade e entra no reino da escravidão. Vida é a liberdade e a morte é a negação gradual da liberdade. A consciência primeiro enfraquece e depois desaparece. Os processos da vida – respiração, metabolismo, circulação – continuam por algum tempo, mas foi feito um movimento irrevocável em direção à escravidão; a consciência e a chama da liberdade se extinguiram.

As estrelas desapareceram do céu noturno. A Via Láctea desvaneceu-se; o sol apagou; Vênus, Marte e Júpiter se extinguiram; milhões de folhas morreram; o vento e os oceanos se dissiparam; as flores perderam sua cores e seus perfumes; o pão sumiu; a água sumiu; até mesmo o próprio ar, o ar às vezes fresco e às vezes abafado sumiu. O universo dentro da pessoa parou de existir. Esse universo é surpreendentemente parecido com o universo que existe fora das pessoas. É surpreendentemente parecido com os universos que continuam a ser refletidos dentro dos crânios de milhões de outras pessoas viventes. Mas ainda mais surpreendente é o fato de que esse universo tinha algo em si que diferenciava o som de seu oceano, o cheiro de suas flores, o farfalhar de suas folhas, os tons de seu granito e a tristeza de seus campos no outono tanto daqueles (sons de oceanos, cheiro de flores, farfalhar de folhas, tons de granito e tristeza de campos de outono) que existem ou existiram dentro das pessoas, como daqueles (sons de oceanos, cheiro de flores, farfalhar de folhas, tons de granito e tristeza de campos de outono) do universo que existe externamente fora das pessoas. O que constitui a liberdade, a alma de uma vida individual, é o seu caráter único. O reflexo do universo na consciência de alguém é a base de seu poder, mas a vida só se transforma em felicidade, só é dotada de liberdade e sentido, quando alguém existe como um mundo inteiro que nunca foi repetido em toda a eternidade. Só então se pode experimentar o prazer da liberdade e da bondade, encontrando nos outros aquilo que já foi encontrado em si mesmo.”

(*) “Vida e Destino”, o magistral romance que condenou o judeu ucraniano Vassili Grossman à inexistência na União Soviética dos anos 60, tem finalmente uma tradução portuguesa. Recriámos a longa caminhada deste manuscrito

Moscovo, 1961

O Inverno chegara ao fim no calendário. Mas nevara ainda durante a noite. Uma mancha de luz matinal, que um rasgão no reposteiro deixava passar, abriu caminho na escuridão do quarto. Arrastou-se devagar pela madeira gasta do chão, subiu pelas cornucópias do papel de parede até ao vidro do mostrador do relógio de pêndulo - a luz pareceu aumentar de tamanho, e depois duplicou-se no espelho por cima da secretária, na outra parede do quarto. Como uma vela que se tivesse acendido.

Com os cobertores caídos para um dos lados da cama, Vassili dormia encolhido de frio.

... um inesperado vapor de água apodrecida subia da margem do Volga. Folhas de papel erguiam-se no ar. Os mortos jaziam na neve entre ervas secas, juncos partidos e ligaduras ensanguentadas. Havia fumo, e bolas de terra caíam sobre a neve suja sem fazerem barulho. Ao longe, sobre a colina que descia para o rio, o céu estava em fogo... Homens vestidos com sobretudos corriam por entre os corpos dos mortos para recolherem as folhas de papel manuscritas, juntavam-nas em braçados, olhavam uns para os outros sem falarem, e enfiavam-nas nas pastas pretas de couro que todos traziam penduradas das mãos. Eram todos iguais. Um silêncio divino pairava sobre a estepe. Não sabiam os berlinenses que nessa manhã passeavam pelo Tiergarten e pela Unter den Linden que chegara o momento, nunca planeado no gabinete do Reichsführer SS Himmler, de a Rússia reagrupar forças na neve das estepes e se aprestar para dar um passo em frente...

Vassili abriu os olhos. Procurou os cobertores no chão, puxou-os devagar, e tapou-se. Tornara a sonhar com Estalinegrado. Tinham passado quase 20 anos. Fixou o olhar na mancha de luz que dançava no espelho. Lembrou-se de que aquele era o seu dia. Olhou para o relógio e saiu da cama. Tinha uma reunião no Politburo, marcada a seu pedido (um favor que lhe fora concedido) pelo primeiro secretário do partido, Nikita Kruschev, que ele conhecera nos longos dias da batalha do Volga. Na cozinha, acendeu o lume no fogão e pôs um caldeirão de água a aquecer. Depois do banho na selha, escanhoou-se e vestiu o fato menos puído.

A neve começara a derreter nas ruas.

Vassili Grossman sacudiu os restos de neve das botas e entrou. Esperou em pé durante mais de uma hora que Mikhail Suslov, um dos ideólogos, o mandasse entrar. Suslov criticara no 20.º Congresso do Partido o culto da personalidade de Estaline. Grossman tinha esperanças, e pensava no que lhe iria dizer para defender a publicação do seu romance "Vida e Destino". Algumas semanas antes, o KGB apreendera todas as cópias do manuscrito na sede do jornal "Znamiya". As noites de Vassili eram assaltadas por pesadelos de que todas as páginas manuscritas já teriam sido destruídas. Ele só já tinha a vida para perder. Para quem acompanhara o Exército Vermelho desde Estalinegrado a Berlim, não era muito.

- Camarada Grossman, o seu livro compara o camarada Estaline a Hitler, por isso...

O judeu Vassili Grossman interrompeu-o. De pé, com o corpo inclinado para a frente e uma mão apoiada na secretária, disse:

- O camarada Suslov conheceu Lenine pessoalmente?, perguntou Vassili, e, sem dar tempo a que o outro respondesse, continuou: Ele foi o primeiro a compreender que apenas o partido e o seu líder exprimem o impulso da nação, e pôs fim à Assembleia Constituinte. Como o físico Maxwell que, destruindo a mecânica de Newton, pensava que estava a consolidá-la, assim Lenine, criando o grande nacionalismo do século XX, também se considerava o criador da Internacional, o que é um paradoxo. Depois, Estaline ensinou-nos também muita coisa, camarada Suslov. Para o Socialismo vencer num país, é preciso acabar com a liberdade camponesa de semear e vender, e o camarada Estaline não hesitou: exterminou milhões de camponeses. Também Hitler viu que havia um grande obstáculo para o movimento alemão nacional-socialista: o judaísmo. E resolveu exterminar milhões de judeus...

- O camarada fala como um inimigo do partido, um inimigo do povo...

- Pense, camarada Suslov! Quem está nos nossos campos de concentração quando não há guerra, quando não há prisioneiros de guerra? Nos nossos campos de detenção, nos tempos de paz, estão os inimigos do partido, os inimigos do povo...

- Não vou perder tempo a refutar a sua tagarelice fedorenta, suja e provocatória!

- Lembra-se, camarada Suslov, dos comunistas alemães que metemos no campo de concentração? Foram os mesmos que o Reichsführer SS Himmler encarcerou no ano de 37! É disso que conto no meu romance. Digo que somos uma forma da mesma essência: o Estado partidário. Quando os olhávamos na cara, aos alemães, olhávamos não só para uma cara odiosa, mas também para um espelho. É nisto que consiste a tragédia da nossa época, Suslov!

Mikhail Suslov levantara-se entretanto, e dera três passos na direcção da porta. Nos seus olhos brilhava uma raiva rejubilante e vitoriosa.

- "Vida e Destino" não irá ser publicado nem daqui a 250 anos, Grossman! Convença-se disso.

- Porque se exalta como um galo?

- Saia!

Estalinegrado, 1943

1. Cerca de dois milhões de mortos. 199 dias de batalha.

Os buracos abertos no gelo sujo do rio Volga pareciam fumegar. Do lado alemão, os soldados de von Paulus, recentemente promovido por Hitler a marechal de campo, coziam a carne dos últimos cavalos, caçavam os poucos cães que sobravam nas ruínas da cidade, e um ou outro pássaro que se aventurava nas estepes. Depois esmagavam piolhos encolhidos nos "bunkers". Quase não tinham munições. O marechal von Paulus e Ritter, o ordenança, queimavam já no fogão os mapas e as pilhas de papel que se acumulavam pelo chão. A resistência era impossível. Faltava apenas o golpe de misericórdia no 6.º Exército alemão. Na rádio de Berlim: "requiem" solene pelos mortos de Estalinegrado.

Nessa noite, o céu sobre a cidade iria iluminar-se de novo. Mas, desta vez, seria pela capitulação do exército alemão. A "capital mundial da guerra" deixara de existir, como Atenas e Roma, passaria agora para as mãos dos guias dos museus, dos historiadores e dos seus aborrecidos estudantes. Uma cidade nova será erguida no lugar da que se chamara, até 1925, Tsaristsyn. (Mais tarde, a partir do ano 1961, terá o nome de Volgogrado. Mas o Presidente Putin tornará a nomeá-la Estalinegrado). Daqui a dez anos, milhares de presos virão para construir uma barragem no Volga, uma potente central hidroeléctrica.

Naquela manhã nebulosa, o Sol erguia-se quase a medo na estepe para lá da cidade. Juncos rangiam no gelo das margens. O vento invernal, que soprava baixo, fazia voar a neve mais seca, que girava formando colunas que se moviam por entre as hastes das ervas espinhosas. Habitantes de uma cidade próxima caminharam na poeira de neve dos caminhos que levavam até Estalinegrado. Traziam repolho fermentado, pão, vodca e tabaco para os poucos civis sobreviventes que se moviam ainda por entre as ruínas mudas e frias dos prédios e das caves.

Vassili Grossman estava lá, e dali acompanharia, como repórter, o Exército Vermelho na sua marcha vitoriosa até Berlim. Demorará dois anos.

Um sentimento absurdo: o vazio. Sentiu-o o soldado Gluchkov, o miliciano Poliakov, o sargento Zadnepruk (ferido por um soldado alemão que não sabia da rendição), sentiu-o o jornalista Grossman. Talvez o tenham sentido todos, mas não o souberam dizer. Tinham saído das profundezas da terra abençoados pela alegria da liberdade.

2. Poderiam chamar-lhe "Berlinweg". Caminho de Berlim. Demorou mais de dois anos para ser percorrido. É espantoso o optimismo das pessoas à beira da morte. Uma esperança louca, impura, até ignóbil.

Os tanques iam enfeitados com ramos de árvores, ramagens de abetos e de bétulas nasciam na blindagem. Alegres vão os soldados que pensam na casa materna, os que cantam, os que comem os últimos restos de pão e toucinho oferecido por camponeses de uma aldeia de que expulsaram os alemães. É o avanço do Exército Vermelho, e não passa um dia em que as metralhadoras alemãs não se façam ouvir. Na neve das florestas polacas, cães perdidos farejam os soldados na sua primeira noite do eterno descanso.

Grossman sabe da morte da mãe, acontecida há dois anos no "pogrom" de Berdichev, a sua cidade natal, na Ucrânia. Genocídio a tiro: 20 mil judeus executados.

No campo de extermínio de Treblinka só há restos: de casas, de corpos, despojos de vidas. Vassili Grossman é o primeiro repórter a chegar a Treblinka. Uma estação ferroviária abandonada no meio de uma floresta deserta. O cheiro a morte. Treblinka I. Treblinka II. "O Inferno de Treblinka", uma reportagem escrita por Vassili Grossman que circulará nos julgamentos de Nuremberga.

Os alemães tinham abandonado e destruído o campo ao som da artilharia russa que se aproximava.

A violência do estado totalitário tornou-se tão grande que deixou de ser um meio, transformou-se num objecto de veneração mística, religiosa, de admiração. A submissão revelada neste período mostrou-se como uma das mais surpreendentes particularidades da natureza humana. A violência extrema dos sistemas sociais totalitários fora capaz de paralisar o espírito humano.

Moscovo, 1974

Vassili Grossman morrera havia dez anos. Cancro do estômago, disseram os médicos.

"Vida e Destino" desapareceu nas mãos sem fundo do KGB. Em tempos de realismo socialista, o Estado sem defeitos despreza tudo o que não tem semelhanças com ele. O realismo socialista é uma espécie de espelho mágico da bruxa má, que à pergunta do partido e do Estado, "Quem é o mais belo e maravilhoso de todos?", responde: "Tu, partido, tu, Governo, tu, Estado, és o mais belo e maravilhoso!" O realismo socialista afirma a exclusividade estatal. Os outros, a exclusividade individual.

- É então por isso que Dostoiévski foi esquecido? As editoras não o reeditam, nem as bibliotecas gostam de o emprestar - disse Semyon Lipkin (que fora o melhor amigo de Vassili Grossman) entre duas baforadas no cachimbo.

- Dostoiévski não cabe na nossa ideologia, é tão simples como isso. É um reaccionário - disse Madiárov. E prosseguiu: - Dostoiévski, mesmo nos seus princípios de Estado, é todo humanismo.

- Mas porque trazem então o Tolstói nas palminhas das mãos, para aqui e para ali, como se fosse membro do partido? Por essa lógica, toda a literatura russa do século XIX não tem qualquer cabimento na ideologia do aparelho do Estado.

- Por uma razão simples: Tolstói tornou poética a ideia de guerra popular, que é o que o nosso Estado neste momento lidera, uma guerra justa contra o capitalismo, os inimigos do povo e do partido.

- Por uma porra de uma coincidência! Mas o Tchékhov é amplamente reconhecido, tanto antes como agora! O resultado de mais um outro mal-entendido!

Enquanto este diálogo acontecia na sala do apartamento nos arredores de Moscovo de Semyon Lipkin, o microfilme do magistral romance "Vida e Destino" - que Lipkin fizera a partir de duas cópias que escaparam à polícia secreta - esperava no fundo falso de uma caixa de biscoitos de gengibre que Vladimir Voinovich o viesse buscar. Mais tarde entregá-lo-ia a uma rede de dissidentes, que incluía o físico Andrei Sakharov, para o passarem para o Ocidente. O que aconteceu ainda nesse ano de 1974. No entanto, o livro só viria a ser publicado seis anos depois, em França.

Os leitores russos teriam de esperar por 1988 e pela Glasnost para o poderem ler em liberdade.

# Revista Trip - por Henrique Goldman
* P - Sem crédito do autor

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