A opção é tentar fazer as mudanças pela via do reformismo, usando o convencimento dentro das regras da legalidade institucional para mudar a correlação de forças no seio da sociedade. Um processo longo e errático, geralmente. Mas isso vale mesmo para os processos revolucionários, já que os embates costumam se estender para além do momento da ruptura em si, com o risco permanente de ser, inclusive, revertido - vide a queda do comunismo soviético.
O PT surgiu no final da década de setenta como uma alternativa à derrota da luta armada e ao raquitismo de horizontes dos que escolheram o embate dentro dos marcos institucionais - na medida do que isso é possível em uma ditadura. Foi uma espécie de "começar de novo" para a esquerda nacional e latinoamericana. No processo, foi aos poucos se acomodando às mudanças conjunturais até se tornar, efetivamente, uma alternativa de poder. Fato que se concretizou com a eleição de Lula à presidência da república em 2002.
Um processo que é dissecado de forma brilhante no pequeno grande livro "História do PT", do professor Lincoln Secco, que foi publicado num charmoso e funcional formato de bolso e que eu praticamente devorei enquanto esperava pelas conexões de minha última viagem a São Paulo. Nele, utilizando-se de recursos didáticos como gráficos e glossários, além de escrever numa linguagem acessivel e com um poder de síntese admirável, o autor discorre sobre os principais fatos contextualizando-os dentro de ciclos previamente demarcados, numa análise equilibrada, embora distante da falácia da completa isenção, virtualmente inatingível. Com direito, inclusive, ao relato de alguns "causos" pitorescos de saborosa degustação ao longo do texto.
Recomendo fortemente a leitura para todos os que se interessam pela conjuntura política do país nos últimos 30 anos.
Abaixo, reproduzo uma série de entrevistas com o autor sobre o livro e seu objeto de estudo:
(***) Entrevista Lincoln Secco - "O PT é a esquerda que o Brasil conseguiu ter"
“O PT ampliou o seu discurso para cima (burguesia) e para baixo e conquistou parte das classes desamparadas. Assim, não podemos negar que Lula e o PT tiveram a capacidade de compreender as contradições sociais de seu tempo. Eles encontraram a forma na qual as contradições podiam se mover. E este é, no fim das contas, o método pelo qual elas são resolvidas segundo disse Marx. Ao menos até o instante em que o leito em que adormecem os conflitos se torne estreito demais para acomodá-los.”
O parágrafo final do livro História do PT (Ateliê Editorial), de Lincoln Secco, professor da matéria desde 2003 na USP, resume bem o tom e os objetivos da obra recém publicada. Como aponta o autor, não há uma história do Partido dos Trabalhadores, nem mesmo uma oficial feita pela agremiação que governa o país desde 2002.
A partir de um olhar que “não se pretende nem oficial nem de um dissidente”, é a complexidade da trajetória de um partido que nasce negando as vanguardas e o Leste Europeu, em meio a diversidade de formas políticas que voltaram a ganhar fôlego com o ocaso da ditadura configura- se com uma inédita convivência de tendências e com o tempo acaba colocando como horizonte organizador da vida partidária não mais estas tendências, mas os parlamentares e o jogo institucional que Lincoln Secco (autor também de Caio Prado Júnio - o sentido da revolução – Boitempo) apresenta e analisa em seu novo livro, e sobre a qual conversou com a revista Caros Amigos na entrevista que segue.
Em primeiro lugar, gostaria que você comentasse o que o motivou a escrever esta história do PT. Nota-se que há preocupação em que o livro seja leve e acessível ao público em geral, para além da academia, gostaria que comentasse essa opção também.
Lincoln Secco - Eu notei que não havia uma história abrangente do PT e que agora era o momento de alguém fazer isso, porque o PT passou por todas as fases possíveis, das greves do ABC paulista ao governo do Brasil. Eu também fui testemunha ocular de algumas coisas, embora na base do partido. Assim, pude ver bagrinhos de ontem tornarem-se os capas pretas de hoje, como se diz no jargão petista. Numa condição assim, eu nem poderia fazer uma obra estritamente acadêmica. Além disso, eu acho que a história do PT pode ser lida de maneira mais equilibrada pelos jovens que nem tinham nascido em 1989, por exemplo, e por um público amplo, politizado, mas nem sempre partidarizado.
Em diversos momentos do começo da história do PT você tem o cuidado de ressaltar o número de vezes em que a palavra “socialismo” é pronunciada, em encontros e documentos, por exemplo. É possível dizer que o PT nasce como um partido socialista?
Ele nasce como espaço em disputa por muitas tendências socialistas ou não. Florestan Fernandes achava que o PT era operário e socialista, ainda em 1990. Ele tinha que dizer isso, porque estava disputando o PT. Eu sempre fui admirador dele no partido e ainda penso que ele foi o intelectual mais importante que o PT teve. Mas hoje, vejo que o PT nasceu com linguagem radical e extraparlamentar até que se tornasse o contrário disso por volta de 1990. Ou seja: o futuro do PT não estava definido em 1980, mas uma vez que o caminho trilhado se completou, nós podemos vê-lo como uma típica trajetória social democrata.
Em seu livro notam-se algumas datas chave na história do PT, como 1978, 1984, 1989, 2002 e 2005. Algum destes momentos pode ser destacado como mais marcante nesta trajetória?
É difícil escolher. Mas eu apontaria dois muito próximos: a chegada de Lula à presidência em 2002 e a crise do PT em 2005, quando pareceu que Lula poderia ter sofrido um impeachment de consequências mortais para o partido.
Você destaca muito o papel, retórico e prático dos núcleos de base na trajetória do PT, especialmente nos anos 1980. A perda de importância dos núcleos é causa ou consequência da crescente priorização da via eleitoral na vida do partido?
Esta é uma excelente questão, porque ambos os processos andaram combinados. Eu diria que um alimenta o outro. Como eu mostro no livro, os núcleos do PT não desapareceram. Eles estão aí ainda hoje. Por outro lado, mesmo no início eles tinham dificuldade de influenciar a vida partidária. A tensão dialética entre o impulso eleitoral e a força militante se resolveu na forma de um partido ao mesmo tempo parlamentar e hegemônico nos movimentos sociais. Mas lembremos que a burocratização não foi só do PT. Não ocorre o mesmo com a CUT e, em menor medida, com a UNE e o MST?
O PT teve, desde seu início, forte ligação com movimentos sociais. Como você avaliaria o peso de movimentos como CUT e MST na história do PT? O partido sempre criticou a tática de movimentos serem utilizados como “correia de transmissão” de ideais partidários, é possível dizer que, com o tempo, o próprio PT acabou atuando desta forma em relação aos movimentos sociais?
O que aconteceu é que os movimentos sociais também se submeteram à lógica da sociedade que os acolheu. Assim como o PT foi se inserindo na Ordem, os movimentos também foram. A situação mudou em 2002. Ali, sim, os movimentos se submeteram, mas não ao PT e sim ao Governo Federal. O próprio PT submeteu-se inteiramente ao governo.
Qual o papel que a derrota nas eleições de 1989 tem na trajetória subsequente do PT? Caso Lula vencesse, seria possível governar o país com as proposições e a conjuntura daquele momento?
Como historiador, eu devo dizer que só em circunstâncias muito específicas me interessa o que deveria ou poderia ter acontecido. Esta é uma delas, porque nos faz pensar nas vias que a esquerda tentou para chegar ao poder na América Latina. É provável que a um hipotético Governo Lula, em 1990, fosse um fracasso do ponto de vista econômico e terminasse desmoralizado pela inflação, embora não por corrupção, como aconteceu com Alan Garcia no Peru. Mas o que importa é o fato de que a derrota foi importantíssima para que o PT escolhesse de vez o caminho da integração à Ordem estabelecida, até mesmo expulsando as tendências que não concordavam com o aggiornamento.
(**) Historiador e professor de História Contemporânea na USP, Lincoln Secco traçou em seu livro “A História do PT” o surgimento e o desenvolvimento do partido que governa o país há dez anos. Ainda filiado ao PT, mas sem exercer nenhum tipo de militância orgânica, o pesquisador analisou o comportamento das tendências internas da legenda e avalia que as forças mais à esquerda tiveram que ser “domesticadas” para que o partido pudesse chegar ao Palácio do Planalto.
Ele aponta que esse processo começou a partir de 1989, quando Lula perdeu o segundo turno das eleições presidenciais para Collor. “Os dirigentes entendiam que o PT precisava se preparar para governar. E isso implicava afastar um pouco tendências radicais no partido”, recorda.
Nesta entrevista ao Sul21 o professor Lincoln Secco fala sobre o surgimento do PT – que diz ter sido bastante vinculado à Igreja – e projeta que o futuro do partido dependerá cada vez mais do sucesso dos programas sociais do governo federal. “Não se sabe até que ponto essa estranha união dos muito pobres sem oposição dos muitos ricos não causará conflitos – especialmente entre os muito ricos. Pode haver um momento em que o cobertor não seja suficiente para todos”, observa.
Sul21 – O que o PT representava na época de seu surgimento, no início dos anos 1980?
Lincoln Secco – Antes de qualquer coisa, o PT foi uma inovação na esquerda brasileira, porque conseguiu combinar diferentes forças políticas que geralmente, na trajetória da esquerda, não conversavam entre si. Trotskistas, stalinistas, ex-militantes da luta armada, militantes da Igreja progressista, sindicalistas… O grande mérito do PT foi, na esquerda brasileira, conseguir ter uma diversidade cultural, social e até ideológica que outros grupos de esquerda nunca conseguiram.
Sul21 – É possível fazer alguma comparação com o processo de fundação da Frente Ampla no Uruguai?
Secco – A Frente Ampla foi uma junção de organizações que pré-existiam. No caso do PT, houve também uma entrada de organizações clandestinas que ainda atuavam no final dos anos 1970, mas a maioria dos militantes que ingressaram no PT eram pessoas sem experiência em organizações prévias. No meu livro “A História do PT”, fiz uma pesquisa que mostra uma diversidade regional muito grande do PT no Brasil. O PT no Ceará, no Maranhão e no Amazonas é totalmente diferente do PT no Rio Grande do Sul, no Paraná ou em São Paulo.
Secco – O partido sempre se preocupou em ter uma coesão ideológica, em termos de programa. Mas o PT nunca conseguiu definir que tipo de socialismo queria. Naquele momento, nos anos 1980, o mais importante era a luta contra a ditadura, a superação de resquícios da ditadura, então isso não foi o mais importante para o partido. O PT começou a se preocupar com definição ideológica após a queda do muro de Berlim e após a derrota de Lula em 1989.
Sul21 – O partido sempre adotou a retórica de ter um programa de “frente popular”. Essa seria a base ideológica do PT? De que forma essa retórica o diferencia do socialismo?
Secco – Hoje o que se pergunta é se o PT não cumpriu o mesmo papel da social-democracia europeia. É um partido que tinha entre suas bases uma classe operária bastante concentrada no ABC paulista. O PT nasce como um partido radical, mas depois modera o discurso e vira um grande partido eleitoral de massas. De fato, há uma semelhança com a social-democracia europeia. É claro que as especificidades brasileiras são muitas. Uma coisa que não havia, salvo engano, em nenhum partido europeu, é a forte presença da Igreja. A Igreja na Europa sempre foi muito mais conservadora. Para o PT, a Igreja não foi um fator de menor importância, porque tinha uma capilaridade social e regional que nenhum partido no Brasil possuía. Em alguns lugares, o PT nasceu dentro da Igreja. No meu livro, mostro que houve cidades em que o PT foi fundado no salão paroquial. Isso é um grande diferencial em relação à social-democracia europeia. Mas a definição estratégica mais importante na história do PT se deu em 1987, quando se define que o centro da estratégia do partido é a atuação dentro da legalidade. Além disso, neste encontro o partido definiu que a eleição do Lula seria o centro de sua estratégia.
Sul21 – Ainda havia uma disputa interna por uma atuação fora da institucionalidade?
Secco – Até então, não se afastava nenhuma proposta de luta armada ou de ruptura com a legalidade. Havia a tendência do Partido Revolucionário Comunista (PRC), que tinha muitos militantes no sul e era o grupo do José Genoíno, por exemplo. Eles defendiam a luta armada em seus documentos internos. Havia outros grupos também.
Sul21 – O partido realizou mudanças e inflexões muito profundas em seu programa para atingir esse objetivo?
Secco - Essa redefinição do partido foi mais importante não tanto devido ao impacto da derrota do Lula em 1989, mas da sua quase vitória. Quando o Lula foi ao segundo turno e teve aquela votação expressiva, foi como se tivesse acendido uma luz amarela no partido dizendo: “Olha, agora o partido pode governar”. Os dirigentes entendiam que o PT precisava se preparar para governar. E isso implicava afastar um pouco tendências radicais no partido. Houve outro aspecto importante, que foi a queda do socialismo real. Isso trouxe um debate interno muito grande no partido. A esquerda do PT até conquistou por alguns anos a direção do partido mas, a partir de 1990, Lula é quem foi se separando um pouco da dinâmica interna do PT. Ele adquiriu uma expressão de marca que permitiu que fizesse as caravanas da cidadania, como se o PT vivesse uma dupla vida. Enquanto a esquerda do PT ficava disputando a ideologia dentro do partido, Lula falava com as massas e era o candidato natural. Lula não tinha naquela época a possibilidade – que depois teve – de domesticar o partido para que se adotasse um programa palatável para chegar ao governo. Lula nunca teve muita paciência para as reuniões internas do partido. Quando participava de reuniões, raramente votava. Ele não se dispunha a dividir o partido, já que estava acima das tendências. Esse processo de disciplinar o partido para que se tivesse um programa palatável foi obra do José Dirceu.
Sul21 – E esse processo começou a ocorrer a partir de 1989?
Secco – Gradualmente, sim, no plano dos programas que eram apresentados nas eleições. Dentro do partido já havia até quem flertasse com o neoliberalismo nos anos 1990. Esquece-se que Antônio Palocci, muito antes de ser ministro da Fazenda, foi prefeito de Ribeirão Preto e privatizou a companhia telefônica local. Isso foi um escândalo dentro do PT e aconteceu também em Londrina. Mas, na avaliação dos dirigentes, o mais importante era a domesticação das tendências internas. Mesmo que elas fossem derrotadas no congresso do partido, ainda conseguiam, às vezes, 40% dos votos.
Sul21 – Quando o partido chegou à presidência da República, houve uma debandada de setores mais à esquerda? O PSOL, por exemplo, surgiu nesse processo.
Secco – Não foi uma debandada, porque boa parte da esquerda do partido permaneceu. Até porque, por mais que houvesse uma crítica a mudanças no discurso e nas práticas que ocorrem em um governo de coalizão, a esquerda do PT também era atraída por cargos, assim como a direita do partido. Todas as tendências do PT estão representadas no governo federal e em governos locais. As correntes possuem certa autonomia interna para fazer um discurso mais radical, mas o que permitiu a Lula domesticá-las foi o processo de eleição direta dentro do partido. O PT não elegia diretamente seus presidentes, mas a partir da eleição do primeiro presidente de forma direta – que foi José Dirceu -, concentrou-se mais poder na figura do presidente e da executiva do partido. As tendências continuaram tendo uma grande participação no diretório nacional e na executiva, mas o presidente do partido adquiriu uma legitimidade muito maior. José Dirceu teve um peso muito grande nesse processo que viabilizou depois a redação da Carta ao Povo Brasileiro.
Sul21 – Hoje em dia, percebe-se que o PT que está no governo e o PT que comanda sindicatos e centrais sindicais nem sempre estão alinhados. É possível falar na existência de dois PTs?
Secco – Recentemente Lula fez uma declaração nesse sentido. Principalmente durante os dois governos de Lula, houve quase uma simbiose entre o PT e o governo. Qualquer crítica interna feita no PT contra alguma medida do governo era vista como algo que poderia ser colocado ao lado da oposição. Nos últimos dez anos, temos visto que é muito difícil para um grupo que esteja mais à esquerda dentro do partido fazer uma crítica ao governo que não se confunda com a oposição da direita. Isso afetava muito o partido. Depois da saída do Lula da presidência, o PT se viu em uma nova situação, porque possui a presidente da República, mas possui também uma figura com um peso simbólico maior fora do governo. Isso pode ter aberto um caminho – ainda que muito limitado – para que o PT comece a apresentar uma agenda fora do governo. Isso não significa ruptura ou oposição com o Palácio do Planalto. Mas, hoje, o PT defende reforma política, democratização dos meios de comunicação e algumas outras propostas um pouco mais radicais do que as bandeiras do governo. Inclusive, às vezes, são propostas criticadas pelo próprio governo.
Sul21 – O PT tem perdido espaços de poder no movimento sindical ligado ao setor público. Partidos como PSOL e PSTU têm conseguido mais espaço em algumas entidades que antes eram dominadas por petistas. Essa é uma tendência que pode se aprofundar?
Secco – No setor público, devido à própria natureza da ocupação, os trabalhadores têm estabilidade e raramente são demitidos em uma greve. Esse setor tende a apoiar políticas mais radicais. Mas, no setor privado, principalmente nas categorias de maior relevância econômica – como metalúrgicos -, o PT ainda mantém sólidas posições ao lado até dos sindicalistas que estão historicamente à sua direita, como a Força Sindical. Mas talvez em médio prazo o PT comece a perder influência nos movimentos sociais e sindicais. Pode ser que isto já esteja ocorrendo no setor público.
Sul21 – O mensalão teve um impacto muito grande no partido?
Secco – Teve. Um dos elementos do discurso do PT, especialmente nos anos 1990, era o da ética na política. O mensalão teve um efeito muito grande, eu diria quase devastador, em 2005, sobre a direção do partido e sobre boa parte dos filiados. Isso foi muito mais importante do que aquela divisão que deu origem ao PSOL – que foi uma divergência específica sobre a reforma da previdência e representou um racha parlamentar. O mensalão atingiu o imaginário da base petista. O PT não reagiu e não reage ao mensalão, não diz nem que reprova os procedimentos que o partido utilizava até 2005, nem que defende seus ex-dirigentes condenados pelo STF. Essa postura política dúbia permite que a oposição mantenha o mensalão na agenda muitos anos após ele ter ocorrido – se é que ocorreu exatamente na forma como a oposição vendia.
Sul21 – Mas houve fortes manifestações do presidente nacional do PT, Rui Falcão, contra o STF e contra a mídia em função do mensalão.
Secco – Ao mesmo tempo em que o presidente Rui Falcão concedia essas declarações, o governador Tarso Genro dava declarações contra José Dirceu e contra os condenados do mensalão. Depois, parece que ele acabou dando um passo atrás. Mas várias personalidades do PT disseram que o partido tinha que se afastar dos condenados e que esse passado apenas atrapalhava. Até mesmo correntes de esquerda no partido tentaram fazer vários atos internos de solidariedade ao José Dirceu e outros condenados. Isso houve em várias cidades no Brasil, mas esses atos não tinham o apoio da direção, as grandes figuras do PT não se faziam presentes. Basta ver que Lula nunca quis dar declarações sobre o mensalão.
Sul21 – Politicamente, como esses dez anos no governo federal afetaram o PT? O leque de alianças amplia-se ainda mais com a entrada do PSD no governo, através do Guilherme Afif, que é vice-governador do Estado comandado pelo principal partido de oposição ao PT.
Secco – A política de alianças aumentou depois da vitória de 2002, mas o PT, nos anos 1990, já começava, em nível local, a fazer alianças que antes eram impensáveis para o partido. Não acho que esse seja o maior problema do PT. Claro que há casos simbólicos que descontentam a militância, como a aliança com Paulo Maluf em São Paulo. Mas o PT sempre dirá aos seus filiados e apoiadores que o problema está no sistema político, que para governar é preciso montar uma ampla coalizão com partidos de centro e de centro-direita. Então o partido vai acumulando uma dívida com sua própria base social e eleitoral ao não impulsionar a reforma política. Não se sabe até que ponto isso não irá desgastar o PT no futuro. O PSDB – em um nível muito menor – passou por algo muito semelhante quando chegou à presidência da República e se aliou ao DEM. Claro que o PT era um partido muito mais à esquerda e com uma origem social diferente. Mas o DEM, de certa forma, foi um peso conservador no governo de Fernando Henrique Cardoso. Dentro do governo havia uma disputa, ainda que tênue, entre desenvolvimentistas e monetaristas. E o DEM sempre foi contra os desenvolvimentistas. Talvez o PMDB esteja cumprindo um papel semelhante no governo Dilma, sendo um peso conservador e impedindo uma agenda progressista que talvez o PT desejasse colocar em prática. Isso pode ser muito preocupante para o PT.
Sul21 – O senhor disse que estudou os diferentes PTs existentes no país. O que o senhor poderia comentar sobre o PT gaúcho?
Secco – Quando comparamos com outros estados brasileiros, percebemos que o PT surge no Rio Grande do Sul com uma força e uma diversidade ideológica que não possui em outros lugares. A presença de trotskistas era muito forte. E também havia grupos regionais ideológicos que só existiam no Rio Grande do Sul. Isso é fruto da polaridade política e ideológica que atravessa a história do Rio Grande do Sul. A médio prazo, o PT gaúcho conseguiu se apropriar da tradição trabalhista da esquerda – uma tradição que nunca se impôs em São Paulo. No Rio Grande do Sul, o PT conviveu com o brizolismo e, com o passar dos anos, o engoliu. Sempre achei que o PT deu certo no sul porque conseguiu se enraizar na história do trabalhismo.
Sul21 – Como o senhor projeta o futuro do partido?
Secco – Como historiador, não costumo fazer previsões. De qualquer forma, acho que a médio prazo o PT vai continuar dependendo do sucesso das políticas sociais do governo federal. Não sabemos qual será o ponto de exaustão dessas políticas. A pobreza no Brasil é um fenômeno tão grande e marcante que as políticas sociais de Lula e Dilma ainda são suficientes para que se mantenha um alto índice de apoio ao PT. O modelo implantado pelo PT traz as camadas sociais que estavam excluídas do consumo para a cidadania e para o consumo. Ao mesmo tempo, mantém uma política econômica com certo apoio dos industriais, para que não haja uma grande oposição dos setores econômicos mais importantes do país. Não se sabe até que ponto essa estranha união dos muito pobres sem oposição dos muitos ricos não causará conflitos – especialmente entre os muito ricos. Pode haver um momento em que o cobertor não seja suficiente para todos. Em momentos de crise econômica, será que o governo irá manter os investimentos na área social?
(*) Daniel Golovaty - Lincoln, na “orelha” do seu livro, Ciro Yoshiyasse afirma: “não exagero quando digo que este livro foi pensado vinte e cinco anos atrás, por um jovem na periferia de São Paulo”. Como foi essa história?
Lincoln Secco – Como boa parte de minha geração, eu despertei para o socialismo no movimento pelas eleições diretas em 1984. Ingressei no PCB por acaso, pois tinha lido o Manifesto Comunista. Eu tinha 15 anos! Mas no ano seguinte já percebi que o PT tinha uma linha muito mais radical e ingressei primeiro na campanha de Florestan Fernandes a deputado constituinte. Florestan incendiava os corações e mentes dos jovens militantes com seus artigos na Folha de São Paulo. Desde então, militei num núcleo do PT na zona leste paulistana e, depois, no núcleo de estudos de O Capital, o qual se reunia no escritório político de Florestan. Mas sempre tive atuação de bagrinho (como se diz no jargão petista). Nunca assumi cargo no partido ou em função dele, embora tivesse sido convidado nos anos de 1990. Quando Lula venceu em 2002, afastei-me da militância “orgânica”.
D.G. – Como militante, “testemunha ocular da historia”, você certamente formou convicções sobre a origem e o significado históricos do PT. Quais delas foram confirmadas ou refutadas pela sua pesquisa?
L.S. – Eu não sei se tinha convicções originais. Eu me guiava muito pelo que o Florestan escrevia ou nos dizia em reuniões e debates. Mas ele era ambíguo às vezes (ao menos aos olhos de um jovem como eu era). Florestan achava que o PT deveria ser um partido marxista, como se pode ler no livro O PT em Movimento. Aliás, eu e alguns companheiros lemos e discutimos os rascunhos deste livro antes da publicação. Por outro lado, apoiou Mário Covas no segundo turno de sua eleição para governador. A esquerda petista, no geral, aceitava que o PT tinha uma cultura anticapitalista, mas não precisava se definir como marxista. Eu fui me inclinando para o centro partidário. Posso dizer, com apoio em cartas que publiquei na imprensa do partido na época, que eu achava que a social-democracia seria o fim do PT. Eu estava errado. Minhas pesquisas me levaram a caracterizar o PT como um típico partido social-democrata bem-sucedido.
D.G. - Como tem sido a recepção do seu livro dentro do PT e fora dele? Ela tem te surpreendido?
L.S. – A única surpresa é a primeira edição ter se esgotado em um mês e meio. Embora as tiragens brasileiras não sejam grandes, é surpreendente que qualquer livro que não tenha o aparato comercial de um best-seller venda tão rápido. É que o tema toca o coração de milhares de pessoas que anonimamente ajudaram a construir o PT. O livro foi muito resenhado. A maioria dos meus comentadores recebeu bem a obra. Curiosamente, as críticas mais acerbas, embora respeitosas, foram publicadas no órgão oficial do PT, a revista Teoria e Debate, da qual eu sou membro do conselho de redação. Os demais aceitaram o propósito do livro, que é o debate político e elogiaram muito, embora com divergências em alguns temas. O que é esperado para um livro que trata do PT. Mas a maioria das divergências reside no fato de eu não ter destacado suficientemente (ou respondido) as críticas que Francisco de Oliveira, Paulo Arantes e outros importantes intelectuais fizeram do Governo Lula. Eu posso dizer que num livro propositadamente sucinto, eu fiz escolhas. Não discuti o quanto Lula manteve da política econômica de Fernando Henrique Cardoso ou o quanto os banqueiros continuaram a ganhar. Eu preferi acentuar o que diferencia Lula de tudo o que veio antes. Bem, o seu governo, apesar de tudo, é fruto da história do PT.
Daniel Golovaty e Alexandre Carrasco – No período de formação do partido, você descreve uma dialética interessante entre isolamento político e fortalecimento social, quando o discurso radical do PT o ajudou a forjar sua identidade de oposição no interior dos movimentos sociais. Qual o papel da esquerda do partido neste processo? E, para alem dele, qual o balanço histórico que você faz da esquerda petista?
L.S. – Embora eu tenha ingressado no PT pela porta da esquerda, nunca achei que ela fosse capaz de dirigir o PT. E isto ficou evidente em dois momentos. Na campanha de 1994 a esquerda deixou-se enganar por uma falsa maioria que não tinha projeto político, só projeto de poder interno. E em 2005, no auge da crise do mensalão, setores da esquerda petista erraram a avaliação da correlação de forças interna e externa e entregaram o comando para o campo majoritário. Foi a única vez em que a esquerda mais radical poderia ter comandado o partido sozinha. Mas eu seria injusto se não reconhecesse os méritos da esquerda petista, a qual eu apoiei na maior parte de minha militância. Ela nunca deu muito valor para a “ética na política”, mas também pouco se envolveu em falcatruas, como alguns membros das correntes majoritárias. E muitas vezes ela impediu que o PT fosse ao centro do espectro político cedo demais. Ela foi vital na decisão de não apoiar o colégio eleitoral, de defender sempre candidatura própria para o PT e impedir alianças com a direita, o que teria descaracterizado o partido.
A.C. – Há passagens muito sugestivas em seu livro sobre a relação entre o PT e a “teoria”. O quanto a teoria fez (ou faz) falta ao PT?
L.S. – A maioria do PT sempre desprezou a teoria. O PT foi muito obreirista porque a teoria que se lhe apresentava era um marxismo sem nenhuma incidência na realidade. E sejamos justos. Nós, que éramos marxistas no PT, não sabíamos o que fazer com temas concretos que desafiavam o partido, como a inflação. Tínhamos boas análises globais, sabíamos avaliar o papel que o Brasil estava assumindo na década neoliberal de 1990, impulsionamos a integração da esquerda no subcontinente latino-americano, entendíamos os contornos gerais das crises econômicas, mas nossa teoria não servia para um partido ao mesmo tempo militante e eleitoral. Ainda assim, o pouco que o PT teve em matéria de formação política deveu-se à pressão de suas alas esquerdistas.
D.G. – A sua militância no partido se deu através da mediação da sua participação em um núcleo, o NEC (Núcleo de Estudos do Capital). Você poderia estabelecer como esta vivência influenciou a formação das suas convicções sobre o PT e a sua perspectiva como historiador do PT?
L.S. – Eu tenho uma memória mais viva do núcleo do PT Cangaíba, onde militei anteriormente. O que é engraçado, pois o NEC foi muito mais importante na minha formação. Você conheceu um pouco das atividades do NEC, por isso preciso tomar cuidado com a resposta (risos). Ele nunca teve importância na disputa interna do PT. Mas continuou vivo até hoje! Um dia, um grande companheiro nosso nos criticou: “Vocês são um núcleo de gourmets!”. E o meu camarada Ciro Seiji, sempre perspicaz, respondeu: “É verdade, mas entre um prato e outro nós sonhamos”. Eu penso que fomos além dos pratos. O núcleo seguia duas diretrizes que eu sempre achei corretas. Que o marxismo no Brasil sempre foi abstrato e daí provinha a dificuldade da esquerda do PT dialogar com a base social do partido. E que nós deveríamos aceitar a direção operária e intervir nos seus debates internos para levá-la a posições marxistas. Mas essa era a esperança de um pequeno grupo quando deveria ser da esquerda partidária. Como historiador, eu tentei ser equidistante, o que você como historiador e psicanalista sabe que é impossível. Se não fizemos mais foi porque sempre recusamos disputar cargos.
D.G. - Em seu livro estão muito bem descritas as fases da burocratização do PT: o esvaziamento dos núcleos, a centralização partidária, a progressiva transformação dos militantes em funcionários a serviço de mandatários instalados no aparelho do Estado (parlamento e governos), a autonomização de Lula e de seu círculo mais próximo do efetivo controle do partido e, por fim, a subordinação do partido ao governo. Para este resultado, o quanto pesaram as circunstâncias históricas e o quanto as decisões políticas dos dirigentes do partido?
L.S. – O curso geral dos acontecimentos condicionou um partido que precisou se profissionalizar para disputar o poder. Mas a direita do partido e quase todos os analistas da imprensa cometem o erro sério de acreditar que se foi assim é porque não podia ser de outro jeito. Delfin Neto, por exemplo, sacralizou a carta ao povo brasileiro e os críticos esquerdistas do PT fizeram o mesmo com intenções opostas. Ora, se o PT não tivesse atrás de si o currículo de contestação social não seria alternativa de governo em 2002. Um partido político é determinado no curto e médio prazo pelas decisões políticas de seus dirigentes. E se as decisões são tomadas em momentos cruciais, de possibilidades de mudança estrutural (mesmo que eles não saibam, e raramente o sabem), elas definem o futuro do partido. Ninguém obrigou alguns dirigentes do PT a comprar respaldo no parlamento. O PT precisava, tinha dívidas colossais, mas no fim das contas, manteve-se vivo depois do escândalo de 2005 mesmo sem aquele tipo de apoio e sem parte dos famosos recursos não contabilizados.
D.G. – Eu pergunto isto por que, apesar de você afirmar na conclusão do livro que “se a tese do aburguesamento da social democracia feita por Michels parece inexorável, para a história nada tinha que ser como foi” – apesar desta profissão de fé de historiador – ao final da leitura a impressão que se tem é que o poder das circunstancias superam em muito o das possibilidades históricas que não se concretizaram. Enfim, apesar de seu livro não ter nada a ver com o que seria uma “historia oficial”, fica-se com a impressão de que, em determinados momentos, desliza-se da crítica a uma sutil justificação através da ênfase nas determinações históricas, como resumem as afirmações: “em 2002, muitos intelectuais, petistas até o último momento anterior à posse, não suportaram o toque da realidade (grifo meu) de um governo que declarava ter que atuar dentro dos limites constitucionais e com alianças políticas indesejadas”. Ou, mais ainda: “(...) não podemos negar que Lula e o PT tiveram a capacidade de compreender as contradições sociais de seu tempo. Elas encontraram a forma na qual podiam se mover. E este é, no fim das contas, o método pelo qual elas são resolvidas segundo disse Marx”.
L.S. – Eu posso aceitar esta crítica. Mas permito-me pensar mais nela. Decerto, o Governo Lula poderia ter assumido rumos mais radicais em alguns temas sem perder a direção política do processo. Mas Lula e seus assessores sabiam disso? O que importa é que não quiseram arriscar. Faltou-lhes coragem, vontade política, esperança? Isso o historiador nunca saberá. Mas sob a direção deles o PT cumpriu boa parte de seu programa estratégico, definido muitos anos antes no V Encontro Nacional. O critério que adotei foi o resultado. Não o de fazer história no futuro anterior, como se o resultado estivesse pré-determinado. Mas o de mostrar o quanto a estratégia adotada se revelou capaz de manter a sobrevivência das tropas em momentos cruciais e, no instante em que o terreno se fez favorável, conquistar a vitória, qualquer sabor que ela viesse a ter. Mas no livro eu mesmo avalio o quanto a vitória é de Pirro, aos olhos da tradição da esquerda brasileira. Para vencer, foi necessário adaptar-se e usar as armas do adversário, legitimando o campo de batalha outrora questionado, embora nunca rejeitado. Muita gente de minha geração lamenta que se nós vencêssemos em 1989 seria diferente. Bem, nós não vencemos. A vitória veio depois. O fruto colhido na juventude teria outro sabor, mas também outros perigos.
D.G. – Qual foi o principal efeito da crise de 2005 sobre o PT?
L.S. – Foi um desastre. Eu acredito que o PT vinha se transformando num partido da Ordem e eleitoreiro há muito tempo, mas aquela crise destruiu sua capacidade militante. Embora o processo seja contraditório, pois a derrocada ética e ideológica do PT coincidiu com o retorno de sua militância ao centro do embate político e até mesmo com uma retomada do discurso socialista. O que de modo nenhum intriga o historiador acostumado aos descompassos entre o que um partido é o que ele diz de si mesmo. Mas alto lá! O PT ainda tem reservas militantes. É o “espírito de Sumaré”, para fazer uma brincadeira com André Singer, que gosta da palavra ”espírito” em suas análises do partido. Num encontro de macro regiões na cidade paulista de Sumaré, em junho de 2011, a base petista revoltou-se contra sua direção e lhe impôs uma derrota.
D.G. – Em seu livro, você defende a tese de que, na crise de 2005, a militância petista, ao contrário de seus dirigentes, salvou o partido. Mas não faltou aí uma etapa fundamental, a da depuração ou refundação do partido? Afinal, milhões de eleitores consignaram ao PT suas esperanças e seu voto por sinceramente acreditar no discurso de que o PT era um partido diferente.
L.S. – A militância que salvou o partido era só a sombra da nova, formada por funcionários pagos. Ela voltou para defender um PT que não existia mais. O PT de sua memória e de seu passado. Com isso, salvou a agremiação que, apesar de tudo, é fruto daquele esforço militante dos anos 1980 e 1990. A depuração foi inviabilizada pela derrota da esquerda no processo eleitoral interno.
A.C. – Você acredita que o episódio do chamado “mensalão” significou, de maneira dramática, a conversão do PT ao tradicional sistema de representação política do Brasil, esterilizando qualquer energia que houvesse no PT (acredito que ainda há) para “reformar” o nosso sistema de representação?
L.S. – Não foi o mensalão que mudou o PT. O PT que se envolveu naquele escândalo já era um partido diferente. Eu concordo com você que o PT ainda tem energias para estimular a renovação do ambiente político em que atua. Isso ficou patente no seu último congresso, realizado em 2011. O partido aprovou limite de mandatos para seus parlamentares, 50% de mulheres na sua direção e quota para jovens. Também isso reflete o passado, o peso da história do PT. Veja, eu não quero mostrar um PT que é igual aos demais partidos. O PT é diferente e só ele podia ter sido o primeiro a eleger à presidência da República um operário e uma mulher.
D.G. – No livro, você atribui a corrupção partidária à nossa tradição clientelista e fisiológica. Mas não seria também necessária uma critica interna à cultura partidária que promoveu e, em parte, até justificou (muitos ainda justificam!) a corrupção?
L.S. – Você tocou num problema delicado para a esquerda e que ultrapassa a questão da corrupção. Eu mesmo ouvi de dirigentes do PT em 2005 que não era errado roubar pelo partido e sim para proveito pessoal. Alguns companheiros da esquerda petista iam além e consideravam que o problema não era o PT usar métodos ilegais, mas sim usá-los para um projeto político tão moderado e pífio. Se nós observarmos bem a história recente do PT, a única pessoa que mereceu desprezo do partido foi o dirigente que ganhou um automóvel. O tesoureiro foi reintegrado porque, afinal, aguentou sozinho nas CPIs e não “entregou” ninguém. Não quero discutir a culpa formal dele. Quem vai decidir é o Supremo Tribunal. Mas, no mínimo, o PT deveria tê-lo condenado definitivamente por ter feito uma série de acordos, empréstimos e ações que quase o destruíram. Se estivéssemos numa guerra, o caso seria para corte marcial por facilitar ao inimigo obtenção de informações sigilosas, ainda que por negligência. Diferente foi o caso de José Dirceu, vítima de um esperado ataque de todos os inimigos do PT. Mas a analogia com a guerra nos leva a aprofundar sua questão. O equívoco do PT foi manter o leninismo só como técnica? Sem o conteúdo histórico que o engendrou? Numa situação de guerra é correto usar todas as artimanhas para vencê-la? E numa democracia? Algumas armas se tornam proibidas, embora o segredo e a arte do engano continuem usuais, pois a representação sempre pressupõe certa apatia ou ignorância por parte do representado. Um grande amigo e mestre me disse que ler O Capital e ignorar Da Guerra, de Clausewitz, é como querer andar com uma perna só. Nós esquecemos que Lenine e todos os grandes líderes comunistas eram clausewitzianos.
A.C. – Sobre a tese de André Singer (As raízes ideológicas do lulismo) que você menciona no livro e, pensando no impasse que parece viver o PT – partido popular ou de dirigentes –, quais os limites que você veria neste arranjo? Se o PT realizar o vaticínio de Lula e permanecer 20 anos no poder, não corre o risco de esgotar o conteúdo do lulismo muito antes de poder evitar se transformar no novo PMDB, centrista, regionalista e conjunturalmente de direita? A História do PT já não é a história do fim do PT?
L.S. – Quando algo começa a interessar um historiador, todo mundo já desconfia que é algo acabado. E de certa forma, é verdade. Um ciclo do PT se fechou. Ele surgiu de movimentos sociais, cultivou um ideário radical, institucionalizou-se e chegou ao poder. Que mais podemos esperar dele senão ações para se perpetuar no governo federal? Convenhamos, o PT nos anos 1980 protagonizou a cena política brasileira fora do poder. Hoje, no poder, ele tende a conservar e não a mudar a sociedade. Quanto ao lulismo, a tese de André Singer também já faz parte da história. E digo isso como elogio. Ele pautou a estratégia eleitoral de 2010. Ele percebeu o que o PT procurava no lugar errado. Ao longo de vinte anos o PT tentou encantar a parte da classe média que não votava nele. Em 2006, Lula encontrou as classes desamparadas. Mas há o risco de considerarmos as camadas mais baixas como desprovidas de ação política. Elas sempre atuaram num nível local (via mutirões e outras formas de solidariedade) e pressionando o Estado, já que a esquerda organizada não tinha vez num país que sempre viveu sob ditaduras. Lula surgiu com a sua desconfiança, mas uma vez no poder e com políticas sociais visíveis, passou a ser reorientado por aquela massa empobrecida. Não foi Lula quem criou a sua nova base social, foi o contrário. O Lulismo foi a forma que uma parte da população excluída da luta sindical e partidária encontrou para impor os seus interesses materiais. E dentro da democracia isso não tem volta. É difícil que a direita consiga seduzir a base lulista. A não ser que o próprio PT se recuse a aprofundar suas políticas redistributivas. O lulismo traz certo conforto material sem instigar conflitos sociais. Mas paradoxalmente o seu limite será determinado pelo quanto a atual estrutura de classes poderá suportar um arranjo desses. Num momento de crise, em que alguém tiver que perder um pouco, o lulismo implode. E o PT poderá escolher (se é que terá isso no seu horizonte) entre enfrentar interesses oligopolistas ou sacrificar sua base social.
D.G. – No seu livro você dialoga com muitos pesquisadores e intérpretes. A grande exceção (perdoe-me insistir neste ponto) parece ser um ex-militante histórico do PT, o já citado Chico de Oliveira. Ele é mencionado apenas uma vez e, mesmo assim, trata-se de uma tese já antiga sobre o neodesenvolvimentismo do PT – que, aliás, ele parece ter descartado em seu livro Ornitorrinco. O que você pensa das teses do Chico de Oliveira sobre a transformação do PT e o lulismo? Eu pergunto isto por que a crítica dele não se confunde com a dos chamados “revolucionários”, que acusam o PT por não ter sido algo que ele nunca se comprometeu a ser. Sobre os mandatos de Lula, Chico de Oliveira diz que teria sido “intensamente reformista no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo. Os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava”. O que você tem a dizer sobre esta avaliação?
L.S. – Eu não ignoro os problemas estruturais do país sob o governo Lula e o quanto ele deixou de resolvê-los. Como historiador eu procurei realçar a novidade do novo ciclo político do PT na forma de partido governista. Mas eu o fiz dentro de meus limites. Não criei uma teoria para explicar o lulismo e nem quis polemizar com grandes intérpretes do Brasil. Como dizia Fernand Braudel, os historiadores têm sempre certa dificuldade de filosofar e acabam por limitar-se a multiplicar os exemplos. Mas o leitor do meu livro verá nas entrelinhas, ou entranhada na própria narrativa, a minha avaliação do lulismo que, no fim das contas, é um petismo ampliado.
D.G. - Uma última questão. No livro você contabilizou a freqüência, nos documentos do PT, da palavra “socialismo”. Apesar de não contabilizada, pela leitura podemos concluir que a palavra “democracia” sempre foi muito utilizada. Mas, e sobre a palavra “república”?
L.S. – Eu usei o número de referências só como um índice (no sentido que a linguística dá a essa palavra). Eu sei que muitos documentos do PT apenas repetiam partes de documentos anteriores. Mesmo assim, não deixa de ser curioso que o socialismo foi desaparecendo do discurso petista depois que Lula ganhou em 2002, reapareceu um pouco em 2005 por causa da crise e também no IV Congresso depois da vitória de Dilma Rousseff, quando muitos acreditaram numa virada à esquerda ou num mandato mais radical do que o de Lula. Respondendo a você como memorialista, eu diria que as palavras mais fortes no PT não eram “socialismo” ou “revolução” e sim “democracia” e “ética” e, mais tarde, “cidadania”. Mas a ética era a ideia que unia a base social petista. Não a militância orgânica, do dia a dia, mas a do simpatizante e do militante em épocas eleitorais. A palavra “república” veio tarde demais, quando o PT já não tinha a mesma riqueza de debate interno, estava no governo e sob acusações, em grande medida injustas, de aparelhar o Estado. Foi uma palavra reativa. Mas isso é só um registro histórico e não afeta em nada a minha análise da história do PT. Eu procurei dar contorno às formas pelas quais as contradições que animavam o partido encontravam para se movimentar. Fiz um ensaio sobre formas, mais do que discussões acerca de conteúdos programáticos ou sobre a evolução dos conceitos. Por isso a escolha de uma síntese. É que outra história seria um pouco idealista. E há muitas análises “marxistas” idealistas! Veja o exemplo de Lula. Ele nunca mudou muito o seu discurso básico ou mudou demais (risos). Mas seguramente suas ações eram mais radicais nos anos de 1980. Qual a razão? Nós a encontraremos nos conceitos que ele reivindicou para si? Em parte sim. Mas fundamentalmente na forma do partido, que era um agregado de militantes, tendências de esquerda e movimentos sociais. O estudioso que lê só resoluções ou a “evolução das frases” pode crer nelas. Cabe ouvir outras fontes, propor outras perguntas e adotar uma abordagem “dialética” (ainda que eu tema um pouco a palavra). Aquelas resoluções, por exemplo, podem ser apenas os ecos longínquos, talvez até invertidos, das lutas de classes no Brasil.
(***) Caros Amigos, via Blog da Editora Boitempo
(**) sul 21 via Luiz Nassif Online
(*) revista fevereiro
A.
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Comunismo utópico ou cientifico é bosta!
ResponderExcluirDiga nao ao PT da Dilma terrorista!
Marx odeia os reformistas, basta ler o Manifesto Comunista e Gotha: Programa do Partido Operario Alemao.