terça-feira, 29 de outubro de 2013

Fantasnor parte um

Sei que um filme realmente me impressionou quando ele desperta meu instinto de colecionador. Ao final da exibição de “Mar Negro”, novo longa-metragem do diretor Rodrigo Aragão, durante o “Fantasnor Parte 1 – Festival de Cinema Fantástico do Nordeste”, queria tê-lo em mãos, numa edição caprichada em DVD, para vê-lo e revê-lo em casa. E mostrar para os amigos. Me surpreendeu, imensamente .

Fui ao festival principalmente para ver, em primeira mão, o corte final de “Zombio 2 – Chimarrão Zombies”, com a presença física, em carne e osso, do legendário Peter Baiestorf, com quem me correspondo desde o início dos anos 1990, mas que não conhecia pessoalmente. Já havia visto, de Aragão, “A Noite do Chupa Cabras”, seu segundo longa. Curti, mas não a ponto de me tornar fã, já que não sou exatamente um aficcionado por filmes de terror “trash”, ou de baixo orçamento. Geralmente tenho mais respeito pela atitude e persistência dos realizadores do que apreço pela obra em si. Mas “Mar Negro” me pegou de surpresa. É excelente como cinema, de um modo geral, e não apenas como filme de gênero. Merece ser visto e aplaudido de pé por todos que entendam a sétima arte, antes de tudo, como uma espécie de magia em que a visão do realizador é transmitida ao público de forma a transportá-lo a um mundo paralelo onde o impossível pode acontecer diante de seus olhos por cerca de noventa minutos. Se, no processo, funcionar como entretenimento da melhor qualidade, como é o caso aqui, melhor ainda.

A história se inicia com uma pescaria inusitada: uma criatura bizarra e indefinida, espécie de “baiacu-sereia”, é capturada pelas redes de dois amigos, primeiras vítimas de uma contaminação misteriosa que logo se espalha pela vila de pescadores onde moram. Lá conhecemos Albino, um pária que vive humilhado pelo patrão, proprietário de um bar à beira-mar que compra uma arraia “mutante” – ou algo do tipo. Albino é apaixonado pela esposa de um dos amigos da cena de abertura. Que, ao voltar para casa, começa a agir de forma estranha e agressiva ...

A narrativa chega ao seu clímax durante a abertura de um bordel comandado por uma “drag Queen” engraçadíssima. À festa comparece uma verdadeira fauna, interpretada por algumas figurinhas carimbadas do underground cinematográfico tupiniquim, dentre eles a “screen Queen” Gisele Ferran, o canibal Peter Baiestorf, Coffin Souza e até nosso conterrâneo Eduardo Cardenas, exímio ilustrador sergipano que é também o responsável pela confecção das páginas de uma espécie de “Necronomicon” local, o livro perdido de Cipriano, responsável pela invocação do mal – “Klaato Barada Nitko”! Lá, entre um deputado pervertido, prostitutas de quinta categoria – ou não - e uma cantora de bolero picareta acompanhadas de um guarda-costas índio mexicano pra lá de casca-grossa, a trama descamba num banho de sangue sem fim que só vai parar na praia, entre zumbis-caranguejo e um gigantesco ser marinho que é uma espécie de toque de mestre, surpreendente em sua concepção e execução, dando à película um clima de fantasia lúdica que muito enriquece o produto final. Genial! Tudo isso regado a boas interpretações de atores competentes - caso dos protagonistas -, ótimas interpretações de atores surpreendentes - caso da drag queen ensandecida dona do "inferninho" - e péssimas intepretações de amadores caricatos assumidos, perfeitos em seus respectivos papéis – como Peter e Gisele, sempre excelentes em sua anti-atuações exageradas e canastronas.

O Livro de Cipriano, desenhado por Eduardo Cardenas
O diretor Rodrigo Aragão se mostrou também um grande orador e contador de “causos” durante a palestra que fez ao final da exibição. Lá explanou sobre sua cara-de-pau quando, ao constatar que não havia verba suficiente para filmar a cena do bordel – e o filme certamente não seria o mesmo sem ela – insinuou que o faria caso os atores que queria concordassem em trabalhar de forma voluntária, sem cachê. Logo teve que improvisar hospedagem e alimentação para um verdadeiro bando de malucos que acorreu ao set para socorrê-lo, vindos inclusive do exterior - do México, mais precisamente. Ou quando, para seu supremo orgulho, teve que se explicar a uma equipe do IBAMA que achou que a baleia encalhada na praia era de verdade. Ou ainda da disputa entre o elenco para decidir quem empunharia uma metralhadora giratória – improvisada a partir de uma parafusadeira - durante a carnificina. Discorreu também sobre a possibilidade, por ele comprovada, de se fazer cinema sem incentivos fiscais, com verbas que nunca ultrapassam os R$ 200 mil, e sem atores conhecidos, e mesmo assim ter suas obras vendidas para os EUA, Holanda, Bélgica, Alemanha e Japão. No Brasil, “Mar Negro” será o primeiro a estrear em circuito comercial, muito em breve. É cruzar os dedos para que chegue aqui, se não via Cinemark – algo praticamente fora de cogitação – pelo menos no alternativo Cine Vitória, do centro.

“Mar Negro” fica ainda mais impressionante quando comparado ao primeiro longa do diretor, “Mangue negro”, que eu vi pela primeira vez também lá, no Fantasnor. Dá pra entender porque se tornou “Cult”: é muito bem feito, especialmente se levarmos em conta o baixíssimo orçamento com o qual foi realizado. Tem, no entanto, um tom demasiadamente sério e um ritmo mais lento, arrastado. Trata-se de uma excelente obra de estréia, mas fica evidentemente ofuscado diante da excelência do que foi visto na última produção – esta, sim, uma pequena obra-prima.

A noite de estréia do Festival foi marcada pela exibição, também em primeira mão, da montagem final de “Zombio 2”, a mais nova infâmia saída da mente doentia de Peter Baiestorf. Num clima totalmente inspirado pelas produções da boca do lixo dos anos 1970 e oitenta, para o qual muito colabora a excelente trilha sonora – que Peter disse pretender lançar em vinil, assim que possível – somos jogados num vendaval insano e blasfemo de sexo e escatologia regada a litros de todo tipo de fluidos e melecas possíveis e imagináveis. O roteiro, dos mais infames, gira em torno de, adivinhem só, mais uma infestação de zumbis. O destaque, no entanto, são as vítimas, variando entre párias sociais, como o mendigo interpretado de forma surpreendentemente competente por Coffin Souza, e desajustados de todo o tipo, como a deliciosa “periguete” vivida pela sempre divertida Gisele Ferran. As “autoridades”, sejam elas “eclesiásticas”, como o pastor fanfarrão, ou “seculares”, como o atabalhoado investigador, são tratadas com o devido desrespeito e retratadas da forma mais caricata possível. No quesito "sacanagem" o menu também é bem servido: não há closes ginecológicos de penetração, evidentemente, pois não se trata de um filme pornô, mas os peitos e bundas e bucetas suculentas aparecem a todo tempo, sem o menor constrangimento. Escrachado, debochado e extremamente divertido. Excelente.

Após a exibição, mais um longo bate-papo com o diretor no qual ele revelou, dentre outras coisas, ter ficado ainda insatisfeito com a quantidade de fluidos mostrada no filme, bem como sua intenção de um dia rodar, aqui mesmo no nordeste, um filme de cangaceiros. Já estou esperando, ansiosamente.

Várias atividades constavam da programação do Fantasnor, como as oficinas de maquiagem, concursos de cosplay e rodadas de RPG. Não pude participar de tudo, mas me diverti bastante com tudo o que vi. Como a mostra competitiva de curtas-metragem, alguns bastante interessantes, como o que se passa em São Luiz do Maranhão, que eu identifiquei pela onipresença do bizarro guaraná cor-de-rosa “Jesus”, e cuja trilha sonora me fez voltar aos tempos em que viajava de caminhão com meu irmão ao som de música brega da época, como a clássica "prometemos não chorar", de Barros de Alencar. Houve também a exibição de uma divertida websérie que parece fazer bastante sucesso, mas eu não conhecia: “Nerd of the Dead”. A produção, muito bem cuidada e realizada, chega ao requinte de contar em seu cast com participações especiais ilustres, como a do comediante Danilo Gentili, interpretando um síndico de prédio “maléfico” que se transforma num churrasqueiro zumbi em uma cena plasticamente impecável. Destaque também para o apetitoso stand de quadrinhos da R2 Oficina de desenho, no qual morri em alguns reais – poucos, porém bem investidos – e para a apresentação despojada e bem humorada conduzida pela nossa queridíssima Rosi Matos.

querendo levar pra casa ...
Na noite de encerramento, apenas uma decepção: entregues os prêmios, o público praticamente ignorou a presença da banda convidada, os Mamutes. Preferiram ficar zanzando pela área externa da Casa Rua da Cultura, batendo papo e/ou exibindo suas fantasias. A galera não parece ser do rock. Ou é isso ou é público do coverama. Se eu fosse da produção, nem me daria ao trabalho de programar atrações musicais na próxima edição ...

Fora isso, foi um verdadeiro marco! Saldo pra lá de positivo.

Que venha a parte dois ...

AQUI, o trailer de "Mar Negro".
AQUI, "Zombio 2".

por Adelvan

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