quinta-feira, 23 de agosto de 2012

1912 - PITANGAS BRAVAS - O Anjo pornográfico

Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa.  Nasci menino, hei de morrer menino.  E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista.  Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.

Nelson Rodrigues.

No Brasil de 1912, se havia uma cidade adormecida, ideal para se viver ou morrer de tédio ou velhice, esta era o Recife em que nasceu Nelson Rodrigues. O cenário podia lembrar Veneza, mas a atmosfera estava mais para a Verona de “Romeu e Julieta”, com seus arranca-rabos entre Capuletos e Montéquios. No dia 23 de agosto daquele ano, por exemplo, enquanto Nelson abria os olhos para a realidade além-útero e se sentia expulso do paraíso materno, a política pernambucana ardia em labaredas e o sangue respingava sobre o rio Capibaribe.

Duas facções terçavam bigodes nas ruas: de um lado, a dos caciques políticos Rosa e Silva e Estácio Coimbra, recém-apeados do poder pelo marechal Hermes da Fonseca, presidente da República; de outro, a do novo governador, o general Emídio Dantas Barreto. E não se tratava de uma guerra entre blocos de sombrinhas e guarda-chuvas, embora o sucesso musical do ano fosse o frevo “Vassourinhas”, uma homenagem a Dantas Barreto. Os partidários das duas facções, muito mais realistas que os reis, competiam em violência, intrigas e golpes baixos — uma maneira suave de dizer, em português claro, que queriam trucidar-se mutuamente.
Com o agravante de que, como em qualquer luta política de província, os inimigos se esbarravam a toda hora no botequim, na barbearia ou no bumba-meu-boi, e o ódio recíproco já chegara ao ponto de alimentar-se da própria bílis. Se se perguntasse a alguém por que a rixa começara, ninguém mais teria a mínima idéia.
Naquele momento eram os homens de Dantas que estavam no poder e detinham a chave do paiol. Mas o outro lado ainda conservava os seus ninhos de armas e, com isso, emboscadas e tiroteios estavam se tomando perigosamente corriqueiros no Recife. Mesmo que fosse apartidário (esqueça; isso era quase impossível), um inocente transeunte que cruzasse a praça da Independência podia ver-se, de repente, apanhado entre dois fogos. E o jornalista Mário Rodrigues, pai de Nelson, podia ser acusado de tudo, menos de apartidário. Ou de inocente.
Um ano antes, em 1911, quando Nelson ainda não tinha sido sequer concebido e Rosa e Silva dava as ordens no Palácio do Campo das Princesas, Mário Rodrigues atravessou a praça em missão política para Dantas Barreto. Na verdade, tal missão consistia prosaicamente em passar um telegrama ao marechal Hermes contra Estácio Coimbra — mas um telegrama de Mário Rodrigues podia fazer mais estragos do que os beijos de Mata Hari a serviço do Kaiser.
Seja como for, Mário Rodrigues estava sozinho e desarmado no meio da praça quase deserta. Ao ver o jornalista de bandeja para uma tocaia que lhes parecia cair do céu, quarenta ou cinqüenta soldados da força estadual de Rosa e Silva, postados nos oitões do “Diário de Pernambuco”, cuspiram suas carabinas contra ele. Centenas de tiros foram disparados — e, incrivelmente, nenhum o atingiu. A pontaria dos cabras era tão horrenda que Mário Rodrigues teve tempo de jogar-se ao chão e esgueirar-se de gatinhas entre os coches e bondes estacionados em greve na praça. Quase levou a breca.
Outro mais sensato teria morrido de susto e se evaporado do Recife enquanto a situação continuasse quente — mas não Mário Rodrigues. Assim que se viu a salvo, deu “bananas” para seus agressores e apenas tomou mais cuidado nos meses seguintes. E, depois da intervenção federal, parte do risco acabou — porque, agora, as forças do Estado tinham de defender Dantas Barreto, novo ocupante do palácio.
Mas os adversários de Mário Rodrigues, na situação ou na oposição, tinham todos os motivos do mundo para querer silenciá-lo ou, no mínimo, quebrar-lhe a perna e alguns dentes. Panfletário impenitente, ele aliava a contundência quase suicida de seu ídolo Edmundo Bittencourt, diretor do novo jornal carioca “Correio da Manhã”, à exuberância condoreira do estilo de Euclides da Cunha em “Os sertões”. Em 1911 Mário colocara toda a sua pesada munição verbal a favor de Dantas Barreto. Escrevia o diabo contra Estácio Coimbra, chamando-o de estafermo para baixo nas páginas do “Jornal da República”, fundado por ele, Mário, com o dinheiro de Dantas. Não satisfeito, candidatara-se a deputado estadual pelo dantismo e fora eleito — e o resultado era o de que, agora, dava duplos motivos para ser adorado pelos correligionários e detestado pelos demais: como jornalista e como político. Era uma lenda viva que muitos queriam ver morta. Sabendo disto, desfilava pela Assembléia Legislativa com um revólver no cinto. Só que, bem ao seu estilo, sem balas.
Quando Mário nasceu, em 1885, já havia outro Rodrigues legendário no Recife: seu próprio pai Francisco Rodrigues, um corretor de terrenos e imóveis, reconhecível à distância pela barba e pelos cabelos vermelhos que lhe valiam o apelido de “Barba de fogo”. Francisco “Barba de fogo” era famoso pela audácia nos negócios e pela facilidade de multiplicar dinheiro, mas principalmente pela sua desvairada militância sexual — uma obsessão que seu casamento com dona Adelaide, fina dama da sociedade local, não perturbava nem um pouco. E nem podia perturbar porque, com pouco tempo de casados, Adelaide convencera-se de que, quando se tratava de atirar-se sobre qualquer mulher que lhe passasse à frente — solteira, casada ou viúva, linda, mais ou menos ou um bucho —, “Barba de fogo” precisava de dez para segurar.
Sem opções outras, Adelaide pesou os prós (pai amantíssimo, marido generoso) e os contras do marido (fauno insaciável), concluiu que ele era exemplar nos aspectos mais importantes e, num gesto de enorme renúncia, liberou-o para ter as amantes que quisesse. Com o que, para inveja dos homens do Recife, “Barba de fogo” tornou-se o único adúltero da cidade com “habeas corpus” fornecido pela própria esposa.
Ninguém consegue calcular o número de filhos que “Barba de fogo” teve fora do casamento, mas os oficiais, com dona Adelaide, foram três: Augusto, Maria e o caçula Mário. Todos podiam ser considerados acima de inteligentes, mas Mário surpreendeu a família ao aprender a ler e a escrever quase na primeira chupeta. A partir daí, sentou-se, cruzou as pernas e tornou-se um leitor compulsivo de jornais. Aos cinco anos, quando criou manualmente um jornalzinho — em tudo parecido com um jornal de verdade —, os parentes não acrescentaram ao fato um mísero ponto de exclamação. Acharam normal. De onde surgiu em Mário a fascinação infantil pelo jornal, não se sabe, mas, de certa forma, esta fascinação (infantil, quero dizer) nunca o abandonou.
Foi então que, em 1891, quando Mário tinha seis anos, Adelaide e “Barba de fogo” tomaram um navio vindo do Rio, que passara pelo Recife a caminho da Europa, e foram para Heidelberg, na Alemanha. Sem data para voltar. As crianças ficaram aos cuidados de um parente de sua mãe, um médico, doutor Coelho Leite. Ninguém sabia direito o que “Barba de fogo” e sua mulher tinham ido fazer na Alemanha, embora sua condição financeira lhes permitisse ir até a China, se lhes desse na telha. Coelho Leite achava que sabia: “Barba de fogo” teria câncer, provavelmente na laringe, e Recife não era a cidade ideal para tratá-lo. Heidelberg, com suas clínicas e hospitais de que falava o “Almanaque Capivarol”, talvez fosse.

“Barba de fogo” nunca voltou ao Recife. Fosse qual fosse sua doença, morreu poucos meses depois, em 1892, e foi enterrado lá mesmo, em Heidelberg. Adelaide não pôde trazer para o Recife o corpo do marido. Em compensação, trouxe uma canastra com uma coleção de pinturas em porcelana, que aprendera a fazer enquanto ele agonizava — e, mais importante, trazia no ventre outro filho de “Barba de fogo”.
Mas este filho não chegaria a nascer. No dia do parto, que seria feito pelo doutor Coelho Leite, a criança se recusou a sair. Mãe e médico lutaram durante horas pela criança, com sofrimentos inenarráveis para Adelaide. Finalmente, quando os músculos de Adelaide desistiram e mãe e filho iam morrer, só havia uma solução: a cesariana, uma cirurgia de que se ouvia falar — algo que parecia do outro mundo — e que nunca fora praticada no Recife. Coelho Leite queria fazê-la, mas, diz a história, nenhum outro médico ou enfermeira da cidade atreveu-se a ajudá-lo.
A cirurgia não foi feita e Adelaide morreu entre gritos desesperados de “Me salvem!” e “Não quero morrer!”.

Enterrados “Barba de fogo” e Adelaide num espaço de meses, três crianças restaram órfãs ao céu do Recife. Coelho Leite ficou como tutor de Augusto, Maria, Mário e do dinheiro supostamente considerável que “Barba de fogo” havia deixado. Mas esse dinheiro só era considerável nas mãos de “Barba de fogo” — ou então, como acreditavam os Rodrigues, o gato comera. Mário era um que tinha certeza. Coelho Leite fornecia-lhes as mesadas aos tostões, alegando que o câncer devorara também o dinheiro de “Barba de fogo” em Heidelberg. Alegou também que, pouco antes de morrer, Adelaide lhe passara uma caderneta que encontrara entre as coisas do marido. Ali estavam registradas todas as mulheres com quem ele tinha ido para a cama — centenas, quase mil, entre profissionais e amadoras. “Barba de fogo” era minucioso: especificava nome, cor dos olhos, tipo de seios etc., e quanto gastara com cada uma delas. O total daria para comprar a Ponte Giratória do Recife. Agora não chegava para comprar um patinete.
Mário Rodrigues nunca ficou muito convencido disso. Quando fez quinze anos em 1900, e já com a barba cerrada demais para continuar esmolando ao tutor, abriu mão de ajuda. Largou os estudos no fim do ginásio e enfrentou o batente. Entre outros biscates, foi pastor de cabras, sendo premiado com uma febre palustre que lhe arruinou o fígado pelo resto dos 44 anos que iria viver.
Mas Mário Rodrigues não era homem para ficar pastoreando cabras, vadias ou não. Era poeta, com uma produção de trovas e sonetos que, se publicados, dariam para vergar prateleiras. A poesia nunca lhe dera um colarinho limpo, mas propiciou-lhe uma intimidade com as palavras que o despachou rapidamente para o endereço certo: o “Jornal de Recife”. Ao estilo da imprensa romântica da virada do século, começou como revisor, mas quem o conhecia sabia que em dois tempos Mário seria promovido à redação. Levou só um tempo: menos de um ano.
Ele era baixo, robusto, compacto e tinha uma invejável fartura de cabelos pretos — inclusive nas sobrancelhas, que podiam ser penteadas com um ancinho. Difícil que uma mulher o chamasse de bonito, mas sua personalidade forte transbordava dos ternos bem cortados e devia fazê-lo parecer um homem atraente. O temperamento era desigual, sujeito a fúrias demolidoras e surtos idem de ternura, ambos assustadores pelo exagero. Sua capacidade de fazer amigos era tão grande quanto a de atrair inimigos. Aos amigos, tudo: era capaz de fechar bares apinhados e pagar para uma multidão. Aos inimigos, justiça — e Mário Rodrigues em campanha não tinha limites para sua agressividade. O fígado em pandarecos não o impedia de tomar cerveja como se o planeta fosse interromper brevemente o plantio de cevada.
Era muito inteligente. Leitor voraz, capaz de memorizar parágrafos inteiros à primeira leitura. Poderia ter sido o mais brilhante debatedor político de seu tempo se não fosse por um incômodo detalhe: era gago. Nos acessos de ira, a capacidade de articulação não acompanhava a velocidade de seu raciocínio — a gagueira tomava as rédeas e isso o deixava ainda mais apoplético. Dai porque, escrevendo, fosse invencível. Não era um homem de ideologia. Como panfletário, a política seria para ele uma questão de fortes simpatias ou antipatias pessoais — algumas tão repentinas que seus adversários veriam nessas transições a cor do dinheiro. Em resposta Mário Rodrigues impunha códigos de honra tão rigorosos para os mortais comuns que devia ser impossível — até para ele — cumpri-los.
Em 1903 conheceu Maria Esther e sinos soaram em seus corações. Se não se casassem morriam. Mário Rodrigues tinha apenas dezoito anos e Maria Esther, quinze, mas casamentos tão precoces eram comuns na “belle époque” nordestina. (Sim, houve uma.) Os dois só não dispararam alegremente para a igreja porque a menina, filha da severa e bem-sucedida família Falcão, encontrou forte oposição doméstica. Seu pai, João Marinho Falcão, funcionário do Governo, não via em Mário Rodrigues o partido ideal para entregar-lhe a filha então única. E a mãe, dona Ana Esther (protestante em último grau), desconfiava de que ele não fosse um homem assim tão temente ao Senhor. (Lembrar que, como filho de Francisco “Barba de fogo’ Mário Rodrigues era suspeito em princípio. Não se sabia de que, mas era.) E havia ainda uma sinuosa campanha das primas de Maria Esther contra esse casamento — embora, como ela descobriria depois, apenas porque elas também haviam ficado de olho no jornalista.
           Mas os Falcão não contavam com os recursos de Mário Rodrigues para vencer aquela resistência. Sua primeira providência foi ler toda a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, e decorar versículos, páginas e livros quase inteiros dos dois Testamentos. E, se houvesse um terceiro, ele o leria também. Como se sua aparente conversão não fosse suficiente para converter a ele a família, Mário Rodrigues passou a acompanhar Maria Esther e seus pais aos cultos da Igreja Batista e a cantar hinos. Em pouco tempo, ele próprio estava no púlpito, pregando com uma veemência de assustar os pecadores — e olhem que era gago. Não chegou a se tornar pastor, mas seus sermões transpiravam uma autoridade e convicção que surpreendiam até a ele.
Estava ganha a parada: um ano depois, em 1904, casou-se com Maria Esther — e, já na lua-de-mel, pareceu natural que as exigências de sustentar uma casa o fossem afastando aos poucos das atividades na igreja. Até que nunca mais apareceu por lá.

Perdeu-se uma vocação evangélica, certamente de ocasião, mas, contra todas as expectativas, Maria Esther ganhou um marido de sonho. Mário Rodrigues exercia suas funções conjugais com uma freqüência de tirar o fôlego. E, em muitos sentidos, foi impecável: retomou os estudos, aprendeu francês, entrou para a Faculdade de Direito do Recife e, em meio a toda a barafunda política, formou-se em 1909 como primeiro da turma — uma turma que tinha, em sua lista de chamada, o futuro escritor e diplomata Gilberto Amado. (O qual já se julgava Gilberto Amado, com todas as pompas a que um Gilberto Amado tinha direito.) Pois Gilberto Amado teve de contentar-se em ser o segundo da turma. Ao primeiro, que foi Mário Rodrigues, coube um prêmio de viagem à Argentina e ao Chile. Viajou como advogado, mas, longe de procurar seus colegas de toga, preferiu a companhia dos jornalistas: visitou jornais e revistas de Buenos Aires e Santiago, muito mais avançados e agressivos que os nossos, aprendeu como funcionavam, trocou idéias e fez amizades. Na volta, iria aplicar tudo isto aqui. E começou logo, ao juntar-se a Dantas Barreto e fundar o “Jornal da República”.
Enquanto conciliava o jornal, a política e os estudos, fez também a sua parte para cumprir o projeto que Maria Esther se impusera como mãe: o de ter doze filhos!
Nesse aspecto, eles foram avassaladores. Uma a uma, as crianças não paravam de nascer: Milton, em 1905; Roberto, em 1906; Mário Filho, em 1908; Stella, em 1910; Nelson, em 1912; Joffre, em 1915. Roído de ciúmes, Mário Rodrigues não acreditava na objetividade profissional dos obstetras ou ginecologistas e só admitia que Maria Esther fizesse seus partos com a doutora Amélia, a única médica do Recife. Se dependesse da doutora, Maria Esther pararia nos seis. Segundo a médica (uma otimista nata), seis filhos eram o que o corpo de uma mulher podia suportar sem perder a graça e a firmeza das linhas. “A partir daí, lavo minhas mãos”, dizia. Mas, nisto, quem não acreditava era Maria Esther — porque, nos anos seguintes, quando se mudassem para o Rio, ela teria outros oito, num deslumbrante total de catorze filhos.

Maria Esther tinha seus motivos para não temer uma gravidez atrás da outra. Numa época em que a medicina ainda guardava estreitas relações com o ofício de barbeiro e muitos partos eram um risco para a mãe, os dela eram suaves como seda e seus seis primeiros filhos tinham saído perfeitos. Seguiam até uma espécie de padrão quanto à cor do cabelo. O primeiro, Milton, era ruivo como o avô “Barba de fogo”; o segundo, Roberto, era moreno como o pai; o terceiro, Mário Filho, era de novo ruivo; pela ordem, Stella deveria ser morena, mas nasceu com cabelo vermelho; Nelson, a seguir, nasceu loiríssimo e assim ficou até quase os dez anos, quando seu cabelo escureceu e ele se incorporou ao time dos morenos; o sexto, Joffre, restabeleceu a linha vermelha. E eram fortes como o diabo: Milton tivera tifo e Nelson, aos dois anos, coqueluche, mas o resto foram “galos” e lombrigas.
No Recife, exceto por ver o marido apostando diariamente a vida em seus editoriais no “Jornal da República”, tudo era ainda ouro sobre azul para Maria Esther. Moravam numa ampla casa alugada na rua Doutor João Ramos, na Capunga, perto do Derby. No verão de 1915, Mário arrendou uma mansão na rua do Sol, em Olinda, a um quarteirão da praia do Farol, onde passaram a temporada. De dia, alugavam cavalos para cavalgar na areia, entre as pitangueiras anãs. A noite, contratavam orquestras para animar suas festas. Casais dançavam quadrilha e se excitavam nos breves instantes em que seus corpos se roçavam. Nelson tinha menos de três anos, mas não se iluda: nada lhe escapava.
Ele ganhara esse nome em homenagem ao almirante inglês Lord Nelson, vencedor da batalha de Trafalgar, em 1805. Seu irmão seguinte, Joffre, também era uma homenagem militar de Mário Rodrigues: ao marechal francês Joseph Joffre, vencedor da batalha do Mame, em 1915. Não se conclua por isso que Mário Rodrigues fosse um militarista, que não era — o que admirava nesses soldados era a audácia de arriscar estratégias suicidas e, afinal, vitoriosas. Na sucessão presidencial de 1910, marcada pela campanha civilista de Rui Barbosa contra o marechal Hermes, ele trabalhara por Rui. Mas agora estava ao lado de um soldado, o general Dantas Barreto, o qual, modestamente, também se considerava um herói militar: voluntário da guerra do Paraguai, veterano da campanha de Canudos e ex-ministro da Guerra do marechal Hermes. Mário Rodrigues via em Dantas uma predestinação guerreira de macho pernambucano e estava disposto a segui-lo até o fim.

           De repente, bomba no governo Dantas Barreto. Um dos favoritos do general, o chefe político Manuel Borba, dono dos votos do interior, rompeu espetacularmente com o líder em 1915 e lançou-se candidato à sua sucessão ao governo de Pernambuco. O dantismo, com Mário Rodrigues à frente, passou a considerá-lo um traidor, não só de Dantas, mas de Pernambuco inteiro — e, desfraldando esse exagero como uma bandeira, partiu para a guerra contra Manuel Borba. Até o ódio a Estácio Coimbra ficou em segundo plano. Mas Manuel Borba não era Estácio Coimbra. Conhecia o dantismo por dentro e concentrou seus ataques nas cabeças coroadas. Entre elas, a de Mário Rodrigues.
Os borbistas revelaram que ele tinha um cargo no governo — de curador de ausentes, responsável por intermediar contratos entre partes ausentes e o poder público — e insinuaram que, nessa função, ele devia receber muitos “presentes”. Mário Rodrigues podia ter-se defendido alegando, por exemplo, que não recebera esse cargo de Dantas, mas de um governador anterior, Herculano Bandeira. O que era verdade. Em vez disso, prestou contas, pediu demissão e, como contaria depois um amigo seu, o escritor Humberto de Campos, “enojado, limpou as mãos no focinho dos inimigos e foi embora para o Rio de Janeiro”.
O chão do Recife estava fugindo sob os pés de Mário Rodrigues. No último ano do governo Dantas, as coisas pareciam pretas para o dantismo e, em conseqüência, para Mário Rodrigues. O “Jornal da República” era o único jornal que ainda apoiava Dantas Barreto. Era natural que, para tirar-lhe o resto de chão, a imprensa inimiga fuzilasse diariamente o “Jornal da República” e seu diretor. Mário Rodrigues gostava de polêmicas, mas aquela era uma guerra de muitos contra um — e perdida, porque Dantas já não tinha com ele a opinião pública. Até a letra do frevo “Vassourinhas” fora mudada. Quando Dantas saísse do palácio, o “Jornal da República” ficaria de cuecas. Pois, desta vez, foi Maria Esther quem enxergou longe. Combinando sua intuição feminina com uma bela percepção do óbvio, começou a insistir com seu marido em que o futuro estava na Capital Federal — o Rio de Janeiro.

Mário Rodrigues tomou o vapor do Lloyd Brasileiro, deixou mulher, filhos e até o resto de seu mandato de deputado no Recife, e veio tentativamente para o Rio em fins de 1915. Seus únicos contatos na cidade eram os jovens Olegário e José Mariano Filho, filhos do herói abolicionista e republicano José Mariano, também de Pernambuco. Eles se davam com Edmundo Bittencourt, o proprietário do “Correio da Manhã”, e acolheram Mário Rodrigues enquanto tentavam que Edmundo o contratasse. Mas, nos primeiros meses, Edmundo não se interessou. Não que Mário Rodrigues parecesse muito preocupado. No Rio, uma cidade nova em folha depois da gigantesca reurbanização realizada pelo pref eito Pereira Passos, ele sentia no ar a rósea proximidade do verdadeiro poder e o perfume (nem tão próximo assim) das mulheres cariocas — as quais, como escreveu depois, andavam pelas ruas “esmagando almas”.
Mas a situação que deixara para trás, no Recife, não era tão rósea ou perfumada. O inimigo Manuel Borba vencera as eleições, o dantismo estava miseravelmente por baixo e seu irmão Augusto escreveu-lhe uma carta furibunda. Que voltasse imediatamente para o Recife, reassumisse o mandato e combatesse Manuel Borba com todos os dentes. Augusto tinha ascendência sobre Mário. Poucos anos mais velho, fora o seu apoio contra as sovinices do tutor Coelho Leite depois da morte de seus pais. O próprio Augusto, com grande tenacidade, formara-se em odontologia, mas torrava tudo o que ganhava em obras de arte cujo valor ninguém sabia ao certo.
Assim, Mário Rodrigues tomou o vapor de volta para o Recife e, em fevereiro de 1916, retomou o seu lugar na Assembléia pernambucana. Mas as coisas agora eram diferentes. Seu líder Dantas Barreto passara por cima de todos os cadáveres de 1911 e aliara-se ao ex-arquiinimigo Estácio Coimbra. O “Jornal da República” tornara-se o arauto dessa aliança. Mário Rodrigues sentiu-se pessoalmente traído. Não tinha como combater Manuel Borba naquela situação. Além do mais, Maria Esther não se conformava com a sua volta ao Recife — para ela uma cidade sinônima de instabilidade e incerteza. Obrigou-o a voltar para o Rio. Quando estivesse instalado e com emprego, mandasse-a chamar que ela seguiria com as crianças. E, então, Mário Rodrigues tomou mais uma vez o vapor para a capital. Ainda não sabia, mas deixara Maria Esther grávida de novo.
No Rio, desta vez, as coisas prometiam dar certo. José Mariano Filho conseguiu-lhe o emprego com Edmundo Bittencourt e Mário Rodrigues tornou-se redator parlamentar do “Correio da Manhã”. Isto significava cobrir o Congresso e tornar-se íntimo das qualidades e defeitos dos políticos nacionais. Qualidades e defeitos que, aliás, se revelavam muito menos no Palácio Monroe, onde funcionava o Senado, do que no cabaré “Assyrio”, ali ao lado, onde os políticos, juntamente com diplomatas e banqueiros, jantavam lagostas com champanhe entre belas mulheres que dançavam o “one step”.
Como se tivesse bicho-carpinteiro, Mário Rodrigues não se limitou ao trabalho no “Correio da Manhã”. Por fora, passou a mandar colaborações políticas para o “Jornal de Recife”. Um desses artigos foi que o salvou quando, poucos meses depois de contratado pelo “Correio da Manhã”, ele se desentendeu com o alagoano Costa Rego, poderoso secretário do jornal e braço direito de Edmundo Bittencourt. Costa Rego demitiu-o — e no pior momento possível: Mário acabara de receber um telegrama de Maria Esther informando-o de que vendera tudo no Recife e que estava embarcando com os filhos para o Rio.
Mário Rodrigues estava hospedado na casa de Olegário Mariano e de sua mulher Maria Clara em Botafogo. Sozinho no Rio, aquele era um arranjo conveniente para ele, sem ser um estorvo para Olegário e Maria Clara. Mas onde se instalar de repente com a mulher, seis filhos (um de colo, Joffre) e outro a caminho, como agora ele sabia? E, o que era pior, dramaticamente desempregado. Esta era a situação naquele julho de 1916 quando Mário Rodrigues foi com Olegário ao Cais Pharoux, na praça Quinze, esperar o vapor do Lloyd que trazia sua família.
Contra a vontade de seu cunhado Augusto, que a chamara de louca, Maria Esther vendera móveis e jóias para comprar as passagens e sustentar a si e as crianças durante a viagem — seis ou sete dias no mar, costeando o litoral e parando para despejar e recolher gente em Maceió, Aracaju, Salvador, ilhéus, Vitória e, finalmente, Rio. Entre refeições e gorjetas no navio, gastara o resto do dinheiro e chegara aqui sem um níquel. Mas Olegário Mariano foi magnífico. Acolheu todo mundo em sua casa, cama e mesa incluídas, desde que Mário Rodrigues não demorasse a tomar providências para empregar-se de novo e instalar-se em algum lugar. E bom notar que Olegário, com um ou dois livros publicados, ainda não era o “poeta das cigarras” — que só se tornaria em 1920 com o sucesso de seu poema “As últimas cigarras” — e muito menos fora eleito o “príncipe dos poetas brasileiros”, o que só viria a acontecer em 1926. Tinha seus recursos, mas não o suficiente para incorporar, por muito tempo, oito bocas pernambucanas à sua mesa.
Foi quando o acaso interferiu para envernizar a imagem de Mário Rodrigues junto a Edmundo Bittencourt e fazer com que ele fosse readmitido no “Correio da Manhã”. Um desses acasos tão felizes que fazem suspeitar de caso pensado. Uma de suas colaborações para o “Jornal de Recife” intitulava-se “A rapsódia de um panfletário” e era uma ode a Edmundo. Num trecho da matéria, reportando-se a antigas campanhas jornalísticas do ex-patrão, Mário Rodrigues escrevia: “Os artigos desse bravo, loucamente bravo nos seus impulsos de repúblico e nas suas revoltas de homem de bem, logo ribombaram como trovões contra a pederneira, para acordar a sociedade pusilânime, suicida num atascal de vilipêndio”. (Euclides da Cunha faria melhor?) E mais adiante: “A homens desse quilate não farei nunca a injúria de um cumprimento banal”.
José Mariano Filho fez com que o artigo de Mário Rodrigues chegasse ao conhecimento de Edmundo, e as portas do “Correio da Manhã” lhe foram abertas de novo. Reincorporado às suas funções de redator parlamentar, Mário Rodrigues finalmente pôs-se em campo em busca de uma casa para a familia. Encontrou-a na Aldeia Campista, um simpático arrabalde residencial espremido entre o Andaraí, a Tijuca, o Maracanã e Vila Isabel, na Zona Norte. Não era chique como as Laranjeiras, mas era o que ele podia pagar. Alugou-a, a 120 mil réis por mês, com o aval dos Mariano. Com vales do “Correio” e empréstimos de Olegário, comprou os tarecos essenciais para mobiliá-la. Um mês depois que a mulher e os filhos haviam desembarcado no Cais Pharoux, Mário Rodrigues pôs todo mundo num carro de praça em Botafogo.
Ele foi na frente com o chofer. Nos dois bancos de trás do velho “Hudson” de sete lugares (um banco de frente para o outro), viajaram Joffre no colo de Maria Esther, Nelson no de Milton e mais Stella, Mário Filho e Roberto. Uma hora depois, o carro chegou à Aldeia Campista e estacionou na esquina da rua Alegre com a Santa Luisa, ao lado de uma farmácia. Da janela, os vizinhos repararam no casal e na escadinha de filhos desembarcando e desaparecendo pela porta do nº 135 da rua Alegre.
O gramofone da casa ao lado tocava um big sucesso da época: a valsa da opereta “O conde de Luxemburgo”, de Franz Lehar.

INTRODUÇÃO

Esta é uma biografia de Nelson Rodrigues, não um estudo crítico. Aqui se encontrará onde, quando, como e por que Nelson escreveu todas as suas peças, romances, contos e crônicas, mas não espere “análises” ou “interpretações”. O que se conta em “O anjo pornográfico” é a espantosa vida de um homem — um escritor a quem uma espécie de imã demoníaco (o acaso, o destino, o que for) estava sempre arrastando para uma realidade ainda mais dramática do que a que ele punha sobre o papel.
Se a narrativa de “O anjo pornográfico” lembra às vezes um romance é porque não há outra maneira de contar a história de Nelson Rodrigues e de sua família. Ela é mais trágica e rocambolesca do que qualquer uma de suas histórias, e tão fascinante quanto. ~ quase inacreditável que o que se vai ler aconteceu de verdade no espaço de uma única vida. (Daí por que quando Nelson morreu em 1980, aos 68 anos, muitos achassem que ele era séculos mais velho.)
Esta não é também uma biografia crítica, no sentido de que, quando Nelson escrever, por exemplo, “Vestido de noiva”, irei interromper a história para teorizar sobre o significado profundo dessa peça ou qualquer outra. (Para isso, os interessados devem dirigir-se aos definitivos prefácios de Sábato Magaldi, que iluminam os quatro volumes do “Teatro completo” de Nelson Rodrigues, vide bibliografia.) No caso de “Vestido de noiva” (e das outras peças), o que eu queria saber era o que aconteceu antes, durante e depois da montagem, na platéia, no palco, nos bastidores e como isso se refletiu na vida de Nelson.
Mesmo porque o teatro nem sempre foi o palco principal de Nelson Rodrigues. Talvez nunca o tenha sido. Esse, se houve um, foi o jornal. Pode ter sido também a rua (ou a própria cidade do Rio de Janeiro), embora poucos brasileiros, exceto datilógrafos profissionais, tenham passado tantas horas atrás de uma máquina de escrever. (Nelson “escreveu” até durante os delírios provocados por insuficiência respiratória.)
Apesar de sua fenomenal produção, o único nicho em que ele passou a ser unanimemente aceito (e, mesmo assim, de uns tempos para cá) é o do teatro. Poucos sabem que o restante dessa produção, esgotado há décadas, é tão genial quanto seu teatro. (E os que sabem não se conformam com que o mundo não saiba.) A reabilitação está próxima, com sua publicação pela Companhia das Letras.
Durante muitos anos, Nelson Rodrigues carregou a fama de “tarado”. Em seus anos finais, a de “reacionário”. Ninguém foi mais perseguido: a direita, a esquerda, a censura, os críticos, os católicos (de todas as tinturas) e, muitas vezes, as platéias — todos, em alguma época, viram nele o anjo do mal, um câncer a ser extirpado da sociedade brasileira. E, olhe, quase conseguiram.
Mas, ao mesmo tempo em que queriam “caçá-lo a pauladas, como a uma ratazana prenhe”, havia também muitos para quem parecia impossível admirar Nelson Rodrigues o suficiente. Mesmo os seus piores inimigos nunca lhe negaram o talento — e não foram poucos os que o chamaram de gênio. Há quem arrisque até explicações espíritas para certos lampejos de Nelson. Para alguns, era um santo; para outros, um canalha; para todos, sempre, uma surpresa ambulante. Mas, como se verá, ninguém o conheceu direito.

por Ruy Castro

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