terça-feira, 22 de maio de 2012

O Evangelho segundo Jesus Cristo

Já que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que foste instruído.
Lucas, 1, 1-4

Quod scripsi, scripsi.
Pilatos

O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos-soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer, duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de imitação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível.

A noite ainda tem muito para durar. A candeia de azeite, dependurada de um prego ao lado da porta, está acesa, mas a chama, como uma pequena amêndoa luminosa pairando, mal consegue, trémula, instável, suster a massa escura que a rodeia e enche de cima a baixo a casa, até aos últimos recantos, lá onde as trevas, de tão espessas, parecem ter-se tornado sólidas. José acordou em sobressalto, como se alguém, bruscamente, o tivesse sacudido pelo ombro, mas teria sido ilusão de um sonho logo desvanecido, que nesta casa só ele vive, e a mulher, que não se mexeu, e dorme. Não é seu costume despertar assim a meio da noite, em geral não acorda antes de a larga frincha da porta começar a emergir do escuro, cinzenta e fria. Inúmeras vezes pensara que deveria tapá-la, nada mais fácil para um carpinteiro, ajustar e pregar uma simples régua de madeira que sobrasse duma obra, porém, a tal ponto se tinha habituado a encontrar na sua frente, mal abria os olhos, aquela vara vertical de luz, anunciadora do dia, que acabara por imaginar, sem ligar ao absurdo da ideia, que, faltando ela, poderia não ser capaz de sair das trevas do sono, as do seu corpo e as do mundo. A frincha da porta fazia parte da casa, como as paredes ou o tecto, como o forno ou o chão de terra apisoada. Em voz baixa, para não acordar a mulher, que continuava a dormir, pronunciou a primeira bênção do dia, aquela que sempre deve ser dita quando se regressa do misterioso país do sono, Graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que pelo poder da tua misericórdia, assim me restituis, viva e constante, a minha alma. Talvez por não se encontrar igualmente desperto em cada um dos seus cinco sentidos, se é que, então, nesta época de que vimos falando, não estavam as pessoas ainda a aprender alguns deles ou, pelo contrário, a perder outros que hoje nos seriam úteis, José olhava-se a si mesmo como se fosse acompanhando, a distância, a lenta ocupação do seu corpo por uma alma que aos poucos estivesse regressando, igual a fios de água que, avançando sinuosos pelos caminhos das regueiras, penetrassem a terra até às mais fundas raízes, transportando a seiva, depois, pelo interior dos caules e das folhas. E por ver quão trabalhoso era este regresso, olhando a mulher, a seu lado, teve um pensamento que o perturbou, que ela, ali adormecida, era verdadeiramente um corpo sem alma, que a alma não está presente no corpo que dorme, ou então não faz sentido que agradeçamos todos os dias a Deus por todos os dias no-la restituir quando acordamos, e nesta altura uma voz dentro de si perguntou, O que é que em nós sonha o que sonhamos, Porventura os sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo, pensou a seguir, e isto era uma resposta. Maria moveu-se, acaso a alma dela estaria ali por perto, já dentro de casa, mas no fim não despertou, apenas andaria em afãs de sonho, e, tendo soltado um suspiro fundo, entrecortado como um soluço, chegou-se para o marido, num movimento sinuoso, porém inconsciente, que jamais ousaria quando acordada. José puxou o lençol grosso e áspero para os ombros e aconchegou melhor o corpo na esteira, sem se afastar. Sentiu que o calor da mulher, carregado de odores, como de uma arca fechada onde tivessem secado ervas, lhe ia penetrando pouco a pouco o tecido da túnica, juntando-se ao calor do seu próprio corpo. Depois, deixando descer devagar as pálpebras, esquecido já de pensamentos, desprendido da alma, abandonou-se ao sono que voltava.

Só tornou a acordar quando o galo cantou. A frincha da porta deixava passar uma cor grisalha e imprecisa, de aguada suja. O tempo, usando de paciência, contentara-se com esperar que se cansassem as forças da noite e agora estava a preparar o campo para a manhã chegar ao mundo, como ontem e sempre, em verdade não estamos naqueles dias fabulosos em que o sol, a quem já tanto devíamos, levou a sua benevolência ao ponto de deter, sobre Gabaon, a sua viagem, assim dando a Josué tempo de vencer, com todos os vagares, os cinco reis que lhe cercavam a cidade. José sentou-se na esteira, afastou o lençol, e nesse momento o galo cantou segunda vez, lembrando-lhe que se encontrava em falta de uma bênção, aquela que se deve à parte de méritos que ao galo coube quando da distribuição que deles fez o Criador pelas suas criaturas, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que deste ao galo inteligência para distinguir o dia da noite, isto disse José, e o galo cantou terceira vez. Era costume, ao primeiro sinal destas alvoradas, responderem-se uns aos outros os galos da vizinhança, mas hoje ficaram calados, como se para eles a noite ainda não tivesse terminado ou mal tivesse começado. José, perplexo, olhou o vulto da mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia despertar, como um pássaro. Era como se uma força exterior, descendo, ou pairando, sobre Maria, lhe comprimisse o corpo contra o solo, porém não tanto que a imobilizasse por completo, notava-se mesmo, apesar da penumbra, que a percorriam súbitos estremecimentos, como a água de um tanque tocada pelo vento. Estará mal, pensou, mas eis que um sinal de urgência o distraiu da preocupação incipiente, uma instante necessidade de urinar, também ela muito fora do costume, que estas satisfações, na sua pessoa, habitualmente manifestavam-se mais tarde, e nunca tão vivamente. Levantou-se, cauteloso, para evitar que a mulher desse pelo que ia fazer, pois escrito está que por todos os modos se deve preservar o respeito de um homem, só quando de todo em todo não for possível, e, tendo aberto devagar a porta que rangia, saiu para o pátio. Era a hora em que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo. Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto de urina sobre a palha que cobria o chão. O burro voltou a cabeça, fazendo brilhar no escuro os olhos salientes, depois sacudiu com força as orelhas peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura, a tentear os restos da ração com os beiços grossos e sensíveis. José aproximou-se da talha das abluções, inclinou-a, fez correr a água sobre as mãos, e depois, enquanto as enxugava na própria túnica, louvou a Deus por, em sua sabedoria infinita, ter formado e criado no homem os orifícios e vasos que lhe são necessários à vida, que se um deles se fechasse ou abrisse, não devendo, certa teria o homem a sua morte. Olhou José o céu, e em seu coração pasmou.

José Saramago

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