segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dias Gomes ´not dead ...

O Bem Amado original
(Atualizado em 02/06/2013) Há alguns anos uma polêmica envolveu o âncora e editor do Jornal Nacional, Willian Bonner, e a revista “Carta Capital”*. Tudo começou quando a mesma publicou um texto de Laurindo Lalo Leal em que ele descreve uma reunião de pauta do telejornal de maior audiência do país à qual teve acesso na qual o referido repórter escolhia as matérias que iriam ao ar através da seguinte pergunta: “Será que o Hommer (não preciso explicar a você quem é o Hommer, né) vai entender isso” ? Sem meias palavras: trata seu expectador como um quase débil mental que não tem a menor condição de tirar conclusões por conta própria, precisando, portanto, ter tudo mastigado, escarrado e cuspido didaticamente em sua cara para que entenda o conteúdo do que está sendo mostrado na tela – conteúdo este no qual, diga-se de passagem, está quase sempre embutido, subliminarmente, todo um arcabouço ideológico que, espera-se, seja absorvido pelo receptor sem qualquer senso crítico.

A refilmagem totalmente esquecível
Pois bem: Foi exatamente isso que Guel Arraes, outrora tido (inclusive por mim) como o mentor de uma verdadeira “ilha de qualidade” e criatividade em meio ao mar de obviedades que nossa “Vênus platinada” produz diariamente, fez com a sensacional “peça que virou novela que depois virou seriado” “O Bem Amado”, de Dias Gomes. O filme, em cartaz nos cinemas de todo o Brasil, só não é um lixo completo porque Marco Nanini conseguiu a proeza de incorporar a figura já clássica de Odorico Paraguassu de uma maneira quase tão perfeita e genial quanto seu mais célebre intérprete da TV, o saudoso Paulo Gracindo. Todo o resto é descartável, com especial destaque (negativo, claro) para a trilha sonora, que tem (oh! Que surpresa!) Caetano Veloso e a vexaminosamente xaroposa Malu Magalhães. Mesmo alguns excelentes atores, como Matheus Nachtergale e José Wilker, nos papéis de Dirceu Borboleta e Zeca Diabo, respectivamente, não conseguiram fazer jus às versões televisivas. Culpa, provavelmente, do roteiro confuso, da direção frouxa, da edição “picotada” e, principalmente, dos péssimos diálogos, declamados de forma absolutamente anti-naturais por alguns envolvidos, como Caio Blat (que rende muito quando é bem dirigido) e Maria Flor. Já Tonico Pereira, coitado, parece que se confundiu: pensou que estava gravando mais um episódio de “A grande família” e repetiu todos os trejeitos de seu personagem da séria, o Mendonça (sensacional, diga-se de passagem).

Mayra, a filha
Lamentável que uma obra tão grandiosa e que merecia já a algum tempo ser resgatada do limbo dos arquivos empoeirados tenha tido esse tratamento na tela grande. Ao ver o filme, pensei como seria legal se, pelo menos, o pastiche fizesse sucesso ao ponto da Globo se animar e lançar, finalmente, os DVDs com a série dos anos 80 (não perdia um episódio) ou, quiçá, a telenovela dos anos 70 (esta eu era muito novinho para ter visto). Estava achando bem difícil, até porque a globo não publicou no formato ainda nenhuma de suas telenovelas quando me deparo, navegando pela net, com o anúncio do lançamento dos DVDs de nada mais nada menos que “Roque Santeiro”, um verdadeiro clássico da teledramaturgia brasileira, também de autoria de Dias Gomes. (NOTA: Hoje - junho de 2013 - já existem várias novelas da Globo disponíveis em DVD. Inclusive "O Bem Amado").

Roque Santeiro foi, provavelmente, a melhor novela que já assisti. Acompanhei na época e quando foi reprisada, no “Vale a pena ver de novo”, religiosamente – acho que não perdi um capítulo sequer. Inesquecíveis os gritos histéricos da “Viúva Porcina”, o chacoalhar dos relógios e pulseiras do “Sinhozinho Malta” (“tou certo ou tou errado?”), interpretado pelo melhor ator brasileiro vivo, Lima Duarte; a pompa do “professor Astromar” (“posso penetrar?””penetre, professor, penetre”) e, claro, as pernas de Claudia Raia, às voltas com os ataques do misterioso lobisomem ao som da voz cavernosa de Zé Ramalho em um de seus últimos hits, “Mistérios da meia-noite”. Até o hoje ator pornô “aposentado” (? Nem sei se ele ainda está no “ramo”), Alexandre Frota, marca presença – péssimo ator, é verdade, mas é um cara divertido.

E o que dizer do Beato Salu e seus xingamentos bíblicos? “Meretriz ! Mulher de Putifar !”. Inesquecível.

Comparei, reassistirei e guardarei para as gerações futuras.

Abaixo, mais sobre Dias Gomes e polêmicas televisivas.

E sobre sua filha, Mayra. 

por Adelvan Kenobi


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William Bonner: meio Homer, meio Lineu - Apresentador compara telespectadores do Jornal Nacional a personagem da série ‘Os Simpsons’ e pai em ‘A Grande Família’. Bonner se justifica lembrando a “necessidade de sermos rigorosamente claros no que escrevemos para o público” e Laurindo Lalo Leal, autor do texto que gerou a polêmica, rebate: “Fui editor de diferentes telejornais e por onde passei nunca vi uma seleção de matérias feita de forma tão rasteira e superficial, tendo como referência apenas as opiniões e idiossincrasias do editor-chefe, como a que presenciei no JN”. Leia aqui com compilação preparada pela redação, em dezembro de 2005

Fonte: Consciência.net

Quem é Homer Simpson

Pode ser — essa hipótese não pode ser descartada — que William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, da TV Globo, não saiba quem é Homer Simpson. Como todo personagem, Homer foi pensado com uma intenção. Matt Groening, criador da série ‘Os Simpsons’ (1989), tinha algo em mente. Sou fã da série, então tenho algumas dicas.

Para começar, indico a síntese da própria Carta Capital (clique na imagem): “Ele é preguiçoso, burro e passa o tempo no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja”.

Homer é, na interpretação de quase todos os que conhecem e admiram a série, o típico pai de família que não conhece nada sobre o mundo, é obtuso e está sempre “disposto” a... fazer o mínimo de esforço, seja mental ou físico. É muito parecido com muitas pessoas que conhecemos. Creio que não era isso o que Bonner tinha em mente. Mas fica a pergunta: será que involuntariamente ele não acertou, quando qualificou seus telespectadores desta forma? A matéria do professor Laurindo Lalo Leal Filho dá dicas de que sim, é por aí.

Foi Homer que, por exemplo, opinando sobre o Brasil de Bonner, disse em um episódio, ao planejar suas próximas férias com a família: “Eu adoraria voltar ao Brasil, mas soube que o problema dos macacos está cada vez pior por lá”.

Ele também é um “ótimo” pai. Carinhoso (mas nem tanto, pois às vezes estrangula seu filho Bart), é certo, mas isso basta? Ele diz coisas como “Crianças, vocês tentaram e falharam miseravelmente. A lição que aprenderam é: nunca tentem”. Para Lisa, sua filha inteligente e consciente dos problemas mundiais, costuma dizer coisas como: “Lisa, minha filha, espero que você tenha aprendido a lição: nunca ajude ninguém!”

Também é, como o brasileiro, um homem profundamente ‘religioso’: “Eu nunca fui um homem de rezar muito, mas, se você estiver aí em cima me ouvindo, por favor, me salve, Super-Homem”.

Ele também é um filósofo: “Nunca diga qualquer coisa a não ser que tenha certeza que todo mundo pense o mesmo”; Consciente de sua condição na sociedade: “Sou um homem branco, idade média de 29 a 49 anos, todos ouvem minhas sugestões mesmo sendo ridículas” (Pega uma lata de amendoins e chicletes juntos); Saudável: “Um viva ao álcool, a causa e a solução de todos os nossos problemas!” E de uma cultura extremamente refinada: “A TV me respeita. Ela ri comigo e não de mim”.

Lembrou do Jornal Nacional? :-)
.(GB, dez/2005)

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Homer desafia JN

Sérgio Ripardo escreve na Folha Online: “(...) O avanço de "Prova de Amor" no ibope, ameaçando a liderança do "JN", lança a seguinte questão: o que está acontecendo com Homer Simpson? Por que ele prefere ver o desfile de corpos sarados nas praias cariocas, mostrado pela novela da Record, em vez das notícias do "JN" e o faroeste "Bang Bang", que antecede o telejornal?

É possível que o "JN" reforce o espírito "verão" e altere logo sua grade de notícias, ficando mais apelativo, sensacionalista, atraindo esse público. É o que manda a receita "vamos dar ao povo o que o povo quer". Não é a primeira vez que o "JN" é desafiado pela concorrência. Já infestou o telejornal com reportagens sobre bichinhos para evitar a fuga do telespectador para o "mundo cão" dos programas policiais, estilo "Aqui Agora", do célebre jornalista Gil Gomes”.

Interesse público ou arrogância?

Em uma enquete na Folha, 55% dos participantes concordaram que a “TV lida com públicos de diferentes idades e escolaridades. Um telejornal tem de ser didático e abordar assuntos de interesse geral. Ele não quis chamar o público de burro.” Para 29%, a interpretação foi outra: “Bonner subestimou a inteligência do público, reproduzindo um preconceito elitista. Sua atitude reflete a arrogância atribuída ao poder de influência da Globo no país”.

“Sobre a necessidade de ser claro”

Matéria assinada pelo jornalista e professor Laurindo Lalo Leal Filho ("De Bonner para Homer"), publicada na edição com data de 5/12 da revista CartaCapital, provocou uma resposta de William Bonner, editor-chefe do Jornal Nacional.

Instado pelo jornalista Claudio Tognolli (de quem foi colega de turma na ECA-USP) a comentar o texto de Lalo, Bonner redigiu a manifestação reproduzida abaixo. Ao responder o pedido deste Observatório para que autorizasse a publicação do texto, Bonner comentou: "Sinto-me numa situação kafkiana. Meu discurso e minha atitude em defesa de nossa responsabilidade social viraram armas contra mim. Ou contra o que represento. Ou contra a empresa que dispõe de minha força de trabalho. Sei lá a que atribuir isso". Leia aqui a resposta de Bonner. Ou abaixo:

“No dia 23 de novembro, recebemos, no JN, a visita de professores universitários. Eles assistiram a uma reunião matinal, em que se esboça uma previsão da edição daquele dia. E me ouviram fazer algumas considerações sobre nosso trabalho.

Em palestras que ministro a estudantes que nos visitam todas as semanas, faço o mesmo.

Nestas ocasiões, sempre abordo, por exemplo, a necessidade de sermos rigorosamente claros no que escrevemos para o público. Brasileiros de todos os níveis sociais, dos mais diferentes graus de escolaridade. E o didatismo que buscamos para o público de menor escolaridade não deve aborrecer os que estudaram mais. Neste desafio, como exemplo do que seria o público médio nessa gama imensa, às vezes cito o personagem Lineu, de A Grande Família. Às vezes, Homer, de Os Simpsons. Nos dois casos, refiro-me a pais de família, trabalhadores, protetores, conservadores, sem curso superior, que assistem à TV depois da jornada de trabalho. No fim do dia, cansados, querem se informar sobre os fatos mais relevantes do dia de maneira clara e objetiva. Este é o Homer de que falo.

Mas o professor Laurindo tem uma visão diferente de Homer. Em vez do trabalhador (numa usina nuclear), o acadêmico o vê como um preguiçoso. Em vez do chefe de família, o professor Laurindo o vê como um comedor de biscoitos. Esta imagem não é a que tenho – não é a disponível, num texto bem-humorado, no site oficial da série Os Simpsons, que faz graça do personagem, mas registra que Homer é "um marido devotado e que, apesar de poucas fraquezas, ama a sua família e é capaz de tudo para provar isso, mesmo que isso signifique se fazer passar por tolo".

Não sei para quantos professores e estudantes citei Homer, ou Lineu, como exemplo. Mas jamais tive informação de que alguém guardasse imagem tão preconceituosa, tão negativa do personagem do desenho.

Como profissional, como defensor da nossa imensa responsabilidade social, sinto-me profundamente envergonhado de me ver na obrigação de explicar isso. Como trabalhador, pai de família protetor, meio Lineu, meio Homer, reconheço humildemente meu fracasso no desafio de ser claro e objetivo para todos os meus interlocutores daquela manhã.”.(William Bonner, jornalista e editor-chefe do Jornal Nacional, dez/2005)


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Comentários à redação Consciência.Net sobre a resposta: “Eita! Nós jornalistas sabemos que a resposta não colou, né?” (Da lista Ética na Mídia)

Alexandre Alves, no mesmo fórum: “O que me impressiona é que a pauta e a versão das notícias são autoritárias, mas todos os outros telejornais vão no mesmo caminho. Em essência, as notícias e as análises dos telejornais da Band, do SBT, da Record são idênticas às do JN. Para ser sincero, isso é uma vergonha... Não estou defendendo o Bonner, só estou considerando que nos demais canais a coisa não deve ser muito diferente”.

É por aí. Mas tem uma outra coisa. A Globo tem uma estrutura infinitamente maior. Jornalistas espalhados por todos os cantos desse país e muitos recursos técnicos à disposição (coisa de quem tem monopólio). Basta conversar com o pessoal que já trabalhou na Globo e em outra emissora (não é o meu caso), o cara fica mal acostumado, reclama da falta de estrutura, da falta de pessoal de apoio etc. Ou seja, o JN tinha tudo para fazer um trabalho melhorzinho, mas não, sai ‘isso’. Quem se informa pela Internet, que é mais independente, fica com indigestão de ver..(GB)

Paula Batista também dá seu pitaco: “Necessidade de ser claro? Ei Bonner, acende a luz!!” :-)

Ela diz: “Só faltou o editor do JN dizer que os "homer's" não entendem o "Homer"... essa é a prova de que os telespectadores são "burros". Convenhamos, assistir aos Simpsons é bem mais divertido e interessante do que assistir ao JN. Será que o Bonner não está fazendo chacota, pelo desenho ser concorrente do programa dele? Taí uma coisa pra se pensar. E outra: a regra de ouro para os jornalistas - "Nunca menospreze a inteligência do seu leitor, telespectador ou ouvinte", ou ainda, "não compare seu telespectador a um Homer preguiçoso, que gosta de tomar cerveja e comer rosquinhas enquanto assiste ao JN". Isso devia ser incluído nos manuais, livros, etc, para ser ensinado nas faculdades de jornalismo, assim as aulas ficariam bem mais divertidas, pelo menos”.

Laurindo: “A questão central não é o perfil do Homer”

“O debate que se realiza no Blue Bus em torno do meu artigo publicado na Carta Capital desta semana - lista de notas abaixo - está ganhando uma dimensao mais ampla, alcançando outros sites e algumas publicaçoes impressas

Diante disso, vejo-me obrigado a voltar ao tema porque ele começa a ser distorcido. A questao central nao é o perfil do Homer Simpson (embora o personagem tenha sido usado várias vezes pelo editor-chefe do JN como forma de caracterizar - pejorativamente - o telespectador médio brasileiro) e sim a forma como sao escolhidas as matérias que vao ao ar no telejornal de maior audiência do país.

Fui editor de diferentes telejornais e por onde passei nunca vi uma seleçao de matérias feita de forma tao rasteira e superficial, tendo como referência apenas as opinioes e idiossincrasias do editor-chefe, como a que presenciei no Jornal Nacional.

Mostro no texto publicado pela revista que o 'outro lado' só é lembrado na reuniao de pauta quando se trata de uma ameaça ao grande poder (caso do óleo barato da Venezuela para os EUA). Nos demais nada é dito (ninguém lembrou das posiçoes do juiz de Contagem, por exemplo, das reivindicaçoes dos grevistas do INSS ou dos economistas que fogem da linha econômica ortodoxa).

Essa é a questao central da matéria publicada. Agora que é engraçado ver o editor-chefe do JN santificando o Homer, isso é. Se o Matt Groening souber vai ficar preocupado. Afinal uma pessoa de tamanha influência no Brasil nao consegue alcançar a complexidade do seu personagem.” Original no BlueBus, 7/12/2005.

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Eu só consigo imaginar a cara dos criadores dos Simpsons caso ouvissem o Bonner criticando a “imagem tão preconceituosa” de Homer... é o fim do jornalismo como o conhecemos. No resto, ele não explica por que cortou (em vez de deixar mais “claro e objetivo”) uma matéria com base no argumento “essa o Homer não vai entender” e por que não há nenhuma discussão de pauta, sendo a palavra final do WB, com sua “imensa responsabilidade social”, conforme o texto do professor Laurindo. Depois, lá na faculdade, nós da imprensa alternativa é que implicamos com os caras..(GB, 6/12/2005)

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Arte: Tribuna da imprensaDeu na Tribuna da Imprensa, Laurindo mais a nota “William Bonner ironiza crítica”, com a foto ao lado na primeira página do online, com a legenda “Bonner disse que sua preocupação é dirigir-se com didatismo a todos os telespectadores”.

Já Tutty Vasques brinca, no sítio NoMínimo: “Fogo amigo - Não convidem William Bonner e os Simpson para a mesma mesa. Homer, em especial, não gostou nada de ser usado pelo jornalista como paradigma de telespectador médio do "Jornal Nacional". Quem está muito chateada com toda essa história é a Fátima Bernardes, que adora a Marge”.

Erro de avaliação ou critério político?

Eliakim Araújo, ex-âncora dos Jornais da Globo, da Manchete e do SBT e noticiarista da Rádio JB, publicou no Direto da Redação (DR) em 8/12/2005:

“O professor Laurindo cita em seu artigo o comportamento do editor-chefe ao recusar matéria da sucursal da Globo em NY sobre a oferta do governo venezuelano para venda de petróleo a preços mais baratos para atender comunidades carentes dos EUA. Assunto da maior relevância naquele dia de novembro, e neste momento quando o gás venezuelano já está atendendo a 8 mil famílias pobres do Bronx, em Nova Iorque, como se pode ler na coluna de hoje do Eduardo Graça, aqui mesmo, no DR.

Não sei qual o critério usado por Bonner para recusar a matéria. Se foi político, é preocupante. Se não, foi um grave erro de avaliação. Gostando-se ou não de Hugo Chávez, temos que reconhecer sua importância no cenário político internacional. Ele hoje é notícia em qualquer lugar do mundo. Não só porque preside um país que é um dos maiores produtores de petróleo, como também porque é um dos raros líderes a enfrentar a prepotência de Bush e seu desprezo pelas regras internacionais de convivência.”

Papéis humanos

O jornalista e professor da ECA-USP e do Unifiam-Faam, Claudio Tognolli, registra em sua coluna, no Portal AOL, em 8/12/2005: “(...) Disso tudo fica uma questão muito rasteira: quem é Homer Simpson? Lalo projetou nele o que vê de pior na Globo. Bonner, também, projetou no velho Homer algo que ele mesmo (Bonner) enxerga em si próprio: um trabalhador preocupado com a família. Os psicanalistas lacanianos chamam essa multiplicidade de papéis de spaltung, ou clivagem. São esses multitons de percepção que nos tornam humanos, demasiadamente humanos.

Mas tais multiplicidades também são usadas por maus políticos, quando afundam atirando e encontram na autopiedade uma forma de sobrevivência. Aí, ensaiam um papel que jamais tínhamos imaginado. Que tipo de Homer será José Dirceu?”

Jornalista não pode ser cassado por quebra de decoro =)

No mínimo curioso um dos trechos da carta de William Bonner, se justificando por ter comparado o telespectador padrão do Jornal Nacional com o Homer Simpson. Bonner disse ao Observatório da Imprensa o seguinte: “Meu discurso e minha atitude em defesa de nossa responsabilidade social viraram armas contra mim. Ou contra o que represento. Ou contra a empresa que dispõe de minha força de trabalho.”

E não é que nós já ouvimos isso antes... O ex-deputado José Dirceu, em artigo publicado pouco antes de ser cassado na Câmara dos Deputados, dizia que estava sendo julgado “pelo que represento na história da esquerda, do PT e do governo Lula”. É bom lembrar que o JN, desculpe a expressão, ‘desceu o sarrafo’ em Dirceu um dia após sua cassação, como registrado aqui. E se jornalista pudesse ser cassado por quebra de decoro jornalístico, será que Bonner iria para a rua pelo que representa? Olha, esse mundo é redondo, mas está ficando cada dia mais chato!.(GB, dez/2005)

A Globo cria os Homer's, sim, mas nos ensina a falar para milhões

"Bonner diz que a linguagem que ele procura usar deve ser uma linguagem que atinja e não afaste nem o intelectual e nem a pessoa sem escolaridade. A Globo dele se preocupa em atingir os dois. Esta afirmação traz à memória um outro texto da Globo que está transcrito no livro “A História Real”, de Josias de Souza e Gilberto Dimenstein. Estávamos em 1994, durante a campanha do FHC contra Lula. O comitê de propaganda da campanha do tucano passou uma cartilha para FHC aprender a falar 'para a maioria'. (...)"

Texto de Vito Giannotti, janeiro de 2006, para o Núcleo Piratininga de Comunicação.

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(Wikipedia) Alfredo de Freitas Dias Gomes, mais conhecido como Dias Gomes, (Salvador, 19 de outubro de 1922 — São Paulo, 18 de maio de 1999) foi um dramaturgo e autor de telenovelas brasileiro.

Essencialmente um homem de teatro, aos 15 anos Dias Gomes escreveu sua primeira peça, A Comédia dos Moralistas, com a qual ganharia o prêmio do Serviço Nacional de Teatro, no ano seguinte. Em 1942, sua peça Amanhã Será Outro Dia chega às mãos do ator Procópio Ferreira que, empolgado com a qualidade do texto, chama o autor para uma conversa. Embora tivesse gostado do que lera, tratava-se de um drama antinazista e Procópio achava arriscado levar à cena um espetáculo desse porte em plena Segunda Guerra Mundial. Quando questionado se não teria uma outra peça, de comédia talvez, Dias lembrou-se de Pé de Cabra, uma espécie de sátira ao maior sucesso de Procópio até então, e não hesitou em levá-la ao grande ator que, entusiasmado, comprometeu-se a encená-la.

Sob a alegação de que a peça possuía alto conteúdo marxista, Pé de Cabra seria proibida no dia da estreia. Curioso notar que, embora anos depois o autor viesse a se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, até então Dias Gomes nunca havia lido uma só linha de Karl Marx.

Graças à sua influência, Procópio consegue a liberação da peça, mediante o corte de algumas passagens, e a mesma é levada à cena com grande sucesso. No ano seguinte, Dias Gomes assinaria com Procópio aquele que seria o primeiro grande contrato de sua carreira, no qual se comprometia a escrever com exclusividade para o ator. Desse período nasceram Zeca Diabo, João Cambão, Dr. Ninguém, Um Pobre Gênio e Eu Acuso o Céu.

Infelizmente nem todas as peças foram encenadas, pois logo Dias e Procópio se desentenderam por sérias divergências políticas. Refletindo o pensamento da época, Procópio não concordava com as preocupações sociais que Dias insistia em discutir em suas peças. Tais diferenças levariam o autor a se afastar temporariamente dos palcos e ele passou a se dedicar ao rádio.

Foi no ambiente radiofônico que Dias Gomes travou contato pela primeira vez com aquela que viria a se tornar sua primeira esposa, a então desconhecida Janete Emmer Janete Clair. Com ela, teria três filhos: Alfredo Dias Gomes, Guilherme Dias Gomes[1] e Denise Emmer[2].

De 1944 a 1964, Dia Gomes adaptou cerca de 500 peças teatrais para o rádio, o que lhe proporcionou apurado conhecimento da literatura universal.

Em 1960, Dias Gomes volta aos palcos com aquele que viria a ser o maior êxito de sua carreira, pelo qual se tornaria internacionalmente conhecido: O Pagador de Promessas. Adaptado para o cinema, O Pagador seria o primeiro filme brasileiro a receber uma indicação ao Oscar e o único a ganhar a Palma de Ouro em Cannes.

Em 1965, Dias assiste, perplexo, à proibição de sua peça O Berço do Herói, no dia da estreia. Adaptada para a televisão com o nome de Roque Santeiro, a mesma seria proibida uma década depois, também no dia de sua estreia. Somente em 1985, com o fim do Regime Militar, o público iria poder conferir a Roque Santeiro - que, diga-se de passagem, viria a se tornar uma das maiores audiências do gênero.

Com a implantação da Ditadura Militar no Brasil, em 1964, Dias Gomes passa a ter suas peças censuradas, uma após a outra.

Demitido da Rádio Nacional, graças ao seu envolvimento com o Partido Comunista, não lhe resta outra saída senão aceitar o convite de Boni, então presidente da Rede Globo, para escrever para a televisão.

De 1969 a 1979 Dias Gomes dedica-se exclusivamente ao veículo, no qual demonstra incomum talento.

Em 1972 Dias Gomes levaria o povo para a televisão ao ambientar Bandeira 2 no subúrbio carioca.

Em 1973 escreveu a primeira novela em cores da TV brasileira, O Bem Amado.

Em 1974 já falava em ecologia e no crescimento desordenado da cidade com O Espigão.

Em 1976, com Saramandaia, abordaria o realismo fantástico, então em moda na literatura.

O fracasso de Sinal de Alerta, em 1978, leva Dias a se afastar do gênero telenovela temporariamente.

Ao longo de toda a década de 80, Dias Gomes voltaria a se dedicar ao teatro, escrevendo para a televisão esporadicamente. Datam desse o período os seriados O Bem Amado e Carga Pesada (apenas no primeiro ano), e as novelas Roque Santeiro e Mandala, das quais escreveria apenas parte.

Viúvo de Janete Clair, que morrera um ano antes, em 1984 Dias casa-se com a atriz Bernadeth Lyzio, com quem tem duas filhas: Mayra Dias Gomes (escritora) e Luana Dias Gomes .[3]

Nos anos 90, Dias Gomes viraria as costas de vez para as telenovelas, dedicando-se única e exclusivamente às minisséries.

Em meio à preparação de mais um trabalho para a televisão, a minissérie Vargas - baseada em sua peça Dr. Getúlio, Sua Vida, Sua Glória -, Dias Gomes morre num trágico acidente automobilístico, ao sair de um restaurante no centro de São Paulo.

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"As entrevistas foram o caminho para conhecer meu pai", diz filha de Dias Gomes


Autor de "Roque Santeiro" e "O Bem-Amado" morreu em acidente de carro quando as filhas Mayra e Luana eram crianças. As duas reuniram em livro as entrevistas que o pai deixou

iG Gente (Anderson Perri) |

Além da autoria de 13 novelas - entre elas "Roque Santeiro", "O Bem-Amado" e "Saramandaia" - e 3 minisséries, entre outras tantas colaborações na TV, o dramaturgo Dias Gomes deixou uma obra extensa também no quesito família. Com Janete Clair , seu par na vida e nas tramas globais, ele se casou em 1950 e teve 4 filhos: Alfredo , Guilherme , Marcos Plínio (falecido) e Denise Emmer . Do segundo casamento, em 1985, com Bernardeth Lizio , deixou as irmãs Mayra e Luana Dias Gomes, que fizeram uma compilação de entrevistas do pai e as reuniram no livro "Dias Gomes", lançado em 19 de outubro, dia em que ele completaria 90 anos, pela editora Azougue.

Em conversa com o iG , Mayra, a mais velha, conta da vontade de homenagear o pai e das lembranças que guarda dele, que morreu em um acidente de carro quando ela tinha 11 anos, em maio de 1999. Suas entrevistas foram o que ficou para ela saber o que ele pensava de muitos assuntos que ainda não a interessavam quando ele partiu.

iG Gente: Por que você optou por uma compilação de entrevistas em vez de uma biografia? 
Mayra Dias Gomes:  Meu pai faleceu quando eu tinha onze anos de idade; minha irmã tinha oito. Com essa idade, eu nunca havia conversado com ele sobre diversos assuntos que hoje me  fascinariam. Minha convivência com ele era a de uma criança com seu pai. Eu e minha irmã nunca teríamos autoridade para escrever uma biografia sobre Dias Gomes. Além disso, ele mesmo já o fez, na biografia “Apenas Um Subversivo”. Esse livro foi a maneira que eu e minha irmã Luana encontramos de conhecer melhor nosso pai. No processo de pesquisa, pudemos entender melhor suas ideologias e sua trajetória. Nós passamos a conhecê-lo através de suas próprias palavras, podendo enxergar também a evolução de seu pensamento pela cronologia das entrevistas. Trabalhamos nessa pesquisa por três anos, com a ajuda da minha mãe e da editora. Resolvemos lançar agora porque meu pai estaria completando 90 anos, e achamos que estava na hora de lembrar um dos maiores dramaturgos que o país já teve.

iG Gente: O que Dias Gomes, que sempre foi muito franco em suas entrevistas, diria das novelas de hoje em dia? 
Mayra Dias Gomes:  Meu pai já não acompanhava as novelas quando faleceu, em 1999. O tempo não permitia, ele escrevia diariamente. Na verdade, quando ele faleceu, reclamava muito da falta de criatividade e inovação nas novelas, no teatro, e nas artes em geral. Ele definia o período como decadente para as artes. Eu estou morando nos Estados Unidos há quase quatro anos, então não posso opinar sobre as novelas atuais. Quando estive no Brasil no mês passado para o lançamento do livro, assisti o final de “Avenida Brasil” e o início de “Salve Jorge”, mas não assisti o suficiente para ter uma opinião formada.

iG Gente: Em um dos momentos do livro, Dias Gomes afirma ser ateu. Era uma posição que ele assumia ativamente ou uma característica que não influía na vida e no trabalho? 
Mayra Dias Gomes: Ele era um ateu convicto. Sua crença não influenciava em sua vida diária, até porque minha mãe sempre foi católica, mas certamente está imprimida em toda a sua obra, repleta de críticas à religião. Uma das coisas mais interessantes que descobri durante a minha pesquisa é que Dias Gomes teve uma formação católica rígida. Ele acreditava em Deus com seriedade quando era jovem, e somente iniciou seus questionamentos religiosos aos dezessete anos, ao ler um livro chamado “Formação da mentalidade”, que o fez rever todas as suas crenças e se perguntar se ele realmente acreditava na existência de Deus. Eu não acredito, por exemplo, que ele trabalharia numa emissora que impusesse restrições religiosas, ou em uma emissora que impusesse qualquer tipo de restrição ao seu texto. No livro ele conta que sempre teve liberdade para escrever o que quisesse dentro da Globo. Esse foi um dos motivos pelo qual ele aceitou escrever para a televisão, apesar da crítica de muitos colegas, que diziam que ele havia “se vendido” para a televisão.

iG Gente: Você consegue ver algum autor atualmente que tenha características semelhantes a Dias Gomes? Alguém que pudesse ser considerado seu sucessor?
Mayra Dias Gomes
: Não, não consigo. Falta alguém com uma visão crítica da sociedade brasileira, que fale sobre assuntos atuais que incomodam o povo, e que saiba falar sobre eles com humor. Aposto que meu pai não entraria nessa onda do politicamente correto, ele continuaria sendo quem sempre foi. Como disse muitas vezes, uma de suas frases preferidas era “Quem não veio ao mundo para incomodar, não devia ter nascido.” Mas, além de crítico, o texto do meu pai era extremamente engraçado.

iG Gente: Dias Gomes tinha um ator e uma atriz preferida? Alguém para quem ele escrevesse papéis específicos?
Mayra Dias Gomes
: Acho que só ele poderia dizer quem eram seus atores preferidos. Sei que ele era um grande fã do Paulo Gracindo, Lima Duarte, Fábio Junior e Claudia Raia.

iG Gente: Outro dia, em entrevista ao iG, a atriz Lilia Cabral disse que ela “e todas as atrizes do mundo” sonham fazer o papel da Viúva Porcina. Quem você indicaria hoje para fazer o Sinhozinho Malta e a Viúva Porcina?
Mayra Dias Gomes : Essa pergunta é realmente difícil! Precisam ser dois grandes atores, cativantes e engraçados.

iG Gente: "Saramandaia" ganhará remake na Globo no próximo ano. Você ajudará nesta adaptação?
Mayra Dias Gomes : Não, não tenho nenhum envolvimento na adaptação de “Saramandaia”, mas estou muito ansiosa para ver o resultado.

iG Gente: E na escalação de atores, você poderia dar algum palpite? Quem faria, na sua opinião, a melhor "Dona Redonda"?
Mayra Dias Gomes : Não sei se seria a melhor Dona Redonda, mas imagino que a Claudia Gimenez poderia fazê-la muito bem, porque ela é engraçada demais. Acho que a Fabiana Karla também poderia ser ótima.

iG Gente: Qual outra novela ou peça de Dias Gomes você gostaria de rever em nova versão? Tem ainda algum texto inédito dele que pudesse ser adaptado?
Mayra Dias Gomes:  Eu adoraria assistir as minisséries “O Fim do Mundo” e “As Noivas de Copacabana”, e as novelas “Mandala” e “Roque Santeiro”. Ele deixou textos inéditos para a televisão e o teatro, mas ainda não sabemos o que acontecerá com eles.

iG Gente: O que você acha que seu pai, que tinha uma visão política mais direcionada para a esquerda, falaria do atual momento político do Brasil? O que ele acharia de escândalos como o mensalão? Você acha que ele se pronunciaria como autor ou escreveria uma obra de ficção para retratar o que o incomodasse?
Mayra Dias Gomes:  Como minha irmã Denise Emmer disse em uma de suas entrevistas recentes, tenho certeza de que meu pai estaria acompanhando os escândalos políticos como o mensalão e que se aproveitaria desse momento no nosso país para escrever sobre o assunto. Acho que ele também estaria de olho no julgamento escandaloso do goleiro Bruno, pois era um Flamenguista doente.

iG Gente: Houve um briga entre Dias Gomes e Aguinaldo Silva quanto à divisão da autoria de "Roque Santeiro", uma das novelas mais importantes da dramaturgia brasileira. Qual foi o fim dado a essa disputa? Vocês guardam alguma mágoa desta história? Eles voltaram a se falar?
Mayra Dias Gomes:  “Roque Santeiro” foi uma novela escrita a várias mãos. Além do Aguinaldo, também teve participação do Marcílio Moraes e do Joaquim Assis, e todos contribuíram para o sucesso da obra do meu pai. Essa briga são águas passadas. O importante é que a obra de Dias Gomes está em evidência novamente, e que Aguinaldo certamente tem a intenção de remendar o passado ao convidar a neta de Dias Gomes para escrever com ele. A Renata (Dias Gomes, filha de Alfredo e da também atriz Neuza Caribé) enviou um e-mail para o Aguinaldo quando o contrato dela com a “Malhação” terminou; ele pediu um texto dela para conhecer seu trabalho. Ele leu, gostou, e a convidou para trabalhar com ele em sua próxima novela.

iG Gente: Quais são os seus próximos projetos pessoais?
Mayra Dias Gomes:  Estou terminando de escrever meu terceiro romance, que deve ser publicado pela Record no ano que vem. O livro é baseado em um assassinato que presenciei em Hollywood e fala sobre o mundo obscuro da cidade para onde todos vêm com o objetivo de realizar seus sonhos ou se tornar uma estrela. Além disso, meu primeiro livro, “Fugalaça”, está sendo traduzido para o alemão para ser lançado na Feira do Livro de Frankfurt em 2013, e será produzido para o cinema.

'Quem não veio incomodar não devia ter nascido', diz Mayra Dias Gomes

A frase é do pai, Dias Gomes, mas ela adotou. Em entrevista, a escritora fala da carreira, da vida nos EUA e da possibilidade de posar nua de novo.

A morte do pai de Mayra Dias Gomes, o novelista Alfredo de Freitas Dias Gomes, mudou a vida da escritora, na época com 13 anos. Ela enfrentou uma depressão, se envolveu com drogas e só começou a superar a perda ao escrever seu primeiro livro, “Fugalaça”. Depois disso, ela foi morar em Hollywood, posou nua para a “Sexy” e se casou com um roqueiro de quem era fã antes de conhecer pessoalmente.

Mas não é só de glamour a vida da escritora em Los Angeles. Em entrevista ao EGO, Mayra fala da saudade que tem do Brasil - que não pode visitar sempre, devido ao processo de imigração - e dos problemas judiciais que enfrenta ao lado do marido - cuja ex-mulher, segundo ela, faz de tudo para ver o casal separado.

Em outubro chega às livrarias o terceiro livro de Mayra, desta vez escrito em parceria com a mãe a irmã. Em “Dias Gomes”, o trio revirou o fundo do baú para reunir entrevistas antigas do pai e falar, por exemplo, do filme baseado na peça de teatro escrita por ele, “O Pagador de Promessas” - indicado ao Oscar e vencedor da Palma de Ouro em 1962, em Cannes. Também do fundo do baú, Mayra recuperou fotos de sua infância e adolescência, que divide com os leitores nesta entrevista. Confira:

EGO: Quais as lembranças que você tem do seu pai?
Mayra: Lembro de um homem extremamente alegre e engraçado. Lembro de um homem bem sucedido e feliz com seu trabalho, que gostava de aproveitar as coisas boas da vida. Eu tinha uma relação muito próxima com meu pai. Desde criança sempre o admirei e o imitei. Cresci em um ambiente muito criativo – estava sempre escrevendo peças, roteiros e músicas. Escrevia meus roteiros e os dirigia, colocava todas as minhas amigas na frente da câmera. Era influência dos meu pai e também da minha mãe Bernadeth, que era atriz. Eu cresci os assistindo na televisão e no teatro e nunca considerei uma vida que não me permitisse ser tão criativa e livre quanto eles. Meu pai sempre me ensinou importância de ler e escrever. Lembro de ter tido uma infância feliz e abençoada. As férias eram sempre a melhor parte do ano, pois meu pai nos levava para viajar. Eu sempre gostei dos Estados Unidos, principalmente Los Angeles e Nova York, e costumava dizer para o meu pai que morararia aqui. Ele sempre me incentivou em tudo que eu queria fazer.

Quantos anos você tinha quando ele morreu? Como enfrentou a notícia?
Ele morreu em um terrível acidente de carro em São Paulo quando eu tinha 11 anos. O impacto de sua morte foi enorme. Eu descobri que ele havia morrido através de uma matéria no site da Globo e aquilo me deixou traumatizada. Fiquei com muita raiva de todos em volta de mim e comecei a questionar tudo em que eu acreditava, pois não entendia como Deus podia ter feito aquilo comigo. Virei uma adolescente muito rebelde. Minha vida nunca mais foi a mesma em alguns sentidos, pois tive que lidar com sentimentos de raiva, culpa, tristeza e perda de uma maneira extremamente súbita e em uma idade crítica.

Qual a maior lição que seu pai deixou para você?
Ele me ensinou a aceitar quem eu sou e a correr atrás dos meus sonhos. Era um homem extremamente preocupado com liberdade de expressão e individualidade. Aprendi com ele que se a maioria das pessoas não concorda com algo em que acredito, provavalmente estou no caminho certo. ‘Quem não veio ao mundo para incomodar não devia ter nascido’, ele sempre dizia.

Como é sua relação com sua mãe?
Hoje em dia eu tenho um ótimo relacionamento com a minha mãe. Nos falamos todos os dias. Durante a adolescência nós brigávamos muito, pois eu a desafiava constantemente e não respeitava sua autoridade. Aos quinze anos eu não queria mais estudar, pois acreditava que já era hora de sair pelo mundo e descobrir o que a vida tinha a me oferecer. Me fazer estudar era uma guerra constante, pois eu estava muito mais preocupada em ir à shows de rock e conhecer pessoas que tinham mais a ver comigo do que os amigos da escola. Quando fiz dezesseis anos, usava drogas constantemente e minha mãe lutava para me tirar do estado mental depressivo em que eu me encontrava, mas não sabia o que fazer. As coisas ficaram melhores depois que ela me levou à terapia e resolveu tentar entender que meu uso de drogas era diretamente relacionado aos sentimentos de tristeza e vazio que eu sentia. Quando ela resolveu me ajudar ao invés de me proibir e me colocar de castigo, nosso relacionamento melhorou. Foi minha mãe quem me incentivou a escrever meu primeiro livro, que contava um pouco da minha batalha contra drogas, depressão e relacionamentos destrutivos. Ela dizia que tudo ficaria melhor depois que eu colocasse no papel e que outros adolescentes se identificariam com a minha história. Acabou que ela estava certa. “Fugalaça” me tirou da minha depressão e me introduziu à minha carreira de escritora.

"Fugalaça" é um livro autobiográfico? Você viveu relações amorosas destrutivas e se envolveu de com drogas a ponto de se tornar dependente?
Eu digo que é parte autobiográfico, pois nem tudo que eu narro aconteceu comigo, mas uma grande parte das histórias de fato aconteceu. Eu tive relacionamentos em que sofri intensamente e usei muitas drogas para escapar de tudo que eu estava sentindo. Cheguei à ir ao AA (Alcóolicos Anônimos) e ao NA (Narcóticos Anônimos) para aprender mais sobre o que eu estava sentindo e como controlar todos aqueles sentimentos. Foi uma experiência inesquecível, pois aprendi que os drogados são apenas pessoas precisam de ajuda. Hoje eu bebo socialmente, mas não me permito perder o controle como eu costumava fazer quando era mais nova. Hoje em dia eu sei impor limites à mim mesma porque sei que usar drogas não traz nenhuma consequência boa. Somente coisas ruins podem acontecer quando uma pessoa começa a usar drogas. Mas eu nunca vou julgar ninguém que está passando por isso, somente tentarei ajudar com a minha própria experiência.

Como aconteceu o lançamento do seu primeiro livro?
Eu comecei a escrever “Fugalaça” durante este momento de depressão, aos dezesseis anos, por influência da minha mãe e da minha terapeuta. Não estava pensando em como iria publicá-lo inicialmente. O processo durou seis meses. Quando terminei, minha mãe me levou para uma reunião na editora Record. Saí de lá aos prantos, pois não acreditava que conseguiria ser publicada. Eu havia despejado minha alma naquele livro e esperava que meus sentimentos fossem compreendidos como arte, mas ainda não tinha confiança em mim mesma. Alguns meses depois a editora me ligou e me disse que meu livro era emocionante. Eu havia conseguido.

Como você foi morar nos EUA? Foi quando você conheceu seu marido [o ator e roqueiro Coyote Shivers]?
Eu havia acabado de lançar meu segundo livro, “Mil e Uma Noites de Silêncio” e resolvi passar um mês em Hollywood. Queria encontrar inspiração para um novo livro e respirar novos ares. Sempre que viajo para outros países tento marcar entrevistas com artistas que podem interessar aos veículos para quais eu escrevo. Desta vez eu tinha uma entrevista marcada com o músico e ator Coyote Shivers, de quem era fã por causa do filme “Empire Records” em que ele canta com a Reneé Zellweger. Eu havia lido sobre a batalha judicial que ele tem com a ex mulher, a atriz Pauley Perrette, de NCIS, e fiquei extremamente interessada pelo caso dele. Ele estava sofrendo acusações falsas desde que se divorciou dela, em 2004, e estava sendo retratado como um monstro pelo time de publicidade dela. Comecei a investigar o caso e senti uma vontade absurda de ajudá-lo a limpar seu nome dessas acusações. Parecia que minha missão era salvá-lo. Marquei uma entrevista com ele com a intenção de vender sua história para algum veículo, mas assim que o conheci percebi que sua história dava um livro. E a verdade é que nós nos apaixonamos neste primeiro encontro, e imediatamente ele me pediu em namoro. No início do nosso relacionamento, passei muito tempo investigando todos os aspectos da sua história, para ter certeza de que não estava cometendo um erro. Três meses depois que nos conhecemos, ele me pediu em casamento. Seis meses depois nós nos casamos em Las Vegas. Estamos juntos há três anos.

Qual é a relação que o Coyote tem com a ex? Como ela interfere na sua vida?
O Coyote se divorciou da Pauley Perrette em 2004, depois que ele a pegou traindo-o. Ela não queria que a traição dela fosse descoberta, por isso ela começou a ameaça-lo durante o divórcio. Disse que iria mentir para obter uma ordem de restrição e usaria esta ordem para retratá-lo como o perseguidor dela. Ela embarcou numa vingança sem fim para tentar destruí-lo completamente. Eles já estão batalhando na corte há oito anos e ela já tentou acusá-lo de diversos crimes, com o propósito de colocá-lo atrás das grades. Estamos casados há três anos e eu já passei por dois julgamentos criminais por causa de acusações fabricadas por ela. Não existe sensação pior neste mundo. Em abril deste ano fomos jantar em um dos nossos restaurantes preferidos em Hollywood e ela estava lá nos esperando, sabendo que iríamos lá. Tudo para chamar a polícia e o TMZ. Meu marido acabou sendo preso sob fiança de 100 mil dólares e agora está enfrentando um ano e meio de cadeia por ter entrado comigo em um restaurante [por conta da ordem restritiva]. Sei que é difícil de entender que essa história é real, pois parece loucura, mas é como as coisas funcionam em Hollywood. Ela é uma mulher doente e vingativa, com muito dinheiro e fama, e está tentando tirar meu marido de mim. Espero poder desmascarar suas mentiras no julgamento, agora em setembro. Acredito que esta é uma oportunidade para trazer à tona o abuso de ordens de restrição que existe neste país. Ordens de restrição deveriam proteger as vítimas, mas acabam sendo usadas como arma. Se o juiz desse ordens de restrição para os dois, tudo se resolveria, mas ela não concorda, tudo é briga. Tudo que o Coyote quer é que ela fique longe da nossa vida.

Apesar deste problema, você costuma dizer que vive uma vida de sonhos nos Estados Unidos. O que faz do seu dia a dia glamouroso?
Hoje eu moro no apartamento dos meus sonhos, que fica no prédio Hollywood Tower, onde pessoas como Marilyn Monroe, Humphrey Bogart e Charlie Chaplin moraram e também inspirou o brinquedo Tower of Terror, da Disney, onde o elevador cai. O prédio existe desde os anos 20. É uma mistura de glamour e de histórias mal assombradas. Temos uma estação de rádio no prédio, a 98.7, e todos os meses recebemos shows privados de bandas enormes no nosso telhado. Já tivemos Jane’s Addiction, Incubus, Florence and The Machine, 30 Seconds to Mars, Garbage, Bush, e muitos outros. Sou apaixonada pelo lugar onde moro. Tenho muitas amigos e amigos nos Estados Unidos. Sinto que construi uma nova vida, uma nova família. Me sinto feliz e completa morando em Los Angeles, e acho que não gostaria mais de morar em lugar algum. Essa cidade me inspira e isso é muito importante para mim.

Não tem saudade do Brasil?? O que mais gosta de fazer quando está no país?
Meu processo de imigração foi demorado, então só estive no Brasil uma vez desde que me mudei para Hollywood, há três anos. Às vezes a saudade dói demais, mas são escolhas que eu fiz e preciso aceitar. Quando fui ao Brasil só estava preocupada em matar a saudade da minha família, dos meus amigos, meus cachorros, minha casa, meu quarto, a comidinha de casa. Eu sinto falta das coisas simples da minha vida no Brasil.

Quais seus sonhos? Voltaria a morar no Brasil? Gostaria de ter filhos?
Sonho em continuar escrevendo e continuar criando. Tenho muitas aspirações dentro da minha carreira literária e jornalística, mas prefiro deixá-las guardadas até serem realizadas. Sonho sim em ter filhos, mas não no momento, pois ainda quero viajar muito. Não pretendo voltar a morar no Brasil, mas quero poder estar aí com muito mais frequencia, pois a saudade é grande.

Você posaria nua novamente? Como sua família reagiu?
Eu gostei muito da experiência de posar nua, pois trouxe uma grande segurança em mim mesma. Eu costumava achar que nunca posaria, mas acabei me surpreendendo com o quanto foi legal. Tanto minha família quanto meu marido me apoiaram a posar para a “Sexy”. Meu marido, inclusive, acompanhou todo o ensaio. Eu aceitaria posar de novo, sim, e não somente pela remuneração, mas também pelo prazer de de fazer o trabalho. Sem querer gerar polêmica, eu teria prazer em fazer a “Playboy”.

Você fala muito sobre o primeiro livro, mas e os seguintes? Também têm traços autobiográficos?
O segundo livro é uma ficção, mas de uma forma ou outra, tudo que eu escrevo acaba sendo sobre mim mesma. O que me motiva a escrever são meus sentimentos, e escrever para mim é terapia. No caso do segundo livro, eu estava me sentindo extremamente solitária no mundo. A personagem principal não tem nada a ver comigo, mas foi deste meu sentimento que surgiu “Mil e Uma Noites de Silêncio”. O terceiro livro,  "Dias Gomes", eu organizei com a ajuda da minha irmã e da minha mãe e foi uma experiência maravilhosa poder conhecer e descobrir a mente do meu pai. Ele era um homem brilhante e suas ideias sobre teatro, TV, política e censura são fascinantes. O livro traz entrevistas que meu pai deu desde os anos sessenta até sua morte e através do seu pensamento mostra também as mudanças que ocorreram no Brasil. Quando a Azougue Editorial nos convidou para organizar este livro, ficamos muito felizes, pois queríamos homenagear os 90 anos do meu pai e também os 50 anos do prêmio de “O Pagador de Promessas” em Cannes. O livro já está à venda e terá lançamento no Brasil em outubro.

Quais são seus próximos projetos? Está escrevendo um novo livro?
Além de o lançamento de “Dias Gomes”, estou terminando de escrever meu próximo livro, que é um thriller baseado em um assassinato que presenciei em Hollywood, e fala também sobre o lado mais obscuro da cidade. Meu livro “Fugalaça” vai virar filme também. Com meu marido eu estou trabalhando em um documentário e um livro sobre a história dele.

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Dias Gomes no programa Roda Viva, em 12/06/1995

Há mais de 50 anos ele coleciona os tipos de uma enciclopédia chamada Brasil. Os pagadores de promessas, os reis de ramos, os roques santeiros, os bem amados, os arapongas. No capítulo de hoje do Roda Viva está Alfredo de Freitas Dias Gomes, dramaturgo, autor de novelas e membro da Academia Brasileira de Letras. Para entrevistar o autor e escritor Dias Gomes, nós convidamos hoje à noite: o Alberto Guzik, crítico de teatro do Jornal da Tarde. A editora executiva do programa Metrópolis da Rede Cultura, Maria Amélia Rocha Lopes. Rita Buzzar, escritora e autora de novelas. O jornalista Hamilton dos Santos, crítico de livros da revista Maire Claire. Claudinei Ferreira, apresentador do programa Certas Palavras da rádio CBN. Esther Hamburger, colaboradora da Folha de S. Paulo e pesquisadora do Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Boa noite, Dias Gomes.

Dias Gomes: Boa noite.

Matinas Suzuki: Você poderia contar um pouco para nós o que é esse livro que você está lançando, Decadência? Dias Gomes: Decadência é...

Matinas Suzuki:
É o país?

Dias Gomes:
É uma metáfora do país nos últimos anos, principalmente na última década, a partir da morte de Tancredo [Neves] até o impeachment de [Fernando] Collor [de Mello]. Através de uma família tradicional, que passa por todas essas crises pelas quais passou o país nesses últimos anos. A crise econômica, a crise moral, a crise ética, a perda de valores, de identidade etc. e tal. Então este é um romance despretensioso, não tem nenhuma pretensão senão contar uma história de uma maneira simples, direta...

Matinas Suzuki:
O livro vai virar uma minissérie, como a gente falou, [mas eu tenho] uma pergunta que eu acho que todo mundo deve lhe fazer. Esse livro não está saindo em uma hora um pouquinho errada? Ou seja, não é no momento em que o país está com perspectivas de mudanças, que as pessoas parecem que voltaram a acreditar em uma transformação do Brasil, existe uma certa expectativa.

Dias Gomes:
Por causa disso nós não vamos falar do passado? Não, vamos refletir sobre o passado, já que é sobre ele que nós vamos construir um Brasil novo. Inclusive o romance termina com um sopro de otimismo, esperando que o país tenha mudado. Eu não sei se é otimismo ou é ironia.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Dias Gomes, dessa vez você fez o processo inverso. Primeiro nasceu a minissérie e depois o livro.

Dias Gomes:
É, eu fiz a coisa de cabeça para baixo. [risos]

Maria Amélia Rocha Lopes:
Agora, você não acha que isso, de certa maneira, poderia ter prejudicado um pouquinho o romance? Eu estou falando como leitora. Eu acabei de ler e eu comecei a ver, à medida que eu ia lendo, eu fui vendo atores. Então a impressão que me deu é que era muito mais um roteiro do que um romance mesmo, na acepção da palavra...

Dias Gomes:
É possível.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Quer dizer, esse processo inverso não prejudica um pouco o livro?

Dias Gomes:
Não sei. Eu sinceramente não sei responder. Algumas pessoas que leram acharam que isso até era uma coisa inovadora, porque pela primeira vez o romance recebe uma influência da televisão. Porque o romance recebeu influências neste século, por exemplo, muita influência da psicanálise, depois foi a influência do cinema. E a televisão, que é uma coisa dos nossos dias, você não nota uma influência sensível no romance. Quer dizer, pode ser que através disso se tenha conseguido uma certa influência. O romance realmente pode ter sido influenciado pela televisão, porque a minissérie foi feita antes. Se isso é bom ou mal eu não sei.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Quando você fez o livro, você já ia pensando em personagens? Porque eu não vi a minissérie, não tenho idéia de quem trabalha, de quem atua nela.

Dias Gomes:
Não. Quando eu escrevi...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Mas tem alguns personagens em que você começa a enxergar alguns atores, assim, é muito curioso.

Dias Gomes:
Quando eu escrevi o livro, ainda não tinha sido escolhido o elenco. Então os personagens estavam na minha cabeça, mas com a sua fisionomia própria, não aquela do ator que vem depois. Portanto essa influência não tem.

Esther Hamburger:
Muitas vezes as suas novelas e minisséries vieram de adaptações das suas próprias peças de teatro.

Dias Gomes:
Quase todas.

Esther Hamburger:
Eu acho que isso é uma coisa bem interessante, meio específica sua. Você podia falar um pouco como é que é? Por que começa sempre pelo teatro? Por que o teatro é privilegiado aí?

Dias Gomes:
Porque eu comecei pelo teatro, eu comecei como autor de teatro. A minha vida profissional começa no teatro, em 1942, quando eu tive a minha primeira peça encenada. Antes disso, eu tinha escrito já uma peça que foi premiada [A comédia dos moralistas, premiada pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), em 1939], aos 15 anos de idade, mas que infelizmente não foi encenada. Então eu comecei no teatro, depois eu tive uma breve incursão pelo rádio, até aqui em São Paulo, por motivos econômicos eu tive que aceitar o emprego no rádio. Depois eu voltei ao teatro, então foi aí que realmente eu tive um... eu escrevi a maioria da minha obra mais conhecida.

Alberto Guzik:
Dias, você passou pela história do teatro brasileiro recente, por quase toda ela. 1942, aí você pega... você não entra no TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], mas você entra no final do TBC, pela mão do Flávio [Nogueira] Rangel [(1934-1988), diretor e destacado encenador, pertence à primeira geração de brasileiros na era pós-Teatro Brasileiro de Comédia], para a sua consagração com O pagador de promessas [peça encenada pela primeira vez em São Paulo, em 1960] e A revolução dos beatos [peça criada em 1962 pelo Teatro Brasileiro de Comédia, com direção de Flávio Rangel, recebeu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo de melhor texto]. Depois você vai para a televisão. Como é que você vê esse processo? O que você sente de fundamental, se mexeu no teatro, e o que de fundamental se mexeu na sua obra nesses 53 anos?

Dias Gomes:
É, até houve uma intriga feita por um repórter, um jornalista, que fez uma manchete escandalosa em um jornal no Rio em 1980. A manchete era assim: "Que Nelson Rodrigues [(1912-1980), importante e polêmico dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro] não me ouça, mas eu sou o teatro brasileiro". [risos] Eu nunca disse isso.

Alberto Guzik:
Você nunca disse isso?

Dias Gomes:
Nunca disse isso. Ele é que me disse, focalizando esse meu tempo de teatro, que eu comecei nos anos 1940, ainda no velho teatro, eu passei pela renovação...

Alberto Guzik:
Você começou com o Procópio Ferreira? [nome artístico de João Álvaro de Jesus Quental Ferreira, (1898-1979), ator, diretor de teatro e dramaturgo brasileiro, atuava no circo-teatro, que além de números de acrobacias, malabarismo e palhaçadas, apresentava a adaptação de peças de teatro. Do circo-teatro passou às comédias, produzindo uma inovação: lançou o teatro de frases, com tiradas e expressões cortantes para substituir a tradicional comédia de costumes]

Dias Gomes:
Com o Procópio Ferreira. Eu passei pela renovação, tenho a pretensão de ter contribuído até um pouco para a renovação da dramaturgia brasileira. E até hoje estou na militância. Então, ele referindo-se a isso, disse: “Poxa, você é todo o teatro brasileiro”. E eu disse: “que Nelson Rodrigues não nos ouça”. Ele pegou e fez uma intriga e levou para o Nelson, e o Nelson ficou uma fera. [risos] Me esculhambou e tal, aí houve uma polêmica. Eu estava lançando uma peça, Campeões do mundo, a produção da peça achou ótimo, começou a estimular a polêmica, porque fazia propaganda da peça. Aí ele disse que eu tinha começado imitando Joracy Camargo [(1898-1973), jornalista, cronista e primeiro dramaturgo brasileiro a abordar questões do proletariado], e eu disse que ele era o Tennessee Williams [pseudônimo de Thomas Lanier Williams (1911-1983), dramaturgo norte-americano, consagrou-se com a peça Um bonde chamado desejo, de 1947, com a qual ganhou o Prêmio Pulitzer] de Madureira... [risos] A coisa pegou fogo, mas foi tudo armado. Evidentemente foi uma polêmica armada pela imprensa. A imprensa, você sabe, arma essas coisas.

Rita Buzzar:
Dias, você acha que a dramaturgia está em crise? Quer dizer, tanto a dramaturgia de televisão, novela, minissérie e do teatro também?

Dias Gomes:
Eu acho que a dramaturgia universal está em crise, aliás, eu acho que todas as artes estão em crise. Nós vivemos um fim de século, um característico fim de século, em que realmente não há nada. Nós esperamos  que vá acontecer alguma coisa, e certamente irá acontecer talvez no início do século XXI. Mas nós vivemos em todas as artes uma espécie de entreato, uma espécie de tempo de espera, muito propício ao charlatanismo, aos neo qualquer coisa e tal - compreendem? - que escondem uma crise de criatividade. Nós não temos no momento um grande movimento artístico de parte nenhuma, como o romantismo, o modernismo, nós não temos. Temos o chamado neo-modernismo que não é nada, é um rótulo apenas para encobrir o grande vazio em que nós estamos. Então não é só a nossa dramaturgia que está em crise, é a dramaturgia universal, a americana, a francesa, européia...

Rita Buzzar:
Mas isso é uma crise de identidade cultural que traz essa...

Dias Gomes:
Eu acho que é uma crise de criatividade, de alguma coisa nova, de uma reação que deve vir...

Matinas Suzuki:
Dias, nós temos aqui dois telespectadores que, por coincidência, são da Freguesia do Ó, aqui em São Paulo. E a pergunta deles vai nessa direção, já estão chegando aqui as primeiras perguntas, as primeiras participações. A que você atribui essa falta de criatividade? Por que as novelas estão insistindo nos temas tradicionais e não inovadores? Essa é a questão que os dois telespectadores nos colocam aqui. O Claudinei Barbosa e o Zeno Pereira.

Dias Gomes:
Bom, a televisão faz parte desse contexto cultural e evidentemente não podia escapar a essa crise. No caso específico da novela, eu acho que falta a inquietação, por exemplo, nos anos 1970 a busca de novos formatos, de novas temáticas que existiu durante os anos 1970, quando a novela firmou a sua linguagem popular, de meio de expressão popular, uma linguagem própria, que não era mais aquela linguagem radiofônica do início, nem o mau teatro, nem uma cópia do cinema. Mas era uma coisa como um meio de expressão popular com uma linguagem própria de televisão. Então, nos anos 1970, houve uma busca de linguagem, e com isso houve experiências. Cada novela era uma experiência nova, que não se sabia se ia dar certo ou não, era cercado de grande expectativa. A Globo, por exemplo, onde se desenvolveu mais essa busca de linguagem, tinha um horário, às 10 horas da noite, que não interferia na programação. Quer dizer, se não desse certo, não derrubava a programação toda, onde se podia fazer uma experiência nova. Quase todas as novelas que eu escrevi naquela época foram ao ar embaixo de enorme apreensão. A primeira novela que eu fiz assim - Bandeira 2 [exibida de outubro de 1971 a julho de 1972] - passada em um sub-mundo de bicheiros, de escola de samba, foi debaixo de enorme expectativa. Achávamos que o público não estava preparado para receber isso, porque o público da novela era um público romântico e tal. E eu fui botar um herói, velho, bicheiro, um mau caráter e tudo - no entanto, a novela deu certo. E com isso aí se dá um passo adiante. Como sempre aí se assimila aquilo que tinha sido contestado. E quase todas as experiências nessa ocasião... Foram vários depois de mim, foram vários autores de teatro para a televisão, como Jorge Andrade [(1922-1984), dramaturgo e escritor brasileiro, abordou, em suas peças e novelas, a desordenada passagem do Brasil rural para o urbano], Lauro César Muniz [(1938-), escritor brasileiro, famoso autor de telenovelas, roteiros cinematográficos e peças teatrais] já estava lá... E cada um se animou a fazer uma experiência nova e tal... E a maioria dos autores, como eu e o Jorge Andrade, que eu falei agora, levavam a sua temática teatral para a televisão. O bem amado [exibida em 1973, foi a primeira novela em cores na TV brasileira. Como série, estreou em 1980 e ficou no ar até 1984] é uma peça de teatro, Roque Santeiro [sua exibição na TV foi censurada em 1975 durante a ditadura militar. Em 24 de junho de 1985, a telenovela estreou na Rede Globo] é uma peça de teatro também. O espigão [exibida pela Rede Globo de abril a outubro de 1974, foi a primeira telenovela a tratar de ecologia na televisão], no início, é uma peça de teatro que depois eu desenvolvi. Então isso, no meu caso, era mais ou menos uma questão de segurança. Eu ia para um meio cuja linguagem eu não dominava, eu tinha já nome no teatro, eu tinha uma responsabilidade. Eu digo “muito bem, pelo menos na temática eu vou me segurar, não vou abrir mão da minha temática, ninguém vai dizer o que eu vou escrever”. Agora eu vou buscar, pesquisar uma linguagem nova nesse veículo aí que eu não tenho condições, seria até contraditório eu recusar essa experiência. Então...

Claudinei Ferreira:
Eu quero só te perguntar simplesmente o seguinte. Você disse que a dramaturgia mundial está em crise, evidentemente a gente percebe isso. Eu quero saber se a dramaturgia de Dias Gomes está em crise e por quê?

Dias Gomes:
Também eu faço parte, não é?

Claudinei Ferreira:
Por quê? Como é que você percebe que está em crise?

Dias Gomes:
Eu acho que depois... no caso específico nosso aqui [no Brazil], nós passamos por uma ditadura, nós aprendemos a escrever sob censura, a escrever com metáforas. E toda aquela dramaturgia que é rotulada como a nova dramaturgia brasileira, surgida nos anos 1950 e 1960, passou pela ditadura e teve que sobreviver a ela, debaixo de um teatro metafórico. Depois que houve a abertura, quando as peças passaram a não ser mais proibidas, nem cortadas, etc e tal, o mundo havia mudado também. Já tinham se passado vinte anos e a situação era outra, e impunha-se uma linguagem nova. E eu acho que nós ficamos em uma certa perplexidade da busca dessa linguagem...

Alberto Guzik:
Você sente isso na sua geração?

Dias Gomes:
Eu sinto isso na minha geração. Alguns até pararam de escrever. Eu tentei buscar essa identidade com o novo público, que além do mais, era muito influenciado pelo audiovisual, que nesses vinte anos tomou conta, passou a fazer um outro tipo de leitura. Então é preciso levar tudo isso em conta, as mudanças no mundo, tudo isso aí. Então eu tentei, fiz algumas experiências como os Campeões do mundo, é uma experiência...

Claudinei Ferreira:
Qual foi a última peça que você escreveu e que o empolgou?

Dias Gomes:
São todas uma tentativa de busca, mas eu acho que elas transpiram a perplexidade em que eu me encontro. E isso atingiu a todos os autores...

Hamilton dos Santos:
Dias, quando você diz que a dramaturgia em geral está em crise, você inclui também a teledramaturgia. No sentido específico da teledramaturgia, você acha que o trabalho em equipe para  se escrever novela mais acentua essa crise de falta de criatividade ou contribui como uma possibilidade, um caminho para melhorar isso?

Dias Gomes:
Talvez seja uma das conseqüências. É mais uma conseqüência do trabalho exaustivo, brutal, que é escrever uma novela sozinho. Coisa que eu fiz algumas vezes, e [é] terrível. Você, solitário dentro de casa, passar um ano inteiro escrevendo 30 e tantas laudas por dia, sem poder ir a lugar nenhum, sem poder ir a teatro, a cinema, sem poder conversar com os amigos sequer. Porque dentro daquele mundo que você criou... isso é uma coisa terrível, desgastante, que a Globo teve o bom senso de procurar, pelo menos, solucionar, já que os velhos autores, os veteranos, que começavam a ficar cansados, alguns morreram até, outros já estavam muito cansados, e os novos  não tinham a mesma cancha.

Hamilton dos Santos:
Uma das coisas que eu queria saber do senhor é a seguinte. A sua teledramaturgia e a sua dramaturgia também sempre foram veiculadas pela Globo. O senhor já sofreu algum tipo de convite de outras televisões? Porque esse relacionamento assim tão próximo da Globo?

Dias Gomes:
Não, eu fui contratado pela Globo em 1969. Antes disso eu fiz televisão, até fiz televisão, mas ninguém sabe. [risos] Porque eu fiz televisão, primeiro com pseudônimo...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Qual?

Dias Gomes:
É uma história, se quiserem eu conto. Em 1953, eu fui à União Soviética. Naquele tempo, ir a União Soviética era um crime. Eu fui escondido, eu fui em uma delegação de escritores, era a segunda delegação de escritores brasileiros que ia...

Matinas Suzuki:
Você era do Partido Comunista naquele tempo?

Dias Gomes:
Eu era do Partido Comunista, justamente essa viagem foi programada pelo partido. E, para ir, eu tive que fingir que eu ia para a Inglaterra, fui para Praga; de Praga eu peguei um avião, fui para Moscou. Enquanto eu estou em Moscou, o Carlos Lacerda [(1914-1977), jornalista, fazia ferrenha oposição ao governo de Getúlio Vargas, sendo considerado o pivô do atentado que provocou o suicídio do então presidente], que era diretor [e fundador] da Tribuna de Imprensa, descobriu...

Matinas Suzuki:
Que você estava lá.

Dias Gomes:
...que eu tinha ido. Eu era diretor da Rádio Clube do Brasil...

Matinas Suzuki:
Tinha informações da KGB [sigla de Komitet Gosudarstvenno Bezopasnosti (Comitê de Segurança do Estado). Criada em 1954, era a principal agência de inteligência e segurança da extinta União Soviética]. [risos]

Dias Gomes:
Então ele descobriu, não sei como ele achou até uma foto minha, na Praça Vermelha [praça localizada em Moscou, de grande importância histórica, pois foi palco de execuções políticas, comércio popular, comícios, desfiles, festas religiosas. Foi na Praça Vermelha que Lênin discursou no primeiro aniversário da Revolução Russa], carregando uma coroa de flores para o túmulo de [Vladimir] Lênin [(1870-1924), líder da Revolução Russa (1917) e chefe de governo da Rússia de 1917 a 1922]. [risos]

Dias Gomes:
Então ele fez uma manchete lá: “Diretor da Rádio Clube vai a Moscou depositar flores para o túmulo de [Joseph] Stalin [(1897-1953), político soviético bolchevista que governou a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) por quase 30 anos. Após a Revolução Russa, tornou-se secretário geral do Partido Comunista, em 1922], com dinheiro do Banco do Brasil”. [risos] O dinheiro [para a viagem] eu tomei com um agiota, na ocasião, e levei um ano pagando. Mas como ele [Carlos Lacerda] estava em uma campanha contra o Samuel Wainer [(1912-1980), jornalista, fundador, editor-chefe e diretor do jornal Última Hora, abertamente favorável ao governo de Getúlio Vargas], aquela célebre campanha que levou o Getúlio [Dornelles Vargas (1882-1954), governou o Brasil de 1930 a 1945 no Estado Novo; e de 1951 a 1954, como presidente eleito pelo voto direto] ao suicídio, e um dos inimigos dele era o Samuel Wainer, que havia tomado um empréstimo do Banco do Brasil, facilitado pelo Getúlio Vargas. Então por isso ele estava combatendo a Última Hora e a Rádio Clube, que era do Samuel. E eu entrei bem nessa história. Quando eu cheguei aqui, fui demitido. Era a época do macarthismo [referência às ações adotadas por proposta inicial do senador estadunidense Joseph McCarthy, entre a década de 1940 e 1950, caracterizadas por perseguição política, prisões, denúncias sem provas, estímulo à delação, formulação de listas de suspeitos e agressão às liberdades individuais nos EUA], então eu fiquei em uma espécie de lista negra, e durante um ano, eu não consegui trabalhar.

Matinas Suzuki:
Mas não pediu aposentadoria também, não?

Dias Gomes:
Não, nem tinha na época. Surpreende essa aposentadoria especial. E eu fiquei sem poder assinar meu nome em lugar nenhum, nem em jornal, nem em revista, nem nada. Porque eu fiquei marcado [como] aquele cara que foi a Moscou. Então na época, foi um escândalo. Então eu comecei a escrever para a TV Tupi, que estava começando, e não tinha redatores contratados, comecei a escrever no nome de três pessoas. Eu tinha que escrever muitos programas que eram pagos a cachê, o cachê era miserável. Para sobreviver, eu tinha que escrever muito programa, então eu arranjei três amigos. Um deles era a minha própria mulher, a Janete [Clair (1925-1983), autora de folhetins para rádio e televisão, foi uma das principais novelistas da Rede Globo, onde ficou conhecida como a “Maga das Oito”, pelo grande sucesso de suas novelas, exibidas às oito da noite], e mais dois amigos que assinavam, iam lá, negociavam e me davam o dinheiro. Assim eu sobrevivi durante um ano, fazendo televisão. Por isso eu digo ninguém sabe que eu [...] Mas essa foi a minha estréia na televisão, com pseudônimo.

Matinas Suzuki:
E aí você foi para a Globo?

Dias Gomes:
Mas a Globo foi muito depois, a Globo foi em 1969, quando quase todas as minhas peças já estavam proibidas pela censura.

Esther Hamburger:
Como é que foi a influência dessa militância no Partido Comunista no seu trabalho? Como é que você vê isso?

Alberto Guzik:
O que o levou para o partido também. O que o fez se aproximar do partido?

Dias Gomes:
Eu sempre fui um rebelde. Um rebelde na juventude, nos movimentos estudantis. Eu participava, não tinha nenhuma ideologia na cabeça. Tinha aquele negócio, aquela revolta da juventude, que eu impulsionava contra qualquer coisa. Isso me levou naturalmente, normalmente me levou ao partido aqui em São Paulo. Mas, antes disso, eu participei de campanhas, campanha para o Brasil entrar na guerra, como estudante, em 1942. Eu era um rebelde sem causa, sem ter ideologia. E até que aqui, em São Paulo, eu fui normalmente bater no partido. Tornei-me um militante do partido, fui um péssimo militante, tanto que nos anos 1970 eu fiz uma autocrítica e resolvi sair do partido, achando que realmente eu não tinha nenhuma vocação para militância. Sempre fui muito indisciplinado, e o militante tem que ser disciplinado; uma decisão do partido é uma decisão que tem que ser obedecida. Eu, por exemplo, nunca submeti nada que escrevia ao partido...

Alberto Guzik:
Mas não é de lei isso? O senhor não tem que...

Dias Gomes:
Nunca submeti...

Hamilton dos Santos:
E aos censores da televisão?

Dias Gomes:
Ah, bom, isso sim.

Esther Hamburger:
E o partido aprovava o trabalho na televisão? Como é que o partido via o trabalho na televisão?

Dias Gomes:
Quando eu fui para a televisão, eu já estava mais ou menos saindo do partido, foi em 1969. Nos anos 1970, eu já estava cheio de inquéritos policiais militares, e logo uns dois ou três anos depois eu me desliguei do partido. Quer dizer, não houve um problema de televisão no partido, o problema era teatro. As peças teatrais poderiam ter sido censuradas pelo partido se eu submetesse, como muita gente submeteu. Eu sei de caso até do Jorge Amado [(1912-2001), escritor brasileiro dos mais consagrados e traduzidos, cujas obras foram das mais adaptadas para a televisão], por exemplo, que submetia os romances ao partido. Uma coisa que eu jamais admiti. E por isso eu acho que não houve nenhuma influência. Eu não sei, vocês que são críticos é que têm que analisar isso.

Hamilton dos Santos:
Mas dentro da televisão, além de censura política que deve ter havido muitas vezes, também houve algum outro tipo de censura como temática, por exemplo?

Dias Gomes:
Sim. Primeiro havia a censura federal, a censura era federal no tempo da ditadura. Quem cortava, quem proibia era Brasília, era a censura em Brasília.

Hamilton dos Santos:
Não, eu digo internamente, dentro da televisão.

Dias Gomes:
Internamente, depois que caiu a censura federal de Brasília, aí a empresa teve que assumir a censura. Então existe naturalmente uma censura...

Hamilton dos Santos:
Você teve que abandonar algum tema dentro da televisão, algum tema que o senhor queria desenvolver, numa certa novela, que o senhor teve que abandonar?

Dias Gomes:
Bom, não sei se isso é censura. Mas você, na televisão, o mecanismo é o seguinte. Você apresenta uma sinopse, uma história para ser aprovada ou não. Então pode não ser aprovada e ninguém vai dizer que foi censura.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Dias, nos anos 1970 qual era o tema que virtualmente poderia ser proibido? Se você apresentasse uma sinopse com determinado tema em que ele não passaria? Qual era o assunto mais...

Hamilton dos Santos:
Homossexualismo, por exemplo...

Dias Gomes:
Olha, é muito difícil responder essa pergunta...

[...]:
Relações raciais.

Dias Gomes:
...porque a censura...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Não, estou falando dentro da Globo.

Dias Gomes:
... sempre foi sempre sem critérios...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Não, estou falando assim, dentro da Globo, quando você apresentava uma sinopse.

Dias Gomes:
Não, nos anos 1970 a censura não era da Globo, a censura era federal.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Não, quando passou a federal, como você falou agora há pouco...

Dias Gomes:
Aí já não era mais anos 1970, aí já foi na abertura...

Maria Amélia Rocha Lopes:
A Globo já começou a exercer o papel da censura, você falou...

Dias Gomes:
Sim.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Nesse período, qual era o tema mais difícil de ser aprovado?

Dias Gomes:
Não sei, quase todos os temas têm uma certa dificuldade, sempre bate em alguns problemas. Eu não posso especificar exatamente um tema que seja proibido,  porque essa coisa...

Rita Buzzar:
Qual o tipo de censura [é] mais dolorida para o autor? É a censura do Estado ou a censura dentro do meio de produção?

Dias Gomes:
Eu acho que a censura da empresa é pior, porque contra ela você não pode fazer nada. A censura de Brasília, por exemplo, eu ia para Brasília, discutia com a censura, às vezes conseguia convencer o censor a liberar algumas coisas, algumas cenas e tal, havia uma negociação. Quando a censura é da empresa, é um problema da empresa, pronto e acabou.

Claudinei Ferreira:
Dias, qual era a sua atitude profissional diante da censura? Você já escrevia pensando na censura - essa censura federal, a institucionalizada? Você já escrevia pensando na censura ou você falava: bom eu faço a minha parte, o censor faz a dele? Qual era a sua atitude profissional? E conte um caso, porque os casos que os escritores contam da censura são hilariantes. Você deve ter milhões de casos absolutamente hilariantes, conte um caso. Então qual era a sua atitude profissional e um caso.

Dias Gomes:
Minha atitude era a seguinte: eu vou fazer a minha parte, e o problema de censurar é com eles.

Claudinei Ferreira:
Você escrevia livremente?

Dias Gomes:
Eu não vou me censurar jamais. Eu não vou deixar de escrever uma cena porque eu acho que ela vai ser cortada. Às vezes, eu até fazia sabendo que ia ser cortada. Você aprende durante esse período ditatorial também a jogar com a censura. Então muitas vezes, eu fiz cenas para serem cortadas, que é uma maneira de você entregar o boi...

Alberto Guzik:
Para negociar outras que poderiam passar no balde?

Dias Gomes:
Aquele boi de piranha, né? Você entrega um boi para passar o outro. Eu sempre fiz muito esse jogo. E, como eu disse, a censura primava pela falta absoluta de critérios, era muito difícil você saber exatamente o que ia ser proibido.

[...]:
Por exemplo?

Dias Gomes:
Porque mudava, a censura sempre ia de acordo com... Às vezes, era a influência da mulher do general, que falou contra isso ou contra aquilo, então a censura resolveu, tal. É muito difícil ter um código. Uma vez eu disse isso, eu disse até a um chefe de censura isso. Ele já havia censurado uma novela minha, Saramandaia [exibida na Rede Globo de maio a dezembro de 1976]; ele havia cortado várias cenas, a novela estava quase que impraticável de tanto corte. E havia um corte em uma cena que eu não conseguia detectar a razão do corte, não tinha nenhum problema político, não tinha nenhum problema moral, não tinha nada. Eu digo “mas por que ele cortou, era uma cena”... Aí então eu disse a ele: “olha, vamos supor que eu queira, de hoje em diante, ser um bom moço e queira escrever para não ser proibido. Então eu preciso ter critérios, por exemplo, entender porque vocês cortam. Esta cena aqui, por exemplo. Me explica qual foi o critério para cortar essa cena, porque eu não consigo entender”. Aí o chefe da censura leu e disse: “É, realmente eu não sei... Quem foi que censurou?" [risos] Aí mandou chamar o censor: “Foi você que cortou essa cena”? Ele leu e disse: “Ah, foi sim”. “Então me explica por quê, porque eu não entendo. É uma cena que não tem nada”. Ele deu uma risadinha e disse: “Aí não tem nada, mas o que você estava pensando quando escreveu isso é que é o problema”. [risos] O cara leu o pensamento...

Matinas Suzuki:
Dias, você falou em Saramandaia. A Lídia Costa da Penha quer saber por que você não insiste com a Rede Globo para passar novamente Saramandaia

Dias Gomes:
Eu não tenho que insistir, isso é um problema da Globo. Isso é um problema empresarial.

Alberto Guzik:
Eu queria saber se a censura do teatro era diferente da televisão e qual foi o texto teatral que mais deu problemas com a censura?

Dias Gomes:
Foi o Berço do herói, que foi o Roque Santeiro depois, que foi proibido na noite da estréia...

Alberto Guzik:
Conta essa história.

Dias Gomes:
O texto tinha sido liberado, e na noite da estréia, já com o público na platéia, já...

Matinas Suzuki:
Que ano foi?

Dias Gomes:
Foi em 1965. Veio a proibição, e é uma história kafkiana [absurda, incoerente. O termo foi inspirado no escritor Franz Kafka (1883 - 1924), que em suas  explora situações estranhas da opressão da sociedade e suas instituições burocráticas] porque os censores haviam aprovado o texto e, de repente, o espetáculo foi proibido. Aí, então, eu perguntava: “tudo bem, mas se o texto foi aprovado, por que o espetáculo”... “Ah, bom, é porque o espetáculo alterou o texto”. Eu digo: “muito bem. Então suponhamos que eu queria encenar a peça sem essas alterações. Vocês me digam quais foram essas alterações e nós vamos encenar o texto rigorosamente como vocês aprovaram”. “Ah, não, não pode”. Digo: “por quê?” "É porque o texto foi alterado." [risos] Então é uma coisa kafkiana, que ficou sem sentido. Na verdade, eu lembro que foi feita uma campanha para a liberação da peça, aí chegou um dia em que uma delegação de atores foi ao Carlos Lacerda, que era governador do então estado da Guanabara [tornou-se, mais tarde, o Rio de Janeiro], para pedir a ele para intervir. E ele teve a seguinte surpresa, ele disse: “Quem proibiu a peça fui eu! Eu proibi essa peça porque ela é imoral e subversiva”. Até algum ator lá disse assim: “Mas o Nelson Rodrigues é imoral e é encenado”. Ele disse: “Mas o Nelson Rodrigues é só imoral, não é subversivo”. [risos] Então descobriu-se que o Lacerda tinha proibido a peça por pressão dos militares. Porque o herói da peça é um cabo da Força Expedicionária Brasileira que deserta. E, como você sabe, soldado brasileiro não deserta, não é covarde. Então, por isto, os militares insistiam na proibição da peça. Dez anos depois, em 1975, eu resolvi adaptar essa peça para a televisão, e como eu sabia qual era a razão da proibição, que era justamente o personagem central, eu transformei esse cabo em um santeiro, fazedor de santos, e desenvolvi a minha matemática da peça e tal. Era a mesma coisa, mas mudando o nome dos personagens e tal. E surpreendentemente a novela foi proibida também. Também não se entendeu por quê, porque também a censura não explicava por quê tinha proibido. Era também um jogo kafkiano, a TV Globo ficou uma semana inteira lutando para liberar a novela, não conseguiu. No dia da estréia da novela foi feito um editorial, dizem até que foi redigido pelo doutor Roberto Marinho, contra a censura. Ninguém entendeu, a Globo se rebelando contra o regime. E ficou esse tempo todo sem ninguém saber exatamente por que Roque Santeiro foi proibido. Até porque dez anos depois, em 1985, foi exibida a novela, ela já tinha 51 capítulos escritos antes. Todo mundo olhava e dizia: “Mas por que foi proibido isso”? Não se entendia. Até que com a abertura dos arquivos do Dops [Departamento de Ordem Política e Social, foi o órgão do governo brasileiro criado durante o regime militar para controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao poder estabelecido], encontrou-se lá o registro de telefonemas gravados. E um dos telefonemas gravados era entre o historiador Nelson Werneck Sodré (1911-1999) e eu. E ele me perguntava pelo telefone: “O que você está fazendo”? Eu disse: “eu estou fazendo aqui uma pequena sacanagem. Eu estou adaptando o Berço do herói para a televisão, mudei o título”. Ele disse: “Mas não passa, você sabe que os militares”... Eu disse: “não, mas eu fiz uma tapeação aqui, [risos] mudei o nome dos personagens, é a mesma coisa, mas eles não vão perceber não”. Aí o Nelson deu uma gargalhada e disse: “É, não vai, esses milicos são muito burros”... [risos] E tudo sendo gravado. E por causa disso é que foi proibido, e eles não podiam dizer, a censura não podia dizer, porque não podia dizer que gravou uma conversa, não é?...

Matinas Suzuki:
Estava grampeado.

Dias Gomes:
Então ficou aquela coisa que ninguém sabia o que era, é proibido para o horário. Aí eu disse assim: “se levar em outro horário, pode”? “Aí vai ter muitos cortes”. “E quantos cortes?” “Em cada capítulo, restam uns dez minutos, assim”... “Mas diz quais são”. “Bom, aí tem que rever, pode ser que não restem nem 10”. Era uma conversa assim, porque eles não podiam dizer que tinham proibido porque tinham gravado uma conversa telefônica.

Esther Hamburger:
Agora o Roque Santeiro é um dos marcos, é uma das telenovelas que teve maior audiência, e é de certa forma um marco...

Dias Gomes:
É, foi uma novela que teve uma audiência espantosa.

Esther Hamburger:
Daí em 1985, dez anos depois, inclusive fora do Brasil, ela tem uma repercussão muito grande...

Dias Gomes:
É, foi em Portugal, Cuba também. Em Cuba, há uma história muito engraçada. Quando a novela foi lançada nos Estados Unidos entrevistaram um cubano, porque tinha sido um grande sucesso em Cuba, um cubano anti-castrista. E [sobre] esse cubano - me mandaram a reportagem - declararam que ele tinha fugido de Cuba na hora da novela porque naquela hora estava todo mundo vendo a novela, até o Fidel Castro [(1926-), tomou o poder em 1959 e permaneceu no governo de Cuba até 2008, quando, devido a problemas de saúde, transferiu o comando a seu irmão, Raúl Castro]. [risos] Ele botou o barquinho no mar e se mandou. E eu fiquei com um remorso desgraçado, [de] colaborar para um anti-castrista. Indiretamente eu tinha colaborado.

Matinas Suzuki:
Dias, um pouco sobre essa questão, já devem ter feito essa pergunta para você n vezes, mas... Você em algum momento teve alguma crise de consciência, por exemplo, nos anos mais terríveis da ditadura, de estar produzindo novelas para a Rede Globo, que no noticiário, por exemplo, escondia... Você tentava colocar uma mensagem nas novelas que o noticiário da Rede Globo estava escondendo todo dia? Isso chegou a dar algum drama de consciência a você?

Dias Gomes:
Não. Nunca me deu drama de consciência porque eu tive...

Matinas Suzuki:
Como é que você resolveu isso para você mesmo?

Dias Gomes:
Eu sempre escrevi o que quis escrever. Nunca eu recebi encomendas, nunca a Globo me disse “Você tem que fazer isto ou fazer aquilo”. Eu apresentava os meus temas, minhas histórias, eram aprovadas ou não. E eu sempre escrevi sem intervenção nenhuma. Quer dizer, eu podia ser um som dissonante dentro da Globo, como era O bem amado, por exemplo, que era um programa que passava alguma crítica ao regime, em uma época em que não se podia criticar nada. Então eu tinha aquela janelinha lá e tal, como alguns de vocês que são jornalistas trabalharam em jornais também que apoiavam a ditadura, mas tinham que trabalhar, como profissional. Eu sei até de jornalistas que faziam editoriais de jornais reacionários, [mesmo] sendo homens de esquerda. Porque como profissionais, têm que trabalhar. Então não tem nada a ver uma coisa com a outra, e sim uma confusão. É claro que houve um patrulhamento, quando eu entrei para a Globo, por exemplo, houve um certo patrulhamento, não de pessoas que eu respeitasse. Eu acho que os intelectuais de respeito não caem nesse tipo de colocação. Mas houve um certo patrulhamento, uma certa área, mas eu nunca tive nenhum problema de consciência, por causa disso não, eu acho inteiramente idiota.

Matinas Suzuki:
Já que a gente está falando da Rede Globo, a Globo publicou recentemente, semana passada, nos jornais, uma fórmula que me pareceu bastante engraçada, que era o seguinte: 30% de drama, 24% de traição, 45% de suspense, 1% de felicidade. Tudo isso pode fazer uma vida detestável ou uma novela adorável. Você acha essa fórmula correta para fazer novelas?

Dias Gomes:
Esse problema de fórmulas é que está levando, acho, à crise atual. Porque eu acho que tem que quebrar a fórmula; se você começa a cair na fórmula começa a se repetir. Se você tem uma fórmula para tudo, vai cansando. O que é preciso é sair da fórmula.

Hamilton dos Santos:
E foi esse o motivo que o levou a parar, a não querer mais escrever novela?

Dias Gomes:
Não.

Hamilton dos Santos:
O medo de se repetir?

Dias Gomes:
Não foi bem esse, não. Eu nunca tive preconceito contra novela porque eu não tenho preconceito contra nada, eu acho preconceito uma atitude burra. É você ter, como a palavra diz, pré-conceito, antes do conceito, você já ter uma colocação. Então eu não tenho preconceito contra novela, tanto que eu encarei a novela de frente e tal. E fiz novela com a mesma seriedade com que eu escrevia as minhas peças, não é esse o problema. Eu acho é que a novela é um trabalho exaustivo, não é um meio de vida, é um meio de morte! A novela deveria ser feita por um autor só, e reconheço que realmente para um autor fazer uma novela...

Hamilton dos Santos:
 Por quê? Você acha que a equipe assim... O autor de novela que sempre assim... Embora criticado pelos intelectuais, ele sempre teve certo prestígio e bastante dinheiro. Você acha que com uma equipe, o autor acaba perdendo também esse prestígio?

Dias Gomes:
Eu acho que perde a unidade, por mais que você...

Rita Buzzar:
Você acha que perde a marca do autor? Quer dizer...

Dias Gomes:
Eu acho que perde...

Rita Buzzar:
A marca do...

Dias Gomes:
Necessariamente perde. É impossível não perder...

Rita Buzzar:
Fica um pouco um sistema industrial [de] escrever?

Dias Gomes:
É, fica um sistema industrial de produção, exatamente.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Dias, você, além de escrever, você assiste a novelas?

Dias Gomes:
Não.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Por quê?

Dias Gomes:
Eu só assisto as minhas por obrigação. [risos] É porque a novela prende muito, eu tenho outras coisas que fazer. Você ficar preso a uma novela... Geralmente eu vejo um capítulo ou outro assim...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Você não está acompanhando, por exemplo, nenhuma das que estão no ar agora na Globo?

Dias Gomes:
Não, não estou.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Quer dizer, você não poderia dizer quem seria agora o seu autor preferido de novela?

Dias Gomes:
Não, não poderia.

Hamilton dos Santos:
Essas muitas outras coisas, o que fazer, que você disse, “eu tenho muito mais coisas para fazer”, inclui escrever muito. Atualmente, em que forma você se sente melhor escrevendo? Em forma de romance, teatro? O que mais lhe dá prazer hoje em dia?

Alberto Guzik:
Eu queria acrescentar uma coisa. Como é o seu método, como é que você escreve? Você tem algum método? Você tem um processo? Você vai todo dia de manhã para a máquina ou para o computador? O Sábato Magaldi [(1927-), historiador, jornalista, professor, ensaísta e crítico teatral brasileiro] até hoje escreve na máquina de escrever, ele tem pavor de computador. Você também é assim?

Dias Gomes:
Não, eu escrevo em computador há muito tempo já, e não sei mais escrever à máquina. Se me obrigarem a escrever à máquina eu vou ter uma grande dificuldade, já me habituei ao computador. Não tenho propriamente um método não. Eu tenho uma hora  que me parece mais agradável escrever, que é no fim da tarde. Entre cinco e oito horas da tarde, que é uma hora meio morta; mas se for preciso, eu escrevo de manhã, escrevo de noite. De uns tempos para cá, eu resolvi resistir a esse negócio de escrever à noite. Há uma frase, um chavão, “a noite é feita para o amor”. E eu estou inteiramente de acordo. [risos] A noite é feita para o amor e para as coisas que você gosta, para as coisas às quais você tem amor também. Então a noite é feita para ir ao teatro, é feita para ler, é feita para namorar, para fazer amor, não é feita para trabalhar, eu acho.

Rita Buzzar:
Você escreve todos os dias, é um escritor compulsivo ou é aquele que é difícil? Como é que é?

Dias Gomes:
Eu sou compulsivo desde os 15 anos de idade. [risos]

Rita Buzzar:
Todo dia...

Dias Gomes:
Eu escrevo todo dia, todo dia, todo dia, e é a mesma compulsão. Inicialmente eu escrevia compulsivamente, escrevia todos os gêneros ao mesmo tempo: fazia teatro, romance, conto. Perpetrei até algumas poesias que felizmente tive o bom senso de rasgar. Compulsivamente porque eu achava que eu ia morrer cedo...

Rita Buzzar:
Por quê?

Dias Gomes:
Aquela coisa meio romântica assim né, Castro Alves [(1847-1871), poeta brasileiro do romantismo conhecido como “Poeta dos Escravos”] morreu aos 24 anos, [Manuel Antônio] Álvares de Azevedo [(1831-1852), escritor, contista, dramaturgo, poeta e ensaísta brasileiro da segunda geração romântica] também, eu deveria morrer por aí. Então eu tinha aquela febre de escrever.

Alberto Guzik:
Isso foi em 1820...

Dias Gomes:
Pois é, mas eu tinha essa idéia romântica que eu deveria morrer cedo. Então eu tinha que escrever depressa, muita coisa e tal. Tanto que eu comecei a escrever aos 15 anos; até os 21, 22 anos eu escrevia compulsivamente. Depois eu passei a escrever por ofício, porque eu acho que o escritor de ofício tem que escrever todo dia. Ele tem, todo dia, que escrever alguma coisa...

Rita Buzzar:
Como é, por exemplo, ao longo de sua carreira toda, esse escrever todo dia? Você sente que está se renovando, que está conseguindo, de repente, encontrar uma emoção, uma palavra, muito mais precisamente do que há um ano ou dois anos? Aquele original que você guardou, aí você vai olhar de novo, você critica. Como é esse processo?

Dias Gomes:
Por isso que eu não leio muito aquelas coisas que eu escrevo no passado, porque eu sempre tenho vontade de fazer de novo e diferente. Você sempre acha que pode fazer melhor, pode até não poder, mas acha que pode. Acha que devia mudar aquilo, uma palavra aqui, uma palavra ali. E se você ficar a vida toda a reescrever as próprias peças... eu reescrevi muitas peças, quase todas as minhas peças foram reescritas, mas na mesma época. O Pagador [de promessas] eu escrevi três vezes. A versão que foi encenada aqui [São Paulo] em 1960, pelo Flávio Rangel, no TBC, foi a terceira. A primeira já havia ganhado um prêmio, mas eu continuei e tal. Eu fui para a Bahia, depois eu submeti a críticos, eu recebi algumas críticas, fiz outra versão. A primeira versão, por exemplo, não tinha o problema do sincretismo religioso, que só foi aparecer na terceira, que é fundamental para a peça.

Esther Hamburger:
Depois você ainda reescreveu para o cinema e como mini-série. Como que é essa coisa de reescrever para os diferentes meios?

Dias Gomes:
No cinema eu não reescrevi propriamente, eu até procurei colocar o mais possível a peça no filme, por uma questão até de garantia. É preciso entender que nós estávamos ainda em 1960, 1961, e o cinema brasileiro só tinha uma tradição que era a chanchada [denominação, inicialmente pejorativa, dada a filmes simplistas, com humor ingênuo, burlesco e de caráter popular do cinema brasileiro; que foram as primeiras experiências em produção cinematográfica de longa duração no país]. O Anselmo Duarte [(1920-), ator, roteirista e cineasta brasileiro] que ia dirigir o filme, que vinha das chanchadas e tal. Então, para me garantir, digo: “bom, pelo menos eu vou mostrar a minha peça”. Tanto que o filme é a peça filmada; há duas ou três cenas fora, mas o resto, se você acompanhar, vai ver que é igualzinho quase. Que era uma prova da minha insegurança com relação ao cinema. Então eu disse “vou me garantir”. Isso fez até um certo mal, talvez, ao filme, ficou um filme talvez muito acadêmico, embora seja realmente um trabalho muito bom do Anselmo. Eu tenho até que louvar essa fidelidade dele ao meu texto, foi a única vez que eu tive um texto no cinema com absoluta fidelidade. De um modo geral, você não se reconhece mais no filme. Quando você vende um argumento e vai ver o filme, não se reconhece, o diretor mudou tanto que não há mais nada...

Matinas Suzuki:
Mudando um pouco a nossa conversa, desde 1991 você é um membro da Academia Brasileira de Letras. O público de fora... a percepção que a gente tem hoje é que a Academia está mudando, está mais dinâmica, tem escritores agora que vieram de uma tradição política que era diferente da tradição que a gente acostumou a ver da Academia dos anos militares e essa coisa toda. Antônio [Carlos] Calado [(1917-1997), jornalista e romancista brasileiro, cujo reconhecimento literário se deu com o lançamento de Quarup, em 1967] está lá, Jorge Amado está lá e você está lá. O que está mudando na Academia? Você poderia dizer para nós?

Dias Gomes:
Bom, eu não sei se já mudou alguma coisa, pelo menos na composição já há pessoas que são de formação anti-acadêmica, como eu, por exemplo. Eu jamais me imaginei na Academia. Isso aconteceu, as coisas acontecem na vida da gente, você é levado às vezes por uma coisa que você nunca esperava. Eu resisti muito à Academia, e um dia um grupo de amigos me fez uma pressão, um convite, eu titubeei e no dia seguinte estava candidato. E fui eleito. Eu acho que continuo com absoluta falta de vocação acadêmica, mas sinto que a Academia está mudando, pela eleição de pessoas que têm uma mentalidade anti-acadêmica, como João Ubaldo [Ribeiro (1941-), jornalista, professor, roteirista e escritor brasileiro], como o Calado e outros, como Jorge, que já são veteranos. Não que eu tenha algo contra a mentalidade acadêmica, mas isso talvez seja um sopro de renovação na Academia, ou talvez esses novos levem a Academia a uma posição mais popular, a uma atuação maior no contexto cultural, a uma presença maior; e deixe de ser apenas um clube fechado, de 40 pessoas...

Matinas Suzuki:
Como é que você imagina que possa ser essa atuação maior?

Dias Gomes:
Participar mais da vida cultural do país, participar mais. A Academia tem meios para isso. Por exemplo, a Academia tem um teatro. Parece que até vão abrir agora. Precisam abrir esse teatro ao público e aos autores de um modo geral. Para a dramaturgia brasileira, vamos supor, é mais um espaço teatral, não para representar ali peças só de acadêmicos... Seria ficar fechado, não é?

Maria Amélia Rocha Lopes:
Dias, como é a rotina da Academia?

Dias Gomes:
Eu participo muito pouco, até porque a hora que eu gosto de trabalhar, como eu disse aqui, de cinco às oito da tarde, é a hora da sessão da Academia, às quintas-feiras. Então eu não tenho tempo para ir à Academia. Eu não vou à Academia há mais de um ano ou dois...

Maria Amélia Rocha Lopes:
E você não é cobrado por isso, pela ausência?

Dias Gomes:
É, de vez em quando o Josué me telefona, faz um apelo, e eu prometo... Mas eu não participo muito dessa rotina acadêmica. Não tenho nada contra...

Maria Amélia Rocha Lopes:
O que é? O fraque? São as conversas?...

Dias Gomes:
Inclusive não é muito do meio feitio. Eu nunca fui de participar de grupos. Você focalizou ainda há pouco a minha trajetória no teatro brasileiro. Quantos grupos teatrais que influíram decisivamente no teatro brasileiro eu vi se formarem ao meu lado e eu nunca participei de nenhum.

[...]:
O teatro se passa em 40...

Dias Gomes:
Estava-se organizando os comediantes, que tanta influência tiveram na renovação do espetáculo com o [Zbigniew Marian] Ziembinski [(1908-1978), pintor, fotógrafo, ator e  diretor polonês bastante polêmico, que se dizia o "criador do teatro brasileiro"] e tal. Eu estava estreando no momento em que os comediantes estavam estreando também, e eu não participei dos comediantes. Nos anos 1960: Teatro de Arena, Oficina depois o grupo Opinião. Todos eles eram formados não só de amigos meus como de pessoas que pensavam parecidos comigo. Havia até uma influência esquerdista em todos eles, e eu nunca participei de nenhum também. Eu nunca fui... eu sempre tive um caminho meio solitário. Então a Academia é um grupo fechado de 40 pessoas, entre as quais eu tenho amigos, tenho pessoas que prezo, que admiro, mas eu não tenho muita vocação para esse convívio, eu sou um socialista insociável. [risos]

Matinas Suzuki:
Você ainda é de esquerda?

Dias Gomes:
Sou.

Matinas Suzuki:
O que significa ser de esquerda hoje?

Dias Gomes:
É uma bobagem esse negócio de pensar que não existe mais esquerda e direita. Então nós estaríamos em uma sociedade igualitária e justa, se não existe mais esquerda e direita. Porque enquanto houver pobres e ricos, opressores e oprimidos haverá esquerda e direita. Haverá aqueles que querem mudar tudo e aqueles que querem mudar só algumas coisas para que tudo continue como está, que é o conservador. Então sempre haverá esquerda e direita.

Rita Buzzar:
Qual a sua utopia possível dentro de um horizonte?

Dias Gomes:
Toda minha juventude, e maturidade até, eu alimentei, como toda a minha geração, a utopia de uma sociedade igualitária, uma sociedade socialista. Infelizmente a tentativa, o projeto dessa sociedade, na União Soviética, nos países do leste europeu, foi um projeto deformado em sua essência, que excluía uma coisa essencial ao socialismo que é a liberdade. E no momento em que você exclui a liberdade, você não está mais realmente em um projeto socialista.

Esther Hamburger:
Dias, você já falou uma vez que existe uma missão para o teatro, que é a missão de sensibilizar as pessoas para a possibilidade de transformações. E a televisão, como é que entra nessa... Tem uma missão também?

Dias Gomes:
É muito diferente do teatro, porque o teatro tem um poder de reflexão que a televisão não tem. A televisão não é um meio propício a reflexão. Então essa missão...

Alberto Guzik:
Por quê?

Dias Gomes:
Do teatro, por exemplo, de conscientizar. Na televisão ela é muito dificultosa, pelo processo mesmo em que a televisão é feita e exibida. A televisão é exibida em uma sala, com luz acesa, com criança chorando, cachorro latindo, campainha tocando e tal. Então você propor uma reflexão profunda sobre algum tema na televisão, você está inteiramente deslocado. No teatro você pode fazer isso...

Alberto Guzik:
O ritual do teatro...

Dias Gomes:
É outro.

Alberto Guzik:
Ele estabelece essa comunicação com o telespectador.

Dias Gomes:
No teatro você vai para uma sala, tem todo um ritual, você sai de casa, se veste, vai a uma casa de espetáculos, onde a luz é apagada, é acesa a luz do palco. Toda a sua concentração... há um certo ritual que te leva a uma concentração, e onde o autor pode propor uma reflexão.

Esther Hamburger:
Por outro lado, a televisão está na intimidade das pessoas todo dia...

Dias Gomes:
É, tem o outro lado da televisão, o impacto da televisão é terrível, o impacto de denúncia da televisão é terrível. É superficial, mas é fortíssimo, inclusive porque atinge o mundo todo. A televisão está aqui e está no outro lado do mundo. Você assistiu à Guerra do Vietnã [conflito armado ocorrido entre 1958 e 1975, entre Vietnã do Norte e Vietnã do Sul, tendo este sido apoiado pelos EUA], os americanos assistiram aos filhos, parentes, os irmãos morrerem diante da tela. Isso é um impacto terrível que pode inclusive influir na opinião pública. Mas não é o problema da reflexão que é proposta do teatro, de mudar as coisas através de uma conscientização do espectador. Não que o teatro possa mudar alguma coisa, eu acho que o teatro não muda nada. Mas pode levar o espectador à consciência da necessidade de mudar. Então a mudança é feita lá fora, politicamente e tudo, mas o teatro tem esse poder.

Claudinei Ferreira:
Você quando era jovem, escrevia com um sentido revolucionário?

Dias Gomes:
Até hoje. [risos]

Claudinei Ferreira:
O que é esse sentido revolucionário?

Dias Gomes:
Esse sentido eu não...

Claudinei Ferreira:
Quer dizer, uma pessoa vê a sua novela...

Dias Gomes:
A palavra revolucionária talvez esteja um pouco gasta, né?...

Claudinei Ferreira:
Ou um pouco forte...

Dias Gomes:
Sentido [de] inconformista. Todo o meu teatro, como tudo o que escrevo, é inconformista.

Claudinei Ferreira:
O que é um teatro [inconfomista]?

Dias Gomes:
Eu acho que quando você se conforma, não há por que escrever mais. Se você está de acordo com tudo, se não tem nada para denunciar, não há razão para ocupar o tempo de ninguém.

Claudinei Ferreira:
Qualquer texto de Dias Gomes - teatro ou a ficção ou a televisão - qualquer texto é inconformista?

Dias Gomes:
É inconformista. Eu acho que essa é a chama, quando apagar, acabou. Quando eu me conformar com tudo, é melhor morrer.

Matinas Suzuki:
Dias, por favor, eu tenho aqui várias perguntas que se direcionam à sua relação com a Janete Clair. Um telespectador que não se identificou pergunta: “Qual a influência de Janete Clair nas suas obras”? A Silva Doria, de Moema, pergunta: “Como era a sua relação com a Janete Clair”? Ronaldo Correia, de Brasília, pergunta: “Nos anos 1970, como você e a Janete Clair escreviam, trabalhavam”? E a Selma Solera, da Vila Mariana, pergunta se há espaço ainda para uma teledramaturgia ou uma dramaturgia como era a da Janete Clair. Perguntam também por que Irmãos coragem [telenovela exibida pela Rede Globo de junho de 1970 a junho de 1971] não deu certo? O remake [regravação].

Dias Gomes:
Vamos começar pelo princípio, senão aí vai ser um... Eu e Janete éramos pessoas muito diferentes, talvez por isso nos déssemos tão bem. O nosso casamento durou 33 anos, mas nós tínhamos visões de mundo muito diferentes. Janete era católica, eu sempre fui ateu, eu fui marxista, tive formação marxista e tudo. E ela tinha também um estilo de realismo romântico, e eu sempre fui um realista empedernido. O meu realismo sofra talvez um pouco do fantástico, do absurdo, da mágica. Mas, de qualquer maneira, é uma posição realista. Então eu acho que não houve influência propriamente; há influência profissional sim, quer dizer, Janete não escrevia quando eu casei com ela, veio a escrever depois. Evidentemente ela aprendeu comigo, depois seguiu o seu próprio caminho, as suas novelas refletem a sua visão de mundo, é uma visão romântica, privilegiando muito a arte acima de qualquer coisa, até mesmo acima da lógica e da realidade. Essa é a posição dela, que é uma posição de artista: "Dane-se a realidade, se eu posso fazer uma coisa bonita e emocionante, essa é a posição". Já aquelas pessoas de formação muito lógica, como eu, cartesiana, tem uma enorme dificuldade de se desprender da lógica. É na marra que você corta com muita dor, muito sacrifício. Então éramos pessoas muito diferentes; as novelas que ela fez eram bastante diferentes das minhas em estilo, vocês todos naturalmente viram. Agora, nós éramos pessoas que viviam sob o mesmo teto, evidentemente conversávamos muito, opinávamos...

Matinas Suzuki:
Não tinha uma "copiazinha" ali no texto do outro...

Dias Gomes:
Mas não tem nada que escrevíamos juntos...

Matinas Suzuki:
De vez enquando ali umas frases, uns diálogos...

Dias Gomes:
Não. Há conversas e tal, cada um conversava com o outro sobre o que estava escrevendo, e isso era uma troca de idéias. Na hora de escrever, cada um escreve conforme o seu estilo.

Esther Hamburger:
Dias, uma vez você falou em Verão vermelho [telenovela exibida pela Rede Globo de janeiro a julho de 1970] e Irmãos Coragem como os marcos da teledramaturgia brasileira, uma novela da Janete Clair e uma sua. Então juntando aí esse discussão como é que...

Dias Gomes:
Eu não tenho a pretensão de que Verão vermelho seja um marco. Eu me referi naturalmente ao começo da teledramaturgia brasileira na Globo. Porque, como vocês sabem, antes de eu entrar para a Globo, a Globo só levava novelas folhetins escritas por uma senhora chamada...

Alberto Guzik :
Glória Magadan...

Dias Gomes:
Gloria Magadan, uma cubana fugida de Cuba.

Esther Hamburger:
Onde está ela agora?

Dias Gomes:
Eu não sei onde anda. E que era uma senhora que tinha uma posição radical contra a...

Matinas Suzuki:
Parece que está em Miami.

Dias Gomes:
...dramaturgia brasileira. Janete foi primeiro para a Globo do que eu, ela foi em 1967. E me irritava muito esse negócio dessas novelas passadas no deserto, O Sheik de Agadir [telenovela de Glória Magadan, baseada no romance Taras Bulba, de Nicolai Gogol, exibida na Rede Globo de julho de 1966 a fevereiro de 1967], outras que passavam, sei lá, no Caribe, e não havia nada passado no Brasil. Então um dia eu chamei a Janete e disse assim: “Por que você não fala para essa senhora aí para fazer uma novela brasileira”? Porque a Janete, por exemplo, adaptava as novelas que ela tinha escrito para o rádio, [as] que se passavam no Brasil, e ela obrigava a Janete a transpor essa novela para a Espanha, para o Caribe, não sei o que lá. Eu digo “mas por que isso”? A Janete aí falou com ela, e ela disse assim: “Porque o Brasil não é um país romântico. Um herói, um galã, não pode se chamar João da Silva”. [risos] Tem que se chamar Ricardo Montalban, uma coisa assim, sonora, essa era a posição dela. Quando eu fui para a Globo, foi justamente quando ela saiu. A primeira novela que eu assinei foi Verão vermelho, que se passava na Bahia, com personagens, com capoeiristas, poetas de cordel, coronéis e tal, personagens bem brasileiros. Nessa época foi que a Janete começou a fazer Irmãos Coragem também... Aí foi o começo da teledramaturgia brasileira na Globo. Não que não tenha sido feita alguma coisa, outras novelas, em outras emissoras, eu acho que foram feitas. Mas com uma seqüência, como um movimento realmente de teledramaturgia, foi na Globo que isso se fez. E posteriormente nesta época aí, nos anos de 1970, é que começou. Isso é o que eu quis dizer.

Matinas Suzuki:
Vocês tinham a vantagem de ser um casal com separação de horários. [risos]

Dias Gomes:
Ela fazia a novelas das oito, eu fazia a das dez. E você sabe que ela escreveu cinco novelas em seguida, sem descanso, porque a Globo só tinha dois autores contratados naquela época, eu e ela. Então não tinha um autor para substituir, e ela fez cinco novelas, terminando no sábado uma e começando outra na segunda-feira. Entre elas, Irmãos Coragem, que teve 320 e tantos capítulos. Era uma estupidez! Eu cheguei a fazer três novelas em seguida, até a Globo contratar um autor para revezar comigo e outro para revezar com ela. Quer dizer, a Globo era muito pobrezinha naquele tempo. [Depois] foi enriquecendo e foi contratando mais autores.

Matinas Suzuki:
Agora, sobre essa remontagem...

Alberto Guzik:
Remake de Irmãos Coragem...

Matinas Suzuki:
Remake de Irmãos Coragem, o que você...

Dias Gomes:
Bom, no final a novela acabou, vai terminar bem. Houve uma série de equívocos no início, diretoriais...

Matinas Suzuki:
Você começou refazendo, foi isso?

Dias Gomes:
Não, a Globo me encomendou...

[...]:
Você escreveu os primeiros trinta capítulos, né?

Dias Gomes:
...vinte capítulos iniciais. Eu reescrevi os vinte primeiros capítulos, no vigésimo capítulo, eu tive um infarto, justamente quando eu estava terminando a tarefa encomendada pela Globo. Vim até aqui para São Paulo para colocar duas pontes de safena e uma mamária com o doutor Adib Jatene. Então depois a novela seguiu com uma equipe que já estava programada, o Marcílio [Moraes], o [Ferreira] Gullar [o primeiro colaborou na adaptação do remake de Irmãos Coragem e o segundo atuou como colaborador]. E houve uma série de equívocos diretoriais no início. Por exemplo, a proposta era para atualizar a novela e o diretor, ao invés de atualizar, recuou no tempo, o que deu uma tremenda confusão. Houve também uma escolha de locação errada da cidade, figurinos, uma série de equívocos que depois foram sanados. A direção foi substituída e a novela entrou no seu ritmo, ficou mais uma novela de Janete Clair do que era no início, porque havia uma série de equívocos.

Matinas Suzuki:
Você acha que o horário foi bom?

Dias Gomes:
Também há um equivoco de horário. Eu acho que não era uma novela para esse horário. Tanto que em Portugal, por exemplo, era novela das nove horas da noite e tinha um grande sucesso. Era o maior sucesso da televisão portuguesa, porque vai [ao ar] às nove da noite. Às seis horas realmente era um horário mal escolhido.

Alberto Guzik:
Dias, onde que o autor sente mais a sua presença, quer dizer, onde a obra é mais dele, no teatro ou na televisão? Televisão é mais um processo coletivo do que uma obra de autor? Até que ponto um autor interfere em uma novela?

Dias Gomes:
Eu acho que no teatro, realmente, quando o autor é presente, como eu sempre fui, eu sempre fui um autor que acompanhou, que acompanha os ensaios...

Alberto Guzik:
Você já censurou alguma direção sua?

Dias Gomes:
Não, mas eu sempre...

Alberto Guzik:
Alguma direção de texto seu?

Dias Gomes:
Eu sempre gostei de participar da direção e sempre gostei de diretores que gostavam disso. Por isso, talvez, o Flávio Rangel foi quem dirigiu mais peças minhas, ele dirigiu umas cinco ou seis. Porque o Flávio gostava, ele me pedia para ficar junto dele na hora do ensaio. Então, depois do ensaio a gente batia um papo, conversava. E saía uma coisa harmoniosa, conjunta, nós discutíamos. Há diretores que não gostam. Eu me lembro do Ziembinski, por exemplo, quando foi minha primeira versão do Santo inquérito [peça em dois atos, de 1966], [no] primeiro ensaio, ele fez uma homenagem a mim, eu fiquei muito emocionado, depois que acabou a homenagem, ele estendeu a mão e disse: “Muito bem, agora volte no dia da estréia”. [risos] Ele me despachou...

Hamilton dos Santos:
Dias, como é essa história que você costuma dizer que o público brasileiro costuma pensar que tem alguma influência na direção das novelas? Porque você acha, ao contrário, que não tem a menor influência. Poderia explicar melhor?

Dias Gomes:
Tem alguma, mas não tanto quanto ele imagina. O capítulo que está indo ao ar hoje foi escrito há trinta dias, já foi escrito um mês atrás, geralmente, quando a novela não está atrasada. E não é possível todo dia você estar, como imaginam alguns, consultando a opinião [do público]. Eu, pelo menos, nunca me direcionei por pesquisas, sempre joguei no lixo todas elas. Às vezes mandavam pesquisas, eu achei que isso sempre atrapalhava. E se no momento, este ou aquele personagem não está agradando, tudo bem, depois vai agradar. De qualquer maneira, eu vou fazer o que está na minha cabeça. Então não há essa influência tão grande assim. Há uma certa influência e essa influência vem sendo parece que crescente, eu reconheço isso. Quer dizer, o aparelho vai ficando mais complexo. Essa influência de pesquisadores, de analistas etc. e tal é hoje muito maior do que era, por exemplo, nos anos 1970, quando eu escrevi quase todas as minhas novelas.

Hamilton dos Santos:
Quando você fala de influência, eu queria saber também... Você falou da sua formação marxista, você falou do ritual do teatro também, eu queria saber quais os autores, quais os dramaturgos que mais lhe marcaram, além dessa formação marxista. Ou seria impossível responder sem...

Dias Gomes:
Na linha marxista, naturalmente o Bertold Brecht. Não sei, essa é uma opinião [pergunta] que deve ser feita a um crítico, porque a gente não tem consciência da influência que recebe... Claro que aqueles autores que você mais admira devem ter influenciado mais, nesse caso vamos dizer... eu admitiria uma influência de Shakespeare, o que seria uma enorme pretensão.[risos] Mas naturalmente, é o maior de todos, é o nosso pai; o primeiro autor que eu li foi o Shakespeare... É claro que essa influência é inconsciente. Agora, como naturalmente nós não estamos aqui na era elisabetana [referência ao período em que reinou a rainha Isabel ou Elizabeth I (1558-1603), cujo ápice foi a renascença inglesa, quando a literatura e a poesia do país floresceram. Shakespeare é um dos destaques desta época], os autores modernos devem ter me influenciado mais. Como eu disse, o Bertold Brecht, Arthur Miller [(1915-2005), um dos principais autores do teatro norte-americano contemporâneo], são autores da minha época e que pensavam parecido também, tinha uma filosofia de teatro muito parecida, embora realmente alguns estivessem equivocados. O próprio Brecht estava um pouco equivocado...

Rita Buzzar:
Voltando um pouco para a novela, o senhor acha que a novela, o formato da novela está esgotado? Ela precisa de uma reciclagem? Por exemplo, [a novela] Irmãos Coragem, em um primeiro momento, pareceu muito fragmentada, pelo menos a mim. E depois como se resgatasse o folhetim. A novela é fadada a ter uma base de folhetim para funcionar?

Dias Gomes:
Não acho.

Rita Buzzar:
Se o formato está esgotado, quer dizer, ele está se esgotando?

Dias Gomes:
Eu já falei sobre isso aqui. Eu acho que falta uma inquietação, faltam experiências, falta um horário experimental, sem compromisso, para tentar resgatar a novela desse formato que se estabeleceu...

Alberto Guzik:
Quer dizer, falta ousadia então, falta coragem?

Dias Gomes:
Hoje em dia, há uma competição muito grande entre as emissoras no campo da novela. Quase todas as emissoras estão com novelas, então nenhuma quer arriscar nada porque tem o ibope [índice de audiência], para não perder o ibope. Então vai-se em cima sempre daquilo que já deu certo. As emissoras que estão entrando, inclusive no mercado agora, fazem remakes porque foram novelas que fizeram sucesso. Quer dizer, estão lendo em cima de coisas que deram certo e [isso] impossibilita uma experiência nova, uma mudança de formato...

Esther Hamburger:
Irmãos Coragem não era uma mudança nesse sentido?

Dias Gomes:
Não era o quê?

Esther Hamburger:
A estética inicial dos Irmãos Coragem não era experimental nesse sentido?

Dias Gomes:
É, mas era equivocada. Eu acho que é um equívoco você querer fazer cinema na televisão. Cinema você faz no cinema, como o teatro deve ser feito no teatro, televisão se faz em televisão. É tão equivocado fazer cinema na televisão, como fazer cinema no teatro. São linguagens diferentes. Então você querer fazer na televisão uma linguagem cinematográfica, você está substancialmente equivocado. A televisão tem a sua linguagem própria, e você tem que fazer...

Esther Hamburger:
Então fala um pouco dessa linguagem, como é essa fórmula que está esgotada?

Hamilton dos Santos:
E por falar em linguagem própria, como é que você está se sentindo agora que a sua biografia e sua obra vão sair em CD-ROM? Você chega também na mídia computador?

Dias Gomes:
É uma coisa nova, dos novos tempos, é uma coisa instigante. A tecnologia é uma coisa meio assustadora pela sua evolução, seu progresso. Hoje nós estávamos comentando, vai chegar um tempo em que você não vai sair mais de casa, tudo você faz no computador; capaz até de fazer amor no computador... [risos]

[sobreposição de vozes]


Dias Gomes:
Um jeito de você fazer amor para você não ter que ir para a cama...

Matinas Suzuki:
Dias, por favor, a Vanda Estefânia [atriz brasileira] que está vendo você, pergunta se você já leu a peça do José Celso Martinez  Corrêa, chamada Cacilda! [produzida em 1998].

Dias Gomes:
Não.

Matinas Suzuki:
E o que você acha do teatro do José Celso?

Dias Gomes:
Como dramaturgo, eu não conheço José Celso, eu só o conheço como diretor. Como dramaturgo, eu realmente não posso opinar, eu não conheço nada dele. Como diretor, ele foi um diretor de grande talento, inovador nos anos 1970, só o que eu tenho a dizer dele.

Matinas Suzuki:
E o Gerald Thomas [dramaturgo e diretor de teatro, ousado e polêmico pela abordagem em relação ao textos e pelas atitudes com os atores e público]?

Hamilton dos Santos:
Que você disse que só solta fumacinhas...

Dias Gomes:
Eu acho que o Gerald Thomas é um produto desse vazio em que nós estamos e que possibilita o surgimento de um certo charlatanismo, de uma certa vanguarda que, na verdade,  é uma retaguarda. São coisas que já foram feitas há muito tempo e que são apresentadas como novas e tal, e que não têm consistência, e que você sabe que vão passar, que são ondas. Nos meus cinquenta e tantos anos de teatro, eu vi tanta onda passar.

Alberto Guzik:
O que você vê e que você gosta no teatro, Dias? Quais os espetáculos que você viu recentemente e de que você gostou? De que autores você gosta? De que diretores você gosta?

Dias Gomes:
Eu recentemente acabei de ver uma peça do Edward Albee [dramaturgo norte-americano], Três mulheres altas, é um espetáculo bonito. A peça me decepcionou um pouco, pelo sucesso que vinha precedido, pela fama; eu esperava algo melhor, mais instigante. Mas é uma peça muito bem escrita, com diálogos muito inteligentes, com um achado no segundo ato, e de um autor que estava esquecido. Vi recentemente também - para falar de dramaturgia brasileira -  Pérola [peça mais premiada do autor], do Mauro Rasi, que me surpreendeu. Eu acho uma peça muito bem feita, eu acho que o Mauro Rasi...

Alberto Guzik:
Você não gostava tanto das peças anteriores dele?

Dias Gomes:
Eu gostei muito de uma peça dele, A cerimônia do adeus. Depois, das que vieram a seguir, eu não gostei tanto, eu achei que ele estava olhando muito para o próprio umbigo. Quer dizer, ele tinha uma visão de mundo muito limitada, porque era só ele e a família dele, a vida dele e tal... Por mais interessante que ele seja, eu quero uma coisa mais universal. Essa peça estranha-me paradoxalmente, embora também seja sobre uma peça autobiográfica, ela tem uma certa universalidade na reflexão sobre sentimentos, a evocação de um certo tempo. É uma peça de que eu gostei. Não tenho visto muita coisa que eu gostasse não, na verdade...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Dias, deixa eu voltar um pouquinho à questão da televisão. Será que a minissérie seria o formato para suprir essa ausência do horário mais audacioso, aquele horário em que entravam as novelas das dez horas?

Dias Gomes:
Eu acho que sim.

Maria Amélia Rocha Lopes:
Você gosta de fazer minissérie?

Dias Gomes:
Por isso eu prefiro a minissérie, principalmente porque a minissérie permite um acabamento melhor, você tem mais tempo. A novela é um trabalho braçal quase. Você entra naquela roda viva de fazer um capítulo por dia, e a novela está no ar engolindo capítulos e mais capítulos, você não tem muito tempo para refazer um capítulo, para burilar. Na minissérie tem, você tem tempo de... É um produto mais bem acabado e também...

Esther Hamburger:
Tem mais autoria...

Dias Gomes:
O diretor também tem mais tempo para produzir, a produção... Por exemplo, Decadência tem 12 capítulos. Ela vai ter três meses para fazer 12 capítulos, então...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Sai muito mais caprichado...

Dias Gomes:
São quatro capítulos por mês... É muito mais do que...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Você falou duas coisas que me chamaram bastante atenção aqui. Essa coisa de você não assistir novela e de a televisão não ser um espaço para a reflexão. Aí eu fico pensando se você não gosta de televisão.

Dias Gomes:
Não, eu gosto sim, eu gosto de televisão, eu vejo muita televisão. Vejo mais jornal; programa de televisão eu assisto de vez em quando...

Maria Amélia Rocha Lopes:
O que você assiste em televisão?

Dias Gomes:
Mais jornal e filme, como eu sou um cinemaníaco. E programa, uma vez ou outra, mas também não posso ficar vendo televisão todo dia. Eu tenho mais coisas para fazer, tenho outros prazeres na vida. Ler também é um prazer...

Hamilton dos Santos:
Um desses seus prazeres me parecer ser o futebol e sobretudo o Flamengo. Você se definiu como um rebelde sem causa. Como é que você viu a ida do Edmundo [jogador de futebol, conhecido por seu temperamento forte] para o Flamengo? E você gosta da rebeldia sem causa, moderna, dele também?

Dias Gomes:
O Edmundo é um jogador que se enquadra muito no Flamengo, o Flamengo é um time emocional...

Hamilton dos Santos:
De irresponsáveis...

Dias Gomes:
Um negócio assim, uma mística, é um time místico. Então o Edmundo é meio isso, ele se enquadra e o Romário também [amigos, Edmundo e Romário juntaram-se no Flamengo para formarem o que seria o melhor ataque do mundo. A parceria durou pouco e nenhum título foi conquistado]. São jogadores que se enquadram no Flamengo, não são burocratas porque o Flamengo não é um time burocrata. Tem aquela mística, rubro-negra e tal...

Hamilton dos Santos:
Como é que você gosta de ver o futebol, pela televisão ou gosta de ir ao estádio?

Dias Gomes:
Eu já fui muito ao estádio, mas há muitos anos que eu não vou, porque tornou-se uma coisa muito perigosa. Depois o futebol também teve um período de decadência, depois da era Zico, ficou um jogo meio chato, sem criatividade...

Matinas Suzuki:
Mas está melhorando outra vez...

Dias Gomes:
Agora está melhorando de novo, felizmente estão voltando ao futebol arte. Eu acho que o futebol é um grande espetáculo. Eu sempre encarei o futebol... como autor, é um espetáculo! [risos] Quando não é um espetáculo, quando passa a ser pura competição, para mim não tem nenhum atrativo. Pura competição, de força, de velocidade...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Você não acha que os diretores desse espetáculo estragam muito? Os dirigentes brasileiros não estão à altura dos artistas?

Dias Gomes:
E não entendem muito o valor desse espetáculo. Poderia ser mais valorizado como espetáculo. Os americanos, por exemplo, têm mais esse senso de espetáculo. O futebol americano tem aquelas garotas que movimentam [levanta os braços, movendo-os acima da cabeça] aqueles negócios, tem um show no meio. Os diretores responsáveis pelo futebol brasileiro deveriam entender que o futebol é um espetáculo e criar esse arcabouço, essa moldura de espetáculo no futebol, que se presta muito a isso...

Alberto Guzik:
Seria um futebol festa?

Dias Gomes:
Estimular o ver a arte do futebol...Uma festa, exatamente.  

Matinas Suzuki:
Dias, por favor. Cortando um pouquinho, o Eduardo Donateli, aqui de Santana, pergunta se você acha que tem necessidade de tanto sexo nas telenovelas brasileiras. Espero que ele não seja um senhor de Santana. [refere-se às Senhoras de Santana] [risos]

Dias Gomes:
Sexo hoje é uma coisa normal, está em tudo. Se a novela quer refletir a realidade, eu acho que ela não pode fugir desses temas que são atuais. Houve uma grande revolução a partir dos anos 1960, o problema do comportamento humano... Hoje uma criança de sete anos sabe o que é sexo, sabe como se faz sexo, se ensina na escola, as professoras ensinam. Então acabou o tabu do sexo...

Esther Hamburger:
Mas o de raça não. Uma coisa que me impressiona nas novelas é que embora elas sempre tenham sido abertas a essas modificações de comportamento;  na questão racial, nem tanto. Como é esse contraste? É um tabu a questão racial? Hoje esse tabu está sendo desmontado?

Dias Gomes:
Não é um problema racial, o que há é o seguinte... Você está se referindo basicamente ao negro, não é?

Esther Hamburger:
É.

Dias Gomes:
E que cobra muito...

Esther Hamburger:
Não só, porque hoje em dia a gente fala muito do negro, e eu estou falando principalmente do negro, mas também a diversidade étnica brasileira não aparece nas novelas.

Dias Gomes:
Por exemplo, se você quiser fazer uma novela com muitos personagens, por exemplo, de japoneses ou de origem japonesa, você vai ter uma enorme dificuldade em encontrar muitos atores. Você encontrará poucos, mas não vai encontrar muitos. Com o negro é a mesma coisa. Nós sempre fomos muito cobrados e eu sempre tive até uma preocupação de fazer papéis para negros nas minhas novelas, nas peças principalmente, no teatro. Porque a comunidade negra cobrava, cobrava inclusive papéis que não fossem de serventes, de criados, que só se dava esse tipo de papel no teatro brasileiro. Quando eu estreei na década de 1940, eu escrevi uma peça que se chamava originalmente Sulamita. Era uma peça sobre o problema racial. O personagem principal era um negro, negro que se formava em medicina e sofria o preconceito da sociedade, apesar de conseguir uma ascensão na escala social, ele sempre era olhado como um negro. Isso foi escrito nos anos 1940. Essa peça, que foi escrita para o Procópio Ferreira, foi encenada por ele aqui em São Paulo. Eu não assisti aos ensaios, vim só assistir à estréia. O título foi mudado para Doutor Ninguém. E eu tive a grande surpresa de chegar aqui...

Alberto Guzik:
O Procópio mexeu muito na peça? Porque ele era famoso por isso, não é?

Dias Gomes:
Não, ele mexeu apenas no seguinte: o personagem que era negro virou branco. [risos] O preconceito de cor passou a ser um preconceito de classe. Primeiro, ele era filho de uma lavadeira. Então mudou a peça toda. Quando acabou a peça, eu fui falar com ele: “pô, você mudou tudo”! Ele disse: “Meu filho, há coisas que você não pode mudar no teatro. Há tabus que você não pode vencer. Esse é um deles: negro tem que ser sempre o criado, assim como o padre tem que ser sempre bonzinho”. Felizmente nós quebramos todos esses tabus no decorrer do tempo. Essa era a mentalidade do teatro da época, tanto que o Otelo [personagem da tragédia de mesmo nome de William Shakespeare] era sempre feito por um branco, era pintado de preto. Paulo Autran fez Otelo pintado de preto. Aí há um outro problema também, o problema da falta de atores negros, que não é por falta de talento da raça. Nos Estados Unidos, se você puser um anúncio para atores negros, vai ter 3 mil negros na porta do seu teatro, grandes atores. Mas aí há um problema econômico da classe dos negros no Brasil, [eles] ainda estão sendo oprimidos, não têm acesso à escola, e não se formam grandes atores negros...

Maria Amélia Rocha Lopes:
Talvez eles não queiram fazer papel de serventes, por exemplo. Talvez eles estejam cansados de fazer o papel da empregada doméstica, do motorista, talvez seja isso também.

Dias Gomes:
Não é isso não. Se você faz realmente uma peça só de negros, enfrenta uma enorme dificuldade. Você encontra dois ou três grandes atores negros e os outros são deficientes; mas não é por culpa dos negros, é a culpa da própria sociedade que marginaliza o negro. O negro geralmente é pobre, no Brasil é uma raridade o negro ser rico, o negro ter um status social são exemplos raros. De um modo geral, o negro é marginalizado, e nisso você tem toda razão, há um preconceito hipócrita porque nós dizemos que não temos preconceito, nós nos arrogamos de ser um povo sem preconceito racial e todos dizem: “não, nós somos uma...” Mas na verdade, existe o preconceito disfarçado.

Matinas Suzuki:
Agora, sobre esse assunto, por exemplo, há uma tendência nos Estados Unidos de você estabelecer cotas étnicas. Você é obrigado a pôr 20% de hispânicos, 20% de... Como é que você enxerga isso?

Dias Gomes:
Não se faz isso, isso nunca dá certo. Você impor uma cota disso ou daquilo. Não é assim, você tem é que mudar a sociedade. Por exemplo, houve época no cinema brasileiro em que havia uma cota. Os cinemas eram obrigados a exigir tanto por cento de filme brasileiro, não deu em nada, o filmes brasileiro morreu. Morreu, está ressuscitando agora. Não é assim por lei, por decreto, que você muda uma sociedade. Você tem que mudar, mudando a própria sociedade.

Claudinei Ferreira:
Qual é o seu personagem negro preferido da sua dramaturgia ou de novela? Qual o personagem negro importante seu, que você escreveu, que você trabalhou?

Dias Gomes:
Vários. O Milton Gonçalves, por exemplo, que é um grande ator negro, é um dos maiores atores do país, fez vários personagens negros. No Vargas [criada em 1968, com o título de Dr. Getúlio, sua vida, sua glória, a peça foi rebatizada em 1983 como Vargas, e foi escrita em parceria com o poeta Ferreira Gullar], por exemplo, ele fez o [...] no teatro, muito bem. O Vargas, por exemplo, era cheio de negros. Eu não sei se vocês viram aqui a peça, mas ela foi encenada no Rio de Janeiro, era um musical sobre a morte e os últimos dias de Getúlio Vargas. E eu fazia, por exemplo, o ministério todo de negros. Todos os ministros eram negros, porque era uma versão de uma escola de samba, um desfile de escola de samba sobre a vida de Getúlio. Então por isso o ministério todo era de negros com aquelas cabeleiras de carnaval etc e tal. Foi uma enorme dificuldade de você conseguir vários atores negros bons...

Claudinei Ferreira:
A família Vargas gostou?

Dias Gomes:
Gostou. Até o Lutero Vargas [filho mais velho de Vargas] pediu para a peça ser reencenada no aniversário do Getúlio em 1982, me parece... Não, 1984 era o aniversário de Getúlio. Ele pediu ao [Leonel] Brizola [(1922-2004), em 1984, ele estava no início de seu primeiro mandato como governador do estado do Rio de Janeiro] para reencenar a peça e o estado reencenou a peça.

Claudinei Ferreira:
Só para terminar, Dias, independente da novela ou do teatro, se a pessoa não quiser assistir à novela e nem ir ao teatro, ela pode ler seus textos que estão aí nas livrarias e bibliotecas. Indique um só para o nosso telespectador. Indique pelo menos um texto seu de teatro, uma vez que...

Dias Gomes:
Todas as minhas peças estão publicadas, O pagador de promessas, O santo inquérito, que são peças inclusive adotadas em escolas. Todas elas estão publicadas. Há uma coleção também da editora Bertrand, que já está no quinto volume, e cada volume envolve duas ou três peças, com críticas, fotos...

Alberto Guzik:
Qual é sua peça preferida? Você tem alguma que é a sua peça do coração?

Dias Gomes:
Isso é como perguntar ao pai qual é o seu filho preferido. [risos] Essa é uma pergunta que a gente nunca responde. A peça preferida é sempre aquela que você está escrevendo. Você tem sempre a impressão de que vai ser melhor do que todas as outras. Ou pelo menos você se imbui dessa convicção, porque senão você não escreve. Se for fazer uma peça sabendo que ela vai ser pior, então você não escreve. Então você sempre acha que aquela vai ser a grande peça.

Matinas Suzuki:
Dias, o nosso tempo está esgotando...

Dias Gomes:
Já?!

Matinas Suzuki:
Eu queria lhe fazer uma última... Já, para você ver, passa muito rápido. O Marcelo de Lourenze, que tem 15 anos, pergunta para você o seguinte: “Como é que é dividir um lugar na Academia com o doutor Roberto Marinho [presidente das Organizações Globo] [risos], que foi seu patrão durante anos e é ainda?".

Dias Gomes:
Não há nenhuma divisão porque o Roberto senta em uma cadeira e eu sento em outra, porque não há nenhum conflito. [risos]

Matinas Suzuki:
Bem, Dias, eu queria agradecer bastante a sua presença nesta noite...

Dias Gomes:
Muito obrigado.

Matinas Suzuki:
Há oito anos que o Roda Viva tenta lhe entrevistar...

Dias Gomes:
Enfim me pegaram...

Matinas Suzuki:
E foi lhe pegar no dia dos namorados, o que eu acho que é uma injustiça com você...

Dias Gomes:
Exatamente, pois é, eu acho até que, como eu disse a vocês, o estupro até não foi tão doloroso. [risos]

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