sábado, 24 de julho de 2021

"Suicídio", da Karne Krua

Karne Krua é uma banda pioneira do punk rock hard core do nordeste do Brasil. Surgiu em Aracaju, capital de Sergipe, o menor estado da região , em 1985. Depois de um breve período inicial instável estabilizou-se com Silvio “suburbano” no vocal, Marcelo “Inseto” na guitarra, Marlio no baixo e Antonio “Almada” na bateria - uma formação considerada “clássica” por ter composto e gravado musicas que definiram sua identidade sonora e são tocadas até hoje em shows. Essa primeira fase está registrada nas três primeiras demo-tapes, todas gravadas de forma tosca e absolutamente improvisada: “As merdas do sistema”, de 1987, “Cenas de ódio e revolta”, de 1988 e “Labor operário”, de 1990.

 

Na virada da década bateu um cansaço e dois integrantes, Marcelo e Almada, resolveram sair, mas a banda acabou se renovando com a entrada de Fabio na guitarra e Valdeleno na bateria. Por essa época Silvio, um incansável agitador cultural “underground”, estava às voltas com o projeto “Cooperativa do caos”, que visava à produção de uma LP em vinil reunindo algumas das principais bandas do estilo das regiões norte e nordeste: Discarga Violenta, de Natal(RN);  Delinquentes, de Belém do Pará; C.U.S.P.E, de Campina Grande(PB) e Devotos do ódio, de Recife – além da própria Karne Krua. O projeto, infelizmente, acabou não vingando, mas o que foi gravado acabou sendo aproveitado no clássico primeiro EP/compacto em vinil de 7 polegadas “Cosmopolita”, da Discarga Violenta, e na primeira demo-tape com gravação profissional da Karne Krua, “suicídio”.  

 

“Suicidio” foi gravada em janeiro de 1991 no Estudio DB-3, de Recife, com mixagem dos amigos Nino e Pesado, da banda pernambucana Câmbio Negro HC. O repertório é composto basicamente de musicas já lançadas anteriormente, como “Rumores de guerra” e “America Latina now”(aqui com a participação de Pesado no refrão), ou já conhecidas de quem freqüentava os shows. A grande novidade, que surpreendeu a todos, foi a faixa título, que fugia um pouco da ortodoxia punk anarquista então em voga com uma letra de temática mais intimista e arranjos com solos de guitarra melódicos e minimalistas. Com suas 8 faixas distribuídas em menos de 10 minutos, na demo a banda ainda soava punk, mas com uma nítida preocupação em expandir seus horizontes. Este material está sendo agora, 30 anos depois de seu lançamento original, relançado em vinil, num EP/Compacto de 7 polegadas, pela No Gods No Masters Distro.

 

Essa nova fase se consolidou com o lançamento, em 1994, do primeiro LP, auto intitulado, já com Marcelo e Almada de volta a seus postos. A semente lançada em “Suicidio” frutificou num repertório impecável, que incluía dois poemas musicados de autoria do poeta, fanzineiro e capoeirista Nagir Macaô, “O vinho da história” e “A noite do deus morto”, e letras enigmáticas, beirando a abstração, como “Mancha de sangue”, além de uma notável evolução lírica e musical mesmo em faixas mais panfletárias, como “Hienas na carcaça”, “Brasil Heróico”(com seu tom épico), “Filhos do medo” e “Política da seca” – que tem frases dignas da melhor literatura, a meu ver (“pessoas castigadas pelo sol e pela fome lamentam a dor de mais um ano que passou”).

 

Karne Krua passou por várias outras fases, com trocas de integrantes e influências as mais diversas, do hard Core novaiorquino à musica regional do sertão nordestino, mas sempre preservando sua identidade, capitaneada pela figura de Silvio, único membro fundador remanescente. Segue viva e ativa até hoje! São 35 anos de atividade ininterrupta, fazendo shows e lançando novas demos, EPs e álbuns nos mais diversos formatos, em CD, k7, vinil e streaming, sempre fazendo musica radical e independente em um ambiente inóspito, periférico. Um feito e tanto!

 

por Adelvan Kenobi

 

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sábado, 10 de julho de 2021

Algumas dicas de quadrinhos produzidos por mulheres

Aproveito a pandemia para colocar a leitura em dia e tenho algumas dicas de quadrinhos escritos, desenhados e publicados por mulheres para apresentar aos poucos e bons leitores deste humilde blog que se recusa a deixar de existir ...

Começo com Alisson Bechdel e seu Fun Home: uma tragicomédia em família. Obra-prima! Sucesso de público e crítica. Ficou duas semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Um livro de memórias centrado numa controvertida figura paterna e em questões de identidade e repressão sexual. Ao contar a história de sua infância e adolescência, vivida na zona rural da Pensilvânia da década de 1970, marcada pelo mistério que ronda a verdadeira natureza da personalidade complexa e contraditória de seu pai, ela fala também do momento de transição entre o final de um período marcado pela revolução sexual e pela liberalização dos costumes e o revés provocado pelo surgimento da AIDS. A narrativa é fluida, sem tropeços, ilustrada por um traço elegante e rebuscado, todo desenhado a partir do estudo de fotos de referencia tiradas por ela mesmo. Brilhante.

Dela, li também Você é minha mãe?, uma espécie de continuação de Fun Home que avança por sua idade adulta e discute, de forma bastante profunda e analítica, sua relação com a mãe, ao mesmo tempo em que vai narrando o desabrochar de sua sexualidade. É uma leitura bem mais densa e auto centrada que a anterior. Tive bastante dificuldade com alguns trechos longos que discorrem detalhadamente sobre questões teóricas ligadas à psicologia, mas recomendo a leitura mesmo assim.

Rosa Luxemburgo é uma das personagens mais fascinantes da história do movimento socialista. Teórica brilhante e contestadora, mulher à frente de seu tempo, inclusive na vida pessoal e amorosa, além de pensadora independente e ousada. Teve embates antológicos com verdadeiros ícones do marxismo, como Lenin e Kautski. Sua vida é contada de forma poética e vibrante pela cartunista e ativista britânica Kate Evans em Rosa Vermelha,  lançado aqui pela editora Martins Fontes.

Apesar de ter sido produzida a convite da Fundação Rosa Luxemburgo, essa biografia quadrinizada passa longe do chapabranquismo e oferece um panorama bastante amplo de sua obra e de seu tempo a partir da escolha acertada de reproduzir integralmente diversos trechos de seus livros e cartas, sem descuidar do ritmo narrativo. Dá ao leitor menos apressado, inclusive, a oportunidade de se aprofundar ainda mais sobre o assunto ao disponibilizar um rico apêndice, em que diversas situações são melhor explicadas e contextualizadas e os trechos reproduzidos na história são novamente apresentados de forma ampliada.

De Kate Evans li também Refugiados: a última fronteira, editado com o capricho típico da editora Darkside – com direito a um marcador de páginas de tecido feito de renda, referência ao principal produto fabricado na cidade de Calais, na França, onde se passa a trama. Uma trama real e dramática, reproduzida a partir da experiência pessoal da autora com as ONGS que se dedicam a tentar aliviar a via crucis dos que ficam ilhados por lá, à espera de uma oportunidade de cruzar o canal da mancha. É uma história dura e revoltante, repleta de injustiça, que nos faz lembrar, inevitavelmente, os relatos de Joe Sacco sobre a Palestina e a guerra na Bósnia. O traço aqui é mais rabiscado e cartunesco, bem diferente do da biografia de Rosa, mas igualmente competente.

Por fim, recomendo Hoje é o último dia do resto de sua vida, um calhamaço de 464 páginas também lançado pela Martins Fontes e escrito pela austríaca Ulli Lust a partir das memórias que guardou de uma viagem punk e clandestina que fez à Itália na adolescência, na década de 1980. Literalmente punk, já que a autora freqüentava o submundo do movimento na época e foi com aquele espírito radical, arrojado e libertário que encarou a empreitada, acompanhada de uma nova melhor amiga que encontrou pelo caminho. Edi, a amiga, é uma daquelas figuras perigosamente sem noção que todo mundo que não se fecha no casulo falsamente protetor de uma vida regrada e careta acaba conhecendo, e que pode te meter em algumas roubadas caso você não esteja atento às armadilhas que fatalmente se armarão pelo caminho. Principalmente se for desenvolvido entre vocês o tipo de fidelidade e camaradagem que só a vida na estrada, sem eira nem beira, sem lenço e sem documento, pode proporcionar.

É o que acontece com Ulli, que é levada por Edi a enfrentar situações dignas de um filme de máfia dirigido por Martin Scorcese ou Quentin Tarantino. Máfia, aqui, também no sentido literal: elas vão parar na Sicilia, terra da organização “cujo nome você não deve mencionar”, e sentem na pele o preço pago por garotas que não conseguem se por no seu lugar: são repetidamente abusadas e violentadas. Edi, porra louca ao extremo, não tem muita noção disso, mas Ulli passa a ter, principalmente, a partir de um evento pra lá de traumático. A obra adquire, então, um tom mais sombrio, retratando uma certa perda de inocência da autora. Na verdade, uma ingenuidade bruta, inconseqüente, típica de quem está amadurecendo e não sabe ainda o preço que terá que pagar pela liberdade que já pensa ter, mas que na verdade precisa ser conquistada. O evento, divisor de águas da trama, a faz repensar suas atitudes frente a um mundo que é, com muito mais frequência e intensidade do que ela parecia pensar, hostil e implacável com quem não se enquadra nos moldes desejados por sociedades quase sempre são, em maior ou menor grau, machistas, violentas e castradoras. Ela, enfim, amadurece. Mas da melhor forma, a meu ver: sem se render aos que querem domar seu espírito.

Ao contrário do que se possa imaginar, no entanto, a narrativa passa longe do panfletarismo. É apenas a história honesta – de uma honestidade muitas vezes desconcertante, aliás – de uma viagem com momentos tensos e tragicômicos, mas também cheia de diversão regada a muito sexo, muita droga e algum rock and roll – há o registro de um megashow do The Clash ao qual elas têm acesso de forma clandestina, evidentemente. Uma história que valeu a pena ser vivida, com certeza. Tanto que rendeu um delicioso relato para ser degustado tanto tempo depois.

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