terça-feira, 7 de julho de 2020

Amaral Cavalcante

Na década de 1980 minha familia costumava "descer a serra" de Itabaiana ruma a Aracaju para se esparramar nas areias da Atalaia ou da praia dos artistas. Foi nessa época que tive meus primeiros contatos com o "pasquim sergipano", o jornal alternativo Folha da praia, distribuído farta e gratuitamente entre os que tostavam ao sol entre banhos de mar, farofa e cerveja gelada. Mais tarde, já universitário - e "fanzineiro" - fui convidado por um amigo, Antonio Passos, a escrever meu primeiro artigo para aquele mesmo jornal. Dois, na verdade: um sobre a chegada das TVs por assinatura a nosso país e outro sobre, veja só, perversão sexual!

Só fui conhecer seu editor, Amaral Cavalcante, cerca de 20 anos depois, quando participamos juntos de algumas edições do programa de debates "Contraponto" da TV Aperipê, a emissora pública do estado de Sergipe. Ele então me ofereceu uma coluna fixa sobre cultura naquele mesmo Folha da praia, que continuava circulando gratuitamente pela cidade. Aceitei, claro, e foi graças a Amaral, que quando eu menos esperava me ligava pedindo um novo texto longo ou notas para a coluna, que eu não parei completamente de escrever - quem um dia acompanhou esse blog e o visita esporadicamente certamente já notou isso: as poucas matérias publicadas com a minha assinatura nos últimos tempos foram reproduções de textos publicados originalmente no Folha da praia ou na revista Cumbuca, que ele também editava.

Amaral morreu hoje, aos 73 anos. Com a morte de Amaral é possível que este blog morra de vez, ou entre num longo períordo de hibernação. o tempo dirá. Segue um texto que o jornalista e poeta Jozailto Lima publicou hoje em seu site que faz jus à sua memória, muito mais que essas mal traçadas linhas que teclei de forma hesitante e atabalhoada até aqui.

Um beat. Um poeta. Um iconoclasta. Um lúdico. Um lírico. Um memorialista. Um passional. Um jornalista. Um arregimentador de desiguais e de diferentes. Um boêmio. Um que marcou.
Em diversas categorias de definições bem se encaixava o velho Antonio Amaral Cavalcante, que na madrugada deste dia 7 de julho juntou uma bota noutra com o bico pra cima e bateu às portas de São Pedro. 
Amaral Cavalcante lutou bravamente, entre uns e vinhos, contra um diabetes indelicado, um câncer de próstata, mas não quis prosa com a Covid-19 que Jair Bolsonaro batizara de uma gripinha. 
Amaral Cavalcante morreu nesta madrugada na Urgência do Hospital do Ipes e vai ser cremado na Caueira ainda durante esta terça-feira numa solenidade nada solene: só ele com seu fogo final. No atestado de óbito está contida a inscrição da Covid.
Antonio Amaral Cavalcante nasceu no dia 11 de julho de 1946 em Simão Dias - estava, portanto, a quatro dias de emplacar 74 anos. Foi avexado, e partiu  sem arredondar a conta.
Impossível pensar a cena da memória, da cultura beat e do jornalismo sergipano sem que se puxe uma cadeira cativa e fornida para Amaral Cavalcante. Nos anos 70 e 80 ele deu dois tiros certeiros nos agitos culturais do lugar.
Com um, funda o irreverente Folha da Praia, que foi laboratório jornalístico e da contracultura de muitos malucos sergipanos e aqui aportados. A Folha da Praia foi, em versão serigyzada, um Pasquim. Um monumento ao jornalismo destabacado, lírico, chutador de paus de barraca. Contestador.
Era um inferninho contra botas e quepes de milicos e adesistas da nada branda ditadura militar, hoje irresponsavelmente tão evocada com suspiros de saudade por alguns insanos. A Folha fez história e garantiu a existência e os vinhos de Amaral.
Ainda na mesma década, Amaral Cavalcante causou com "Instante Amarelo", seu único livro de poemas publicado em vida - bom livro, por sinal. Ele era, ao modo arrebentador, signatário da poesia marginal dos 70, que tinha uma visão dos beats bem ativada. 
Há em "Instante Amarelo" ecos de Cacaso, Leducha, Leminisk e de muitos dos seus contemporâneos, como Mário Jorge Menezes e Ilma Fontes, que reverberam a poesia dos 70 com dignidade na terra dos cajueiros e papagaios.
Neste milênio, convidado por mim a ser um cronista do falecido Cinform, Amaral Cavalcante surpreendeu com um jorro portentoso de escritos na esfera memorialista.
Destilou textos fantásticos, onde a linha do afeto memoralístico deu o ritmo, o compasso e a formação do livro "A vida me quer bem", uma reunião do melhor desta fase, que ele lançou dia 7 de novembro do ano passado.
Sim, a vida quis bem a Amaral Cavalcante e ele, inegavelmente, quis bem a ela. Uma pena que ambos tenham levantado o crachá do adeus assim tão cedomente. Tão precocemente.
E, ainda mais, em tempo de pandemia de Covid-19, que nos veda de afagar os cabelos ou beijar a testa dos que partem.
Mas incomode-se não, Amaral velho de guerra, e se sinta afagado. Que a terra - ou melhor -, o fogo lhe seja leve.
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