O rock “underground” em Salvador não era para os fracos. Eu
já tinha ouvido algumas histórias “cabulosas” a respeito, mas não dei
importância – ou me considerava “um forte”, como os sertanejos de Euclides da
Cunha. Eu iria àquele show, de qualquer jeito. Era questão de honra. Calhou que
uma amiga também ia e me ofereceu companhia e estadia grátis, mas foi logo
avisando: ela ia ficar com os punks, mais precisamente com os membros de uma
“gangue” relativamente famosa na época, a VS – Vermes do sistema. Namorava um
deles. A alcunha não soava alvissareira,
mas me enchi de coragem – sou de Itabaiana, porra! – e disse que sim, ia
junto.
Fomos recebidos na rodoviária pelo referido consorte e nos
deslocamos a um bairro periférico onde a turma iria se encontrar. E que turma! Eram
todos chamados por apelidos “fofos”: Decadência, Minério, Esgoto, Bebedeira e Olho Sêco. Foi
nesse dia que eu conheci Morcego, um cara divertido com uma personalidade
magnética, vocalista de uma banda chamada “Azucrinação”, que depois se tornaria
a lendária “Bosta Rala” – por aí o nobre leitor pode ter uma idéia do “naipe”
das criaturas. Mas tudo bem: os caras já me conheciam de um festival que eu
havia ajudado Silvio da Karne Krua a organizar no qual a gente fez um acordo
camarada para que eles pudessem entrar praticamente de graça – pegamos umas
camisetas em troca dos ingressos. Não esqueço de uma cena inusitada, neste
festival: a diretora do Teatro Lourival Batista servindo um cafezinho aos punks
soteropolitanos – desconfio seriamente que tanta simpatia era mais por medo que
por gentileza – quando um deles sentou-se no sofá e cruzou as pernas, mas sua
calça estava tão detonada e rasgada que dava para ver seus “documentos”, os
colhões “vazando” por um buraco entre os molambos. Tosco demais ...
Eu era o “brother de Aracaju”, portanto. Apesar de ser
cabeludo, me consideravam. Chegou a hora do show e lá fomos nós – os punks iam
apenas pra ficar na porta e tentar encontrar o Gordo do Ratos para chamá-lo de
traidor. Se possível, espancá-lo, também. Ônibus lotadíssimo, um sufoco. Viagem
longuíssima, pensei que não chegaria nunca. Estranhei terem todos passados pela
catraca sem pagar, mas depois descobri que era o costume, no meio da viagem o
cobrador saía circulando naquele aperto desgraçado cobrando de um por um. Mais
tosqueira, portanto. Sério,foi uma viagem horrível – tava MUITO apertado,
aquele “busu” ...
Finalmente chegamos ao que eu pensava que seria o destino
final, mas para minha surpresa nossos companheiros de desventura começaram a se
aboletar nas carrocerias de três carros de lixo! Sim, a segunda parte da viagem
seria feita de carona com a limpeza pública! Lembro que fiquei paralisado,
tentando entender o que estava acontecendo, até que ouvi um deles me alertar
para subir logo, se não quisesse ficar pra trás. Fui, né. Fedor desgraçado, mas
fazer o que ...
O local do evento era um clube na orla, a Danceteria
“Krypton”. Acho que entrei sozinho – não me lembro bem. Minha amiga tinha ido
só pelo “role” mesmo, também considerava os ratos traidores do movimento. Como eu não era do tal movimento, tava
liberado da patrulha ideológica. Gostei do show, claro, apesar de fazer parte
da turnê de um disco, “Anarkophobia”,
que eu não havia gostado tanto quanto o anterior, “Brasil”. Na época eu
era um jovem “afoito” e costumava freqüentar as rodas de “pogo” de minha
cidade, mas naquela noite descobri que em Salvador a coisa era bem diferente:
me arrisquei e fui completamente moído de pancada, triturado e jogado de volta
à parede onde havia me abrigado em questão de segundos. Me aquietei e me conformei
em ficar só vendo de longe aquele verdadeiro clube da luta.
Saí todo feliz mas me perguntando se teria que dormir na rua.
Felizmente meus cicerones ainda estavam
por lá, não haviam me abandonado. Teria, portanto, um teto para me abrigar.
Assim esperava. A viagem de volta foi igualmente tosca: os caras foram o
caminho inteiro abordando “metaleiros” e tomando suas camisetas na base da
pancada, sempre com o cuidado de me acalmar, que eu não me preocupasse, pois eu
era brother, de Aracaju. Saltamos do ônibus e foi mencionada a intenção de
fazermos um lanche antes de dormir, o que muito me agradou, pois estava
morrendo de fome, mas com medo de propor o “pit stop” e ser tachado de playboy.
Pra variar, a coisa não era bem como eu esperava: o lanche dos caras eram
restos de frutas do lixo de uma feira que havia acabado. Lembro que comi um
pedaço de maçã meio apodrecido, mas ainda aproveitável. Nem passou pela minha cabeça
recusar, nem fazer cara de “nojinho”. Já a casa onde ficaríamos era um barraco
numa favela, quente, apertadíssimo e cheio de muriçocas. Dormi no chão de terra
batida, não havia piso. Quer dizer, tentei dormir. Não consegui, tive uma crise
de asma.
Voltei para a rodoviária todo sujo de terra, com medo de ser
confundido com um mendigo e ter negada minha entrada no ônibus, mas consegui
voltar pra casa são e salvo. Foi a primeira de muitas viagens que fiz a
Salvador, sempre em busca de rock “doido”, e de onde voltava sempre com
histórias toscas para contar. Porque, segundo os Retrofoguetes, como dizia a Irmã Dulce, “quem tá no rock é
pra se fuder”.
NOTA: Texto publicado originalmente no jornal Folha da Praia. Talvez seja o primeiro de uma série de relatos sobre minhas andanças no mundo do rock subterrâneo ...
A
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Foda demais o texto, quero 300 paginas disso! :D
ResponderExcluirMaravilhoso! conta mais!
ResponderExcluirCaro Adelvam, você e toda a família de Aracaju, sempre serão bem vindos à Salvador.
ResponderExcluirEm nome da VS , agradecemos todas as hospitalidades que recebemos dessa galera daí.
As ocorrências são todas verídicas !
Tem momentos em nossas vidas que fazemos o que é necessário, mesmo que pede futuramente.
Vermes do Sistema pra sempre !
Olho Seko VS
A Vermes do Sistema, sempre foi muito próxima do cenário underground de Aracaju. Lembro que fomos a um festival em São Cristóvão e fomos super bem recebidos pela punkaiada local e pela população.
ResponderExcluirLula VS ...
Muito bom este texto maravilhoso isto e um texto muito foda
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