segunda-feira, 5 de junho de 2017

VERMES DO SISTEMA

Eu tinha vinte e poucos anos no início da década de 1990 e era muito fã dos Ratos de Porão, clássica banda de punk rock hard core paulistana. Nunca os tinha visto ao vivo, no entanto. Sonhava com isso. Quando soube que iriam tocar ali do lado, em Salvador, imediatamente me pus a postos para a empreitada. Mal sabia o que me esperava ...

O rock “underground” em Salvador não era para os fracos. Eu já tinha ouvido algumas histórias “cabulosas” a respeito, mas não dei importância – ou me considerava “um forte”, como os sertanejos de Euclides da Cunha. Eu iria àquele show, de qualquer jeito. Era questão de honra. Calhou que uma amiga também ia e me ofereceu companhia e estadia grátis, mas foi logo avisando: ela ia ficar com os punks, mais precisamente com os membros de uma “gangue” relativamente famosa na época, a VS – Vermes do sistema. Namorava um deles. A alcunha não soava alvissareira,  mas me enchi de coragem – sou de Itabaiana, porra! – e disse que sim, ia junto.

Fomos recebidos na rodoviária pelo referido consorte e nos deslocamos a um bairro periférico onde a turma iria se encontrar. E que turma! Eram todos chamados por apelidos “fofos”: Decadência,  Minério, Esgoto, Bebedeira e Olho Sêco. Foi nesse dia que eu conheci Morcego, um cara divertido com uma personalidade magnética, vocalista de uma banda chamada “Azucrinação”, que depois se tornaria a lendária “Bosta Rala” – por aí o nobre leitor pode ter uma idéia do “naipe” das criaturas. Mas tudo bem: os caras já me conheciam de um festival que eu havia ajudado Silvio da Karne Krua a organizar no qual a gente fez um acordo camarada para que eles pudessem entrar praticamente de graça – pegamos umas camisetas em troca dos ingressos. Não esqueço de uma cena inusitada, neste festival: a diretora do Teatro Lourival Batista servindo um cafezinho aos punks soteropolitanos – desconfio seriamente que tanta simpatia era mais por medo que por gentileza – quando um deles sentou-se no sofá e cruzou as pernas, mas sua calça estava tão detonada e rasgada que dava para ver seus “documentos”, os colhões “vazando” por um buraco entre os molambos. Tosco demais ...

Eu era o “brother de Aracaju”, portanto. Apesar de ser cabeludo, me consideravam. Chegou a hora do show e lá fomos nós – os punks iam apenas pra ficar na porta e tentar encontrar o Gordo do Ratos para chamá-lo de traidor. Se possível, espancá-lo, também. Ônibus lotadíssimo, um sufoco. Viagem longuíssima, pensei que não chegaria nunca. Estranhei terem todos passados pela catraca sem pagar, mas depois descobri que era o costume, no meio da viagem o cobrador saía circulando naquele aperto desgraçado cobrando de um por um. Mais tosqueira, portanto. Sério,foi uma viagem horrível – tava MUITO apertado, aquele “busu” ...

Finalmente chegamos ao que eu pensava que seria o destino final, mas para minha surpresa nossos companheiros de desventura começaram a se aboletar nas carrocerias de três carros de lixo! Sim, a segunda parte da viagem seria feita de carona com a limpeza pública! Lembro que fiquei paralisado, tentando entender o que estava acontecendo, até que ouvi um deles me alertar para subir logo, se não quisesse ficar pra trás. Fui, né. Fedor desgraçado, mas fazer o que ...

O local do evento era um clube na orla, a Danceteria “Krypton”. Acho que entrei sozinho – não me lembro bem. Minha amiga tinha ido só pelo “role” mesmo, também considerava os ratos traidores do movimento. Como eu não era do tal movimento, tava liberado da patrulha ideológica. Gostei do show, claro, apesar de fazer parte da turnê de um disco, “Anarkophobia”,  que eu não havia gostado tanto quanto o anterior, “Brasil”. Na época eu era um jovem “afoito” e costumava freqüentar as rodas de “pogo” de minha cidade, mas naquela noite descobri que em Salvador a coisa era bem diferente: me arrisquei e fui completamente moído de pancada, triturado e jogado de volta à parede onde havia me abrigado em questão de segundos. Me aquietei e me conformei em ficar só vendo de longe aquele verdadeiro clube da luta.

Saí todo feliz mas me perguntando se teria que dormir na rua. Felizmente meus cicerones  ainda estavam por lá, não haviam me abandonado. Teria, portanto, um teto para me abrigar. Assim esperava. A viagem de volta foi igualmente tosca: os caras foram o caminho inteiro abordando “metaleiros” e tomando suas camisetas na base da pancada, sempre com o cuidado de me acalmar, que eu não me preocupasse, pois eu era brother, de Aracaju. Saltamos do ônibus e foi mencionada a intenção de fazermos um lanche antes de dormir, o que muito me agradou, pois estava morrendo de fome, mas com medo de propor o “pit stop” e ser tachado de playboy. Pra variar, a coisa não era bem como eu esperava: o lanche dos caras eram restos de frutas do lixo de uma feira que havia acabado. Lembro que comi um pedaço de maçã meio apodrecido, mas ainda aproveitável. Nem passou pela minha cabeça recusar, nem fazer cara de “nojinho”. Já a casa onde ficaríamos era um barraco numa favela, quente, apertadíssimo e cheio de muriçocas. Dormi no chão de terra batida, não havia piso. Quer dizer, tentei dormir. Não consegui, tive uma crise de asma.

Voltei para a rodoviária todo sujo de terra, com medo de ser confundido com um mendigo e ter negada minha entrada no ônibus, mas consegui voltar pra casa são e salvo. Foi a primeira de muitas viagens que fiz a Salvador, sempre em busca de rock “doido”, e de onde voltava sempre com histórias toscas para contar. Porque, segundo os Retrofoguetes,  como dizia a Irmã Dulce, “quem tá no rock é pra se fuder”.

NOTA: Texto publicado originalmente no jornal Folha da Praia. Talvez seja o primeiro de uma série de relatos sobre minhas andanças no mundo do rock subterrâneo ...

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