segunda-feira, 15 de agosto de 2016

No sertão, em karne viva ...

JUVENTUDE DE SOUSA, PB
“Pessoas castigadas pelo sol e pela fome lamentam a dor de mais um ano que passou”, diziam eles em “Política da sêca” já no primeiro álbum, lançado em vinil em 1994. Karne Krua, apesar de ser uma banda originalmente urbana – nasceu no Conjunto Bugio, periferia de Aracaju, em 1985 – sempre cantou as mazelas do povo sofrido do sertão nordestino. Foi com muito gosto que recebeu, portanto, o convite do Centro Cultural Banco do Nordeste para que participasse da edição deste ano do projeto “Rock Cordel”, em juazeiro do Norte, Ceará, e Sousa, na Paraíba.

Precisavam de alguém que dirigisse para ajudar na empreitada – 644km de ida, 189 entre as duas cidades e 730 de volta – então me chamaram. De carro alugado, saímos de casa às 3 da manhã da sexta-feira, 23 de julho, e aportamos na terra do Padre Cícero depois do meio-dia. Cidade bonita, situada num vale circundada por montanhas. Crescendo, com cerca de 260.000 habitantes, já apresenta um embrião de “skyline” com arranha-céus impressionantes.

No centro, a praça Pe. Cícero (tinha que ser, né) já estava sendo preparada para o evento. A banda passou o som – instalado num palco em frente a uma estátua do ... padre Cícero! - e resolveu adiar o descanso da longa viagem diante da insistencia das simpáticas moças da produção para que visitassem os camarins, devidamente abastecidos com suquinhos e frutinhas, mas sem camas, que era do que precisávamos naquele momento. Em todo caso, nada a reclamar, tratamento impecável ...

O show (veja AQUI) começou cedo, por volta das 20H. Por ser numa praça pública e num dia de feriado na cidade, acabou atraindo um bom público, boa parte de curiosos “não iniciados”. Na linha de frente, a juventude “roqueira” ensandecida foi à loucura, agitando muito, circundada por uma miríade de rostos com os olhos fixos no palco, impressionados com a verdadeira catarse sonora que saia dos altos falantes. Silvio, o vocalista, estava doente, gripado e com a garganta inflamada, mas mesmo assim entregou uma perfomance avassaladora. Aos poucos foram conquistando a platéia com uma apresentação explosiva, emendando uma música atrás da outra, sem pausa para descanso. No final, depois de um bis insistentemente pedido, foram ovacionados e muito comprimentados.

O show terminou cedo e a noite do Cariri nos esperava:  comemoramos, eu e Alexandre Gandhi, os insones, o sucesso até ali da empreitada num simpático bar “roqueiro” chamado “Cangaço”, que ficava a três quadras da praça. Pra lá de simpático, eu diria: impressionante! Instalado numa ampla casa residencial adaptada, dispunha de vários ambientes muito bem decorados e aconchegantes, com música de excelente qualidade saindo dos auto-falantes. Nos fundos, no que seria originalmente um quintal, um “voz e violão” tocado por um musico competente, com excelente perfomance vocal. Animou o público – bastante despojado, aliás, na base da camiseta, bermuda e chinelo, bem diferente do povo hipster chique “empiriquitado” que tinha visto uma semana antes na Reciclaria de Aracaju – ao ponto de provocar uma cena inusitada, quando algumas garotas dançaram funk ao som de Legião Urbana(!!!), requebrando lascivamente até o chão ...

No dia seguinte, um sábado, demos um “rolê” pelo comércio e pudemos ver o impacto da apresentação: os caras foram reconhecidos, abordados e parabenizados várias vezes na rua. Impressionante, um verdadeiro dia de “rock star”. Visitamos uns sebos e uma loja especializada em rock, além de constatarmos que praticamente todos os estabelecimentos do centro comercial de Juazeiro ostentavam em suas portas uma estátua do padre Cícero, o onipresente. Nas ruas, um carro de som anunciava uma promoção da òtica Padre Cícero, que fica na Rua pe. Cícero, esquina com a Praça Pe. Cícero. Por volta do meio dia retomamos a estrada, passando antes pela Aveninda Padre Cícero e vendo ao longe a célebre estátua do Padre Cícero ...

O caminho até a próxima parada foi tranquilo, apesar de sinuoso nas imediações de Juazeiro. Sousa é menor – população estimada de 68.000 habitantes – e menos marcada pela religiosidade. Mas tem pegadas de dinossauros! Fica lá um dos mais importantes sitios paleontológicos existentes, com a maior incidência de pegadas de dinossauros do mundo! Mas infelizmente, por causa da passagem de som, não pudemos visitar o vale. Tivemos que nos contentar em tirar fotos com algumas das muitas estátuas dos dinos espalhadas pela cidade, além de comprar biscoitos no Supermercado Dinossauro, que fica ao lado da pousada Dinossauro – não ficamos lá, fomos gentilmente hospedados por um amigo. E lá os dinossauros, no caso, éramos nós, já que ele é novinho ...

O show, que começou por volta das 22H, aconteceu num calçadão que fica ao lado do Centro Cultural Banco do Nordeste, o promotor do evento – bem bacana, aliás, seria interessante ter um destes aqui em Aracaju. Tinha menos publico que em Juazeiro, mas foi igualmente devastador, com um set list conciso dividido em blocos temáticos, dentre eles um que reunia músicas que falavam do sertão nordestino, como “O vaqueiro e a boiada”, “O guerreiro”, “Terra Morte”, “Sêco” e “Inanição” – esta última uma obra-prima, provavelmente a melhor música da karne Krua. O público, especialmente a juventude sedenta por rock selvagem, agitou muito e ovacionou a banda.

Na volta pra casa, nos arredores de Campina Grande, um susto: paramos o carro numa ruela paralela á rodovia para ajustar o GPS. De cara já chamamos a atenção de um casal de transeuntes, que pareceu bastante assustado com a nossa presença. Normal, tempos de violência urbana  desenfreada, tem que ter medo mesmo. Enquanto Ivo mexia nas coordenadas notei que logo à frente, num descampado, se avistava um presídio. Ok. Os sinais de alerta mentais começaram a piscar quando uma viatura da polícia tenha passou por nós em marcha lenta, olhando fixamente para o interior do veículo. Voltou minutos depois com uma escolta impressionate, de mais uns três ou quatro veículos, de onde saltaram homens armados com fuzis de grosso calibre se dirigindo em nossa direção. Mantivemos a calma e saltamos do carro a pedido do comandante da operação, enquanto os que faziam a cobertura verificavam se havia alguém por trás do muro ao lado do qual estávamos estacionados. Mãos na parede, fomos revistados. Nada foi encontrado e o comandante pediu pediu para que abrissimos o porta-malas do carro. Ao constatar que se tratavam de musicos – Blitz! Documentos! “Só temos instrumentos” - explicou de maneira educada que estavam fazendo a segurança do presídio, já que era dia de visitas, e haviam nos abordado por estarmos no lugar errado na hora errada, em atitude suspeita. Desculpou-se pelo incômodo e ainda nos deu dicas de rotas.

E foi isso! Vida longa ao Rock Cordel, que proporciona a bandas independentes com trabalho autoral a circulação por cidades onde dificilmente chegariam por conta própria, com uma estrutura relativamente boa e um cachê relativamente decente. Que não sucumba aos tempos sombrios em que vivemos – ouvi relatos de que era o último projeto cultural ainda de pé dentre vários que o banco mantinha.

FORA TEMER!

A.

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