segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

BOWIE

Uma semana se passou desde a morte de David Bowie e ainda pesa o vazio causado por uma notícia dessa magnitude anunciada de forma tão retumbante. O dia 11 de janeiro de 2016 transformou-se numa missa global de luto multicolorido, em que milhões de fãs saíram em público para escancarar sua paixão, quase sempre escolhendo fases e faces do inglês que se relacionassem às suas próprias vidas. O compartilhamento compulsivo de sentimentos, frases, fotos, vídeos, músicas, letras, links e gifs animados nas redes sociais foi apenas a materialização de uma tristeza planetária, que transformou a segunda-feira em uma estranha celebração. Ela ao mesmo tempo fazia as pessoas desatar em tristeza interminável enquanto celebravam a plenos pulmões a importância de um artista que fez tudo do jeito que quis – até morrer.

A morte de um artista famoso, influente ou querido (Bowie era os três) inevitavelmente faz multidões de fãs e admiradores lamentar em público, provocando ondas de saudade, luto e tristeza que aumentam com a proporção da popularidade e intensidade da produção do falecido. O simples anúncio da morte de David Bowie já seria suficiente para causar abalos emocionais coletivos de proporções geológicas (uma variação ainda maior do que ocorrera semanas antes com o vocalista do Motörhead, Lemmy, ou dias depois com o ator inglês Alan Rickman). Mas ficamos sabendo da morte de David Bowie um fim de semana após o lançamento de seu novo álbum, data marcada para coincidir com seu aniversário de 69 anos.

Blackstar – ou como ele preferia escrever, ★ – surgiu imponente, com longa duração e poucas faixas, indubitavelmente o disco mais ousado de Bowie em décadas – precisamente desde o disco Low, de 1977. O lançamento anterior, o disco The Next Day, lançado em 2013 após um hiato de quase dez anos desaparecido do público -, atualizava o velho Bowie para a segunda década do século 21, com suas belas canções e o alívio por sua reaparição, vinda de súbito anos após o surgimento de boatos que cogitavam que seu desaparecimento estivesse relacionado a um estado de saúde debilitado ou talvez de sua própria morte. O disco de 2013 mostrava que Bowie estava vivo e bem o suficiente para gravar um disco inteiro e clipes, fazendo ambos longe do olho público, anunciando-os sem criar nenhuma expectativa.

★ no entanto é mais do que “o disco que David Bowie lançou no ano ____'', algo que ele vem fazendo desde os anos 80, e ele fez questão de nos avisar disso. Apresentou o disco no início de novembro do ano passado ao mostrar a impressionante faixa-título, um épico de dez minutos (cravados) dividido em duas partes. Na primeira, torta e conflituosa, é ao mesmo tempo jazzy e eletrônica, e cria uma atmosfera tensa com letras enigmáticas. A faixa foi lançada junto com um clipe que vaga entre a ficção científica e o surrealismo, e nesta primeira parte vemos o esqueleto de um astronauta – seu crânio cravejado de pedras preciosas – sendo descoberto e transformado em objeto de culto, enquanto Bowie canta a música vendado, com porcas de parafuso no lugar dos olhos. Na segunda parte, uma balada mais tradicional ao estilo do compositor, Bowie surge de olhos abertos, segurando um livro surrado como uma Bíblia gasta, com a estrela negra em sua capa. “Algo aconteceu no dia em que ele morreu'', começa a cantar na parte mais dramática da canção, em que Bowie nega a quase todo verso ser algo (“não sou uma estrela de filmes'', “não sou uma estrela maravilhosa'' – marvel star, no inglês original -, “não sou uma estrela branca'', “não sou um estrela gangster'' – gangstar, em inglês -, “não sou uma estrela pornô''), para insistir em ser “a star's star'' (“uma estrela das estrelas'', e é fato que ele inspirou milhares de outros artistas) e, principalmente, “uma estrela negra''.

O que Bowie queria dizer com aquilo? Como aquele novo imaginário conversava com sua carreira? Curioso por natureza, David Bowie passou seus anos 70 lendo e flertando com o ocultismo. Será que a ★ do título do disco – o primeiro de sua carreira que não trazia o astro na capa, exibindo apenas a estrela negra sob um fundo branco – teria a ver com a volta àquele período? Os dez minutos de duração da faixa que batiza um álbum também era uma outra referência àquela época, quando introduziu o disco Station to Station, de 1976, com um faixa gigantesca. A estrela negra também era representada no clipe como um sol escuro, uma referência que os povos americanos pré-colombianos associavam ao fim do mundo. O que Bowie queria dizer com aquilo?

Quando o disco foi lançado em seu último aniversário viu-se que aquele tom estava porr todo o disco, entre o experimental e o melódico, repleto de letras cifradas e referências herméticas. O clipe de uma segunda música – “Lazarus'' – surgia no dia do lançamento do disco, na sexta 8 de janeiro, e alimentava ainda mais especulações. Desde o personagem mítico que batiza a canção – a única pessoa, além de Jesus Cristo, a voltar do mundo dos mortos na Bíblia -, até a própria atuação de Bowie num leito de hospital, novamente usando a venda com porcas de parafuso no lugar dos olhos. “Olhe para mim aqui em cima, estou no céu'', cantava, para falar mais adiante que “não tenho mais nada a perder''.

Outra faixa (“Girls Love Me'') foi composta no dialeto Nadsat que Anthony Burgess criou para os marginais que protagonizam seu clássico Laranja Mecânica, e canta “estou aqui na castanheira/ quem é que vai mexer comigo?''. Mas Bowie não se refere a uma árvore – e sim ao Chestnut Tree Coffee em que o protagonista de 1984, de George Orwell (um dos livros favoritos de Bowie, que inspirou diretamente algumas de suas canções), encerra sua participação no livro (leia o livro!). “I Can't Give Everything Away'' encerra o disco sampleando a gaita que Bowie usou em uma faixa do disco Low (“A New Career in a New Town“) e começando a canção falando que “sei que algo está muito errado.''

Todo o simbolismo e o hermetismo que Bowie havia colocado em seu vigésimo quinto álbum foi revelado com a notícia de sua morte na manhã da segunda-feira passada. Soubemos que Bowie já vinha se tratando em relação a um câncer por dezoito meses e que gravou o disco como um testamento para os fãs. Daí a ausência da capa. Eis a estrela negra – a própria morte. Encenada e transformada em arte. O produtor do disco, Tony Visconti, que trabalhava com Bowie desde o início de sua carreira, postou em sua conta no Facebook que “ele sempre fez o que queria fazer. E ele queria fazer da sua forma e queria fazer da melhor forma. Sua morte não foi diferente de sua vida – uma obra de Arte. Ele fez Blackstar para nós, seu presente de despedida. Eu soube por um ano que essa era a forma que deveria ser.''

Consciente de sua própria morte, Bowie a transformou em uma obra de arte. A consciência de sua morte pode ter começado até mesmo no disco anterior, The Next Day, quando retirou apenas seu rosto da capa, mantendo o resto da imagem da capa do disco “Heroes'', de 1977, intacta. Se nos debruçarmos em sua discografia, percebemos que essa consciência é onipresente – afinal, é uma das poucas coisas que realmente sabemos da vida, que dela não sairemos vivos. “Space Oddity'', seu primeiro hit, é sobre a morte de um astronauta no espaço e o primeiro personagem consciente de Bowie – o alienígena Ziggy Stardust – suicida-se no palco transformando sua morte em arte. Nesta mesma época gravou “La Mort'' do belga Jacques Brel como “My Death“, cantando que “não importa o que haja atrás daquela porta, não há muito a fazer / Anjo ou demônio, não me importa / Pois na frente daquela porta / Está você''. Em várias outras passagens de sua coleção de hits há tantas outras referências à morte – acenando que Bowie sabia que queria transformar a sua própria passagem em um grande gesto artístico.

★ não é apenas uma imagem forte, mas também, como descobriu o crítico e escritor Michael Azerrad, é também o nome de uma lesão cancerígena, batizada assim por seu formato. Então é possível até que a morte de Bowie tenha nomeado seu último trabalho, fazendo-o estampar uma versão estilizada de sua causa mortis na capa do disco. E assim, letras e significados ocultos do disco são revelados como um grande adeus. “Eu tenho o drama e isso não pode ser roubado'', canta Bowie em “Lazarus'', falando que a arte é maior do que a vida, antes de despedir-se na mesma canção: “Desta forma ou de nenhuma outra / Sabes que eu estarei livre''.

E não deixa de ser curioso que o Chesnut Tree Cafe que encerra 1984 (citado em “Girls Love Me'') seja batizado a partir da música “Chesnut Tree'', de Glenn Miller, que fala sobre a possibilidade de nos reencontrarmos todos mais uma vez. Mais uma vez, a única certeza que temos nessa vida.

por Alexandre Matias

UOL

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