sexta-feira, 22 de maio de 2015

A Fúria ...

(*) Não gostei do novo Mad Max - o ator, Tom Hardy. Fraquinho. Mas seu desempenho não compromete o resultado final, porque a verdadeira protagonista é a Imperatriz Furiosa interpretada de forma magistral por uma Charlize Theron ainda linda, apesar de praticamente irreconhecível. O filme é absolutamente sensacional! Uma obra-prima! Provavelmente o melhor do gênero – ação! - que eu já assisti em toda a minha vida. Nunca mais eu tinha torcido tanto para que uma projeção não acabasse, e depois do fim fiquei imaginando como seria, por exemplo, a cidadela/refinaria para a qual Furiosa originalmente se dirigia, antes de iniciar sua fuga. Ou o que aconteceria a seguir - aguardemos, pois há notícias de que haverá novas sequencias. Me fez lembrar, também, o tempo em que eu, garotão, voltava pra casa a pé, depois das sessões do Cine Santo Antonio, em Itabaiana, com uma metralhadora imaginária nas mãos, depois de ver o primeiro Rambo; ou com uma espada, vagando pela Ciméria, transformado em Conam, o Bárbado; ou voando como o Superman de Christopher Reeve; ou andando feito o cyborg do Exterminador do futuro; ou esperando cruzar com um velociraptor na primeira esquina que cruzasse – aí já em Aracaju, no cinema que ficava na Rua de Laranjeiras, em frente à igualmente saudosa Charutaria Chic. Hoje é um estacionamento. E no lugar do Cine Santo Antonio, em Itabaiana, há agora um supermercado ,..

Abaixo, dois textos muito bons que destrincham o que há nas entrelinhas do "fiapo de roteiro" ...

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(**) Longe de ambicionar uma cronologia ou um estudo de personagem - embora tenhamos acompanhado um fim do mundo gradual com Mel Gibson  por três filmes - os Mad Max constróem, acima de tudo, uma mitologia australiana a partir de subgêneros do faroeste. Não é diferente com Mad Max - Estrada da Fúria (Mad Max - Fury Road, 2015), a volta da franquia ao cinema depois de 30 anos.

O primeiro filme, de 1979, ecoava Rastros de Ódio (1959) e outros westerns de vingança na trama do cavaleiro solitário que caçava os "índios" que dizimaram sua família. Dois anos depois, Mad Max 2  aderia ao subgênero da defesa do forte, com Gibson integrado a um grupo de colonos do futuro. Ao servir de gladiador de aluguel em Além da Cúpula do Trovão (1985), Max não se diferenciava muito dos pistoleiros como o Shane de Os Brutos Também Amam (1953), que se veem no meio de um confronto pelo controle de um oásis próspero no deserto.

No entanto, enquanto os temas que atravessam os faroestes americanos ecoam a busca de uma unidade para o país, nas suas jornadas de redenção e de construção de uma civilidade na Conquista do Oeste, os filmes de Mad Max são absolutamente australianos no seu caráter de penitência. Ao criar uma mitologia que tem na estética sadomasoquista sua constante e na violência extremada o seu processo de purgação, George Miller se filia a uma tradição da literatura e do cinema australiano que se especializou em trazer para o Outback do século 20 - e para o futuro - todo o peso do passado desse país que foi concebido no século 18 como uma colônia penal do império britânico.

Na Austrália, todos são párias. Se Miller faz questão de enquadrar os quatro filmes de Mad Max no formato mais retangular do CinemaScope para valorizar horizontes, como em westerns clássicos, isso só faz de seus cenários arenas mais extensas para toda sorte de desajustados, deformados, sádicos e justiceiros. Em Estrada da Fúria, ele organiza as gangues em estratos econômicos e sociais aparentemente mais complexos, combinando industrias e religiosos messiânicos numa harmonia possível no caos (o mundo certamente vai acabar antes do capitalismo), mas a grande magia de Mad Max é que a arena os iguala.

E dentro dela, nesta volta da franquia ao cinema, Miller não economiza na catarse. Se mesmo alguns dos seus filmes mais subestimados, como As Bruxas de Eastwick (1987), de alguma forma lidam com a purgação pelo castigo, é em Mad Max que o diretor coloca pra fora os seus demônios. Algumas cenas de perseguição de Estrada da Fúria levaram meses para serem filmadas, depois de outros tantos meses de veículos sendo construídos nos sets na Austrália e na Namíbia, e essa obsessão se traduz gloriosamente na tela. O verdadeiro culto pagão de Mad Max, a fé nos automóveis (cujo simbolismo beira o óbvio no novo longa, com o volante transformado em totem), chega ao espectador num misto de missa roqueira, exorcismo e bacanal.

Nem todos os veículos, porém, são pensados como extensões da iconografia sadomasoquista e feitos para penetrar uns aos outros em incontáveis colisões. Porque o subgênero de western eleito por Miller em Estrada da Fúria é o da travessia do comboio, e desde sempre as diligências trazem consigo uma noção de feminilidade. Quantos faroestes já não mostraram no passado carroças que transportam mulheres grávidas, entre famílias que são protegidas pelos homens solitários a cavalo? A diligência é a esperança em marcha, sintetizada na fertilidade da mulher, e dela irradia o senso de proteção da civilidade que marca esses faroestes. A ideia antropomórfica de o caminhão-pipa de Mad Max "dar leite" na sua torneira é a expressão máxima dessa representação.

Sob essa ótica, parece não só justo mas necessário que George Miller escolha uma mulher, Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), como "mãe", dona do caminhão-pipa. No futuro será muito interessante formar sessões duplas entre Mad Max - Estrada da Fúria e faroestes de comboio que também efetivam um ponto de vista feminino, como o recente Dívida de Honra (2014), com Hilary Swank, e principalmente Meek's Cutoff (2010), a obra-prima de Kelly Reichardt estrelada por Michelle Williams. De resto, desconfie de quem acha que "falta roteiro" neste Mad Max: westerns de comboio são exatamente assim, enxutos e pautados pela ação, pelo menos desde 1939, ano de No Tempo das Diligências.

Mas que papel cabe ao Max de Tom Hardy nessa história, diminuído não só por Furiosa mas também pelo arco dramático de Nicholas Hoult? Não bastasse a responsabilidade de substituir o ator titular - e nessa hora fica muito latente como o carisma de Gibson sempre foi o motor do personagem - o Max de Estrada da Fúria ainda precisa lidar com o ocaso da sua masculinidade. No passado, John Wayne conseguia expressar muito bem a fragilidade de homens violentos que se percebiam deslocados num mundo em transformação. Com seu jeito de ator do método que nunca soube ouvir aquele famoso conselho de diretores impacientes ("apenas atue"), Hardy segue a receita desse tipo de papel monossilábico e introspectivo, mas ele não é Mel Gibson - nem John Wayne.

É curioso que, em entrevistas, George Miller associe Max a James Bond, para justificar a troca de atores. Seriam dois casos de personagens que, em nome de uma longevidade, sempre permanecem alheios ao mundo ao seu redor, capazes de sobreviver à base das suas manias, orbitando a ação, sem se afetar pelo contexto. Pois Estrada da Fúria - um filme cujo nervo não está na ação e sim numa mudança de paradigmas - atesta justamente a obsolescência do "caubói". Aquela comparação com Meek's Cutoff vem a calhar aqui porque é um filme muito forte sobre empoderamento feminino e transmissão de responsabilidade, e que torna evidente a incapacidade que George Miller tem de descartar seu mocinho sem de fato se despedir dele.


(***)Evidentemente não existe filme feminista feito por homem, mas as simbologias que George Miller organiza não deixam muito espaço para dúvida: é numa reserva psíquica “matriarcal” que o filme diz que a humanidade tem ainda alguma chance. A nossa melhor jornalista de cinema, Ana Maria Bahiana, não escondeu seu entusiasmo neste texto (e aqui neste complemento ela explica como se desenvolveu o projeto ao longo dos anos). Também é dela a dica desta análise, em que Katie McDonough fala dos limites dentro dos quais um blockbuster (não) pode ser “feminista” (esse está em inglês, e é cheio de spoilers – este meu aqui aliás também tem alguns, já aviso).
Katie explica a consultoria que Eve Ensler, a autora dos Monólogos Da Vagina e ativista, deu para o filme – e dá uma sacaneada no que seria a perspectiva do diretor-roteirista (diz ela que uma mensagem da obra é “uma velha motoqueira misândrica com um saco cheio de sementes mofadas é a melhor coisa que você poderia ser”, em livre tradução). Aqui um outro texto interessante, de um homem, naturalmente, que vai no sentido contrário, saudando o feminismo no filme.
Eu sou mais otimista que Katie no seguinte aspecto: este Mad Max é sim um “filme de menino”, na ação intensa, gigantesca e incessante, quase sem respiros. Esse exibicionismo yang, no entanto, não se esgota em si mesmo, não está a serviço de nada, como nos filmes de um Michael Bay, por exemplo. Não é simplesmente Charlize Theron sendo mais macha que o macho, mandando (e fazendo) Tom “Mad Max” Hardy ficar quieto.
Assim como o caminhão dirigido por Charlize contrabandeia mulheres para fora do cativeiro, assim como para lá do deserto conhecido há um clã de velhas feiticeiras, assim como no coração cínico de Mad Max há uma aflição com o fantasma do que poderia ter sido, essa ação toda se dá em busca de algo perdido. Que, afinal, são sim sementes mofadas – não há o menor problema com sementes mofadas, se elas germinarem (a extinção da água potável pela humanidade, aliás, é o outro subtema).
O veterano George Miller é um cara sagaz com as relações conturbadas entre os gêneros. O maravilhoso As Bruxas De Eastwick (1987) é um estudo sobre como o sedutor perfeito (que é o diabo, e é Jack Nicholson) se vira. Ou melhor, não se vira e enlouquece, quando seu harém (Cher, Michelle Pfeiffer e Susan Sarandon), que ele havia tirado da mesmice da classe média, desenvove laços de sororidade e começa a demonstrar traços de independência… em relação a ele mesmo.
Uma leitura possível deste Mad Max é que ele discute os limites do que um homem pode fazer para “ajudar”, no momento em que o resgate da humanidade é necessariamente o resgate do feminino.(Entrando nos spoilers:) Faz sentido que no fim, Max, que poderia até ser o novo imperador, caia sozinho de volta na estrada – e pior, caia “castrado”, já que seu carro, o Interceptor, foi destruído na perseguição.
O nome da personagem de Charlize, Imperator Furiosa, tem um quê de lilithiano: o da imperatriz que rompe com seu imperador (Immortan Joe), para se juntar às hostes infernais. A principal tarefa de Max nem é tanto pilotar, já que ele dirige o caminhão pior do que ela, e pior até do que o “warboy” Nux. Acaba sendo – contra todas as expectativas – o do bom senso. É Max quem vai propor inverter a lógica lilithiana, de ir cada vez mais para longe do opressor, e identificar o momento em que o mecanismo da opressão coloca em risco a ela mesma, abrindo um flanco para a retomada (feminina) do poder.
Este Mad Max é um filme ambivalente. Como notou Sérgio Alpendre, ele é “estrondoso”, mas contém um comentário em sua própria narrativa sobre esse estrondo. O caminhão sound system que leva um guitarrista pendurado é o tipo de imagem que vai deixar um metaleiro extasiado – e ao mesmo tempo divertir quem odeia heavy metal.
Nesse sentido, os warboys são uma provocação inusitada. Soldados perfeitos, em busca da glória e do portão de Valhalla (e de um spray de cromagem na fuça), não são machos toscos. Pelo contrário, brancos, magros e chamados de “meia vida”, parecem-se com guerreiros eunucos – ou com modelos gays urbanos.
Se entregam à morte gritando por “testemunho”, como evangélicos. Mas, no fim, são eles que reagem positivamente à volta das matriarcas – enquanto Nux se transforma, por influência de uma das beldades liberadas. É esse warboy, o ator Nicholas Hoult, a bem da verdade, quem cumpre o arco dramático que o próprio Max não cumpre. Max está só à espera da oportunidade de desaparecer na poeira de novo, e Tom Hardy não tem nada a fazer a não ser exalar algum charme discreto. Mais discreto que o velho Mel Gibson, by the way.
Os veículos são um aspecto bacana. Tem um quê cronenberguiano, não na fusão do ser orgânico com o mecanismo (VideodromeA MoscaCrash) mas na composição frankensteiniana das máquinas, feitas de camadas e mais camadas de veículos antigos: o carro de Immortan Joe, no qual as mulheres voltam, é praticamente um cadillac cubista com rodas de monster truck. Importante resaltar que Miller evitou ao máximo a computação gráfica. Sempre que possível, o que se vê na tela é real (e o grande momento em CG, como anota Ana Maria, é a tempestade de areia).
Uma das fontes remotas de Mad Max, o filme de outro australiano, Peter Weir, The Cars That Ate Paris/ Violência Por Acidente, é homenageado no ataque dos carros-espinho, citação direta do famoso fusca-espinho de 1974. Outra fonte remota é a distopia atômica O Menino E Seu Cachorro, do diretor e ator LQ Jones – esse cult barato e quase trash de 1975, na ponta oposta do espectro de custos e facilidades tecnológicas, merece uma olhada (não tem feminismo, muito pelo contrário, mas tem um cachorro mutante falante que é um brother maneiro).
É notável que, quanto às motos das matriarcas, o clã das Vuvalini (cujo nome ecoa vulva e o despertar da kundalini, a “serpente” que transmuta a energia desta dimensão em energia superior), Miller contenha o fetiche. São motos simplinhas, meros veículos de transporte – e eu não creio que sejam pelas razões erradas. Assim como não é propriamente charmoso o braço mecânico de Charlize (que guarda alguma relação com a asa cortada de Angelina “Malévola” Jolie na adaptação de A Bela Adormecida).
E mesmo o fetiche tem pontos interessantes, como o fato dos volantes decorados serem pessoais e retirados dos veículos. Parece algo que faria sentido para alguém tipo um motorista cholo, um lowrider, mais do que para um playboy. Enfim. Mad Max – Estrada Da Fúria não é um filme feminista, mas sim um fantástico filme de ação. Que consegue ao mesmo tempo embarcar simbologias inusitadas que darão aos rapazes uma camada adicional para elaborar, enquanto torcem, gritam e suam de emoção.

*** por Adelvan "Kenobi"
** por Marcelo Hessel, no Omelete
* por Alex Antunes, em seu Blog
Omelete

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