quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Adolfo Sá, uma entrevista ...

Fanzines - de Fan(atic) + magazine(revista, em inglês) – são publicações amadoras, geralmente produzidas de forma artesanal e sem fins lucrativos, por (e para) fãs de determinado segmento cultural. Circulam, principalmente, entres os aficcionados por ficção cientìfica, Histórias em quadrinhos e pelo mundo do rock “underground”. A cultura punk, que explodiu na Inglaterra no final da década de 1970, foi a principal responsável por sua disseminação mundo afora, através do lema “Do It yourself”, ou “faça você mesmo”.

Havia uma cena forte de fanzines em Aracaju entre as décadas de 80 e 90 do século passado. Do “Centauro sem cabeça” e “Seduções ecológicas”, que circulavam nos meios universitários, ao “Clube do ódio” e “Buracaju”, nascidos nos porões “roqueiros” da cidade. A eles se juntaram, posteriormente, nomes como “Escarro Napalm” (deste que vos escreve) e o “Cabrunco”, editado por Rafael Jr., baterista da banda Snooze, e por Adolfo Sá – na época, um ilustre desconhecido ...

O “Cabrunco” chegou “chegando”, com uma proposta mais profissional e bem acabada, com editoração eletrônica e com cara de revista, e acabou se destacando não somente no cenário local, como por todo o país. Repercutiu, inclusive, na grande mídia, o que fez com que Adolfo passasse a circular pelos principais circuitos de festivais independentes Brasil afora, sempre emprestando sua verve ao mesmo tempo “bruta” – porque brutalmente sincera e direta – e inteligente à narração do que via acontecer por aí – e por aqui.

Marcou época, mas um dia acabou, porque nada, afinal, dura para sempre. Adolfo, no entanto, manteve o espírito e migrou para internet, onde criou um blog, o Viva La Brasa, que segue mais ou menos a mesma linha: jornalismo “gonzo”, 100% independente, sem o rabo preso e feito direto das ruas, com enfoque no cenário cultural “alternativo” mas se aventurando por temas dos mais variados – do surf, uma de suas paixões, à política, sua principal aflição.

Agora um apanhado de toda essa produção está disponível num formato mais nobre, para ser lido e guardado com todo o carinho nas estantes dos mais “antenados”: acabou de sair “Viva La Brasa”, o livro! Uma produção, como não poderia deixar de ser, totalmente independente, bancada pelo autor na cara e na coragem. Um verdadeiro marco no cenário editorial local, pois serve como registro impresso, para as atuais e futuras gerações – mesmo que no futuro não exista mais energia elétrica! – do trabalho desenvolvido não apenas por Adolfo, mas por todo um grupo de pessoas que atuam informalmente, como ele, longe dos holofotes e dos esquemas viciados da grande mídia comercial e dos apadrinhamentos políticos que engessam nossa produção cultural.

CHEGOU!
O livro foi lançado com grande sucesso numa festa concorridíssima na Caverna do Jimmy Lennon, no centro da cidade, com direito a exposição de ilustrações de Thiago Neumman, apresentações de “pole dance” e de alguns dos nomes mais importantes do cenário musical local: Plástico Lunar, Mamutes, Ferdinando Blues Trio, Karne Krua e The Renegades of punk. A correria foi grande, eu sei, mas resolvemos não dar descanso ao “Homem Brasa” e o intimamos para uma entrevista. O resultado segue abaixo – ainda incandescente ...

# De onde você veio, Adolfo? Conte-nos um pouco de sua infância, do que você lembra de mais marcante e pode ter te influenciado ...

ADOLFO SÁ: Nasci em Salvador em 1975 e morei lá até 88. Minha infância foi normal, fui campeão mirim de judô mas larguei quando quebrei o braço e comecei a pegar onda. Eu e meus amigos costumávamos pular o muro da escola pra curtir o dia lá fora. A rua sempre foi mais atraente do que a academia. Em 86 comecei a surfar e no ano seguinte entrei de cabeça no rock, ouvindo discos e fitas do Camisa de Vênus e Titãs. O álbum "Cabeça Dinossauro" me fisgou, e o Camisa era uma lenda por lá. As revistas Geraldão e Chiclete com Banana também fazem parte da formação nessa época.

# Qual era sua relação com Aracaju? E como você começou a desenvolver essa vocação para o jornalismo? Foi um processo perceptível, em sua cabeça, ou simplesmente “aconteceu”?

ADOLFO SÁ: Desde criança passava as férias de verão em Aracaju, na casa dos meus tios no conjunto Dom Pedro I. Eu e meus primos fazíamos o que todo moleque faz: jogar bola de gude e empinar pipa. Nunca gostei de futebol, nunca gostei de correr nem de ficar debaixo do sol. Em 89 meu pai tava falido e mudou pra cá tentando melhorar a vida; foi o começo de um inferno pessoal pra minha família, porque o coroa despirocou e dá trabalho até hoje. Entrei no Colégio de Aplicação aos 14 e tive que me virar sozinho desde então, até os livros pra estudar eu tinha que arrumar por conta própria. Eu competia em eventos de surf, mas dos 15 aos 17 passei por 3 cirurgias no joelho, o que me fez abandonar a ilusão de ser surfista profissional (risos). Mas eu perdia mais do que ganhava, nunca fui competitivo, nunca quis ser melhor do que ninguém. Na escola, me juntei aos piores alunos porque eram os caras mais espertos e divertidos, mesmo assim volta e meia tirava 10 em redação. No vestibular, sabia que não teria a opção de fazer faculdade particular e não via nenhuma profissão que me empolgasse. Pensei em fazer pra Artes, mas na UFS só rolava de se formar professor e eu nunca quis dar aula. Não gosto de falar muito.

# Seu envolvimento com os fanzines e com o meio alternativo, em geral – como você travou contato, primordialmente? O que o levou a começar um fanzine? Você já pensava, na época, em se profissionalizar, virar um jornalista “de fato”, formado, com diploma? Aliás, você vive de jornalismo?

ADOLFO SÁ: Não vivo de jornalismo. Escolhi o curso mais por falta de opção do que por qualquer outra coisa. Trabalho há 12 anos com audiovisual, editando e dirigindo. É daí que tiro o meu sustento. Comecei fazendo zines por puro instinto, nem sabia o que era isso direito, mas comecei a ser publicado num jornalzinho chamado Zona Sul, não gostava do layout nem do perfil da parada e decidi começar a fazer meu próprio jornalzinho. Atitude sempre tive, o que falta às vezes é grana e incentivo.

# O “Cabrunco”, seu primeiro fanzine, era um projeto pessoal ou coletivo? Lembro que ele foi um dos primeiros, senão O primeiro, na cidade, a usar a editoração eletrônica na confecção – antes era tudo sempre na base da colagem, do improviso autodidata, mesmo. Havia custos com isso, e com a impressão? Em caso afirmativo, havia retorno do investimento financeiro?

ADOLFO SÁ: Meus projetos sempre foram coletivos, nunca tive a arrogância de fazer algo sozinho, apesar de sempre ter corrido atrás dos meus objetivos por conta própria. Rafael Jr., que fazia o zine junto comigo, já era meu amigo das gigs e do surf. Chamei ele, sugeri o nome "Cabrunco" e o resto é história. Sempre tirei grana do bolso pra tocar meus projetos, nunca esperei pelo sistema e jamais tive retorno financeiro. Pelo menos vou morrer realizado sabendo que fiz tudo na medida do impossível.

# Qual era a tiragem, em média, do Cabrunco, e onde e de que forma ele era distribuído? Como se deu o diálogo e a inserção de vocês dentro da cena, que já existia, com bandas e fanzines pioneiros como o Buracaju e a Karne Krua, na ativa desde a década de 80? Foram bem recebidos, de cara, ou houve uma certa desconfiança inicial?

ADOLFO SÁ: A tiragem foi aumentando ao longo do tempo, o zine era distribuído pelo correio. Nos últimos números já rolavam 1000 cópias por edição, sempre independente. Como eu era um moleque, muita gente não botava fé, você mesmo foi um dos mais duros críticos no início e me fez evoluir por causa disso. A real é que a gente tinha a vontade de fazer, mas ainda tava se desenvolvendo e descobrindo o mundo. Sem tantas referências nem facilidades como hoje em dia, onde a internet entrega tudo de mão beijada pra molecada.

# O jornalismo é, pelo menos quando exercido de forma independente, sem o rabo preso com nada, realmente uma atividade de risco? Você já sentiu isso na pele? Já sofreu represálias por conta do escreveu? Lembro de pelo menos um caso de embate físico entre você e um membro de uma banda que não havia gostado de uma critica negativa publicada no fanzine ...

ADOLFO SÁ: Total. Já tive que sair na mão com um otário. As pessoas não gostam de quem fala a verdade, e o esquema em Aracaju é um lamber o rabo do outro. Mas sempre fui verdadeiro comigo mesmo, foda-se o que os outros vão pensar.


# O “Cabrunco” acabou se tornando um marco na cena local, com substancial projeção nacional. Quais foram os momentos mais marcantes, pra você, na trajetória do fanzine? E o que isto te proporcionou, em termos pessoais, sentimentais ou mesmo financeiros?

ADOLFO SÁ: Pra começar, o CABRUNCO tinha um nome que até então era um palavrão no dialeto local, ninguém jamais havia usado pra batizar nada. Por causa dele, conheci o Brasil indo pra festivais, morei durante semanas ou meses em outras cidades, o que não seria possível pra um jovem pobre como eu numa outra circunstância. Fiz amigos pra vida toda, um deles é você. E também arrumei umas namoradas em outros estados, essa foi a melhor parte. Fácil.

# Porque o Cabrunco acabou?

ADOLFO SÁ: Porque, quando você tá fazendo algo, o que não falta é gente pra te criticar, policiar e botar pra baixo. Depois que passa, todo mundo fica falando "ah, como era legal", "saudade" etc.

# Finado o “Cabrunco” você deu uma sumida, o que aconteceu neste hiato em que você, pelo menos aparentemente, ficou de fora da atividade “jornalística”?

ADOLFO SÁ: Eu nunca sumi, quem sumiu foram os amigos. A velha fuleiragem de Aracaju, gente interesseira etc. No mesmo ano que acabei com o Cabrunco, formei uma produtora com uns chapas, a Marginal, que promovia festas no Cultart e fez o 1º festival nacional de rock do estado, o Rock-SE. Trouxemos um monte de bandas do país todo, incluindo os standards Marcelo D2 e O Rappa, mas tivemos um prejuízo monstro e eu saí com uma mão na frente e outra atrás. Mais uma vez, nenhum amigo ofereceu ajuda na hora difícil e eu tive que me virar sozinho pra sobreviver. Entre um bico fodido e outro, me formei em jornalismo. Apesar da minha experiência com autopublicação e colaboração em revistas como Rock Press e Música Brasileira, nenhum jornal local me ofereceu emprego, sequer um estágio. Filhos da puta.

# Como se deu a “retomada”, se é que podemos chamar assim? Via blog? Porque essa opção?

ADOLFO SÁ: Em 2003, arrumei estágio numa produtora e em 2 meses me tornei editor de vídeo. No início de 2004 rolou um passaralho, geral foi demitida, e com a grana do seguro-desemprego me joguei pro Rio de Janeiro, onde morei na casa de Allan Sieber e aprendi um monte de coisa na Toscographics. Quando retornei a Aracaju, tava na pilha de voltar a produzir minhas coisas e criei o blog VIVA LA BRASA, utilizando a tecnologia mais barata disponível. Aí as pessoas começaram a lembrar que eu existo.

# E o blog, o que te proporcionou, em termos de satisfação pessoal, especificamente? Trace um paralelo das diferenças entre as duas épocas que você viveu, a dos fanzines, nos anos 1990, e a virtual/digital, no século XXI.

ADOLFO SÁ: As respostas estão no livro, é só folhear e ler pra entender.

# O blog parou para que você pudesse se dedicar à confecção do livro? Vai voltar?

ADOLFO SÁ: O blog já está de volta, parei porque dirigi a TV pública de Sergipe durante 2 anos e não tinha tempo pra porra nenhuma. Meu ex-patrão era um vampiro, que se foda aquele maldito. Dei um tempo nas postagens, selecionei as melhores e reuni uma equipe pra fazer o livro.

# Como foi e quanto tempo durou o processo de concepção do livro? Ficou satisfeito com o resultado final?

ADOLFO SÁ: Dois anos de muito trabalho e dor de cabeça, com um editor preguiçoso que eu mandei SE FUDER. Não fiquei 100% satisfeito porque tive que acumular funções que seriam de outros, como a revisão por exemplo, e há vários pequenos erros que poderiam ter sido evitados.

# Quais suas expectativas quanto à recepção do mesmo, agora que está nas ruas? Há alguma estratégia de distribuição?

ADOLFO SÁ: Expectativa nenhuma. Vendi 25 cópias na pré-venda e 10 na noite de lançamento - que por sinal foi um sucesso de público, com altas bandas e até pole dance. A maior parte dos exemplares vendidos até agora foram pra fora do estado, pra variar né. Só de custo de impressão foram R$ 8 mil, mais R$ 5 mil com a equipe. Jamais recuperarei essa grana. Como disse um amigo, "a galera aqui é miserável".

# Valeu/vale a pena?

ADOLFO SÁ: Vale a pena, sempre. O que importa é a satisfação pessoal. Fodam-se os cuzões.

publicado originalmente no jornal FOLHA DA PRAIA

por Adelvan “Kenobi”

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