sábado, 24 de janeiro de 2015

Tirem as crianças da sala ...

Adofo Sá - Jornalismo é vocação. Uma vocação de merda, por sinal, que não dá grana e ainda pode levar a uma decapitação pelas mãos de um Estado Islâmico da vida. Veja o caso recente do Charlie Hebdo e contextualize a profissão em Sergipe e o Nordeste, onde ainda reina o coronelismo e os meios de comunicação pertencem a duas ou três famílias. Mesmo que eu tivesse juntado todo dinheiro que ganhei publicando matérias ao longo de 20 anos, não daria nem pra pagar a impressão do livro.

JD - Você pegou a contramão da história, concorda comigo? Justamente quando meio mundo se apressa em decretar o fim dos suportes analógicos e a morte do impresso, em plena era do streaming, o cara me aparece com um livro "de carne e osso". Ainda dá pra botar fé nessa entidade misteriosa, o leitor?

Adofo Sá - Não tenho um pingo de fé na humanidade, e boto menos fé ainda no leitor. Mas discordo, em termos.  Hoje em dia se publicam mais livros do que nunca, a tecnologia barateou os custos de produção e até fanzines são feitos em gráfica. A internet quebrou as pernas dos grandes mercados culturais estabelecidos em alicerces corporativos, mas acabou ajudando muito a produção independente ao facilitar o acesso à informação e à divulgação do trabalho. Comecei com o blog como uma alternativa barata à autopublicação, processo que eu abracei nos anos 90 com os zines. Ao longo dos anos 2000, blogs perderam espaço pra redes sociais e a informação imediata se sobrepôs ao texto, à pesquisa e até mesmo à credibilidade - a notícia que você lê no Facebook muitas vezes não é verdadeira. Mas o incômodo só existe pros jornais, revistas e TVs, da mesma forma que as gravadoras se foderam com o livre compartilhamento de MP3. No underground a coisa vai muito bem, obrigado.

120 Dias de Sodoma, quinze anos depois ...
O leitor sempre existirá. Mesmo que role uma guerra atômica e não haja mais fornecimento de água, eletricidade e internet, os livros que não forem queimados nas explosões continuarão aí, prontos para ser lidos. Não precisa ligar em nenhuma tomada, nem ter senha de conexão wi-fi.

Agora, é verdade que as pessoas lêem cada vez menos, estão aí os zeros na redação do Enem pra comprovar. Ler é poder, quem não lê tem mais é que se foder.

JD - O Viva La Brasa se detém sobre um universo muito específico, habitado por tudo quanto é tipo de freak. Os papocos do underground interessam a quem, além de seus próprios habitantes?

Adofo Sá - O livro não foi feito pra agradar. Não tenho a ilusão de falar a todas as pessoas, até porque eu conheço muita gente com quem não quero nem falar. O público-alvo são pessoas que entendem a viagem e curtem o universo retratado ali: cena independente, histórias em quadrinhos e estados alterados da mente. Não é pra toda a família. Se quiserem usar como livro de mesa, tirem as crianças da sala.

JD - O lançamento do Viva La Brasa tem tudo para se transformar numa grande congregação de malucos e afins. O livro leva a sua assinatura, naturalmente, mas as quase 300 páginas do volume celebram os feitos de uma geração inteira. O barato é coletivo?

Adofo Sá - O barato é louco, o sistema é bruto e o projeto é coletivo como um ônibus lotado. Banquei todo o livro com grana do próprio bolso, quanta gente você conhece que faz isso? Vivemos num estado onde grande parte da arte é subsidiada com verba pública, nisso eu tô indo na contramão. Sempre gostei de trabalhar com colaboradores, desde os zines nos anos 90. Ganho a vida com audiovisual e sei da importância do trabalho em conjunto. Por isso, fiz questão de assinar o livro "Adolfo Sá & amigos".

Uma renegada ...
A grande congregação de malucos e afins aconteceu ontem - com direito, inclusive, a presenças ilustres, como as de Anastácio "Tchescobody Happy Blusk Thogheter´s night", vulgo "Tacinho", da Sublevação, e Gabbirin Nagal Gibborin AKA Villas Parakas, vulgo "Bilal, o rei do metal" - que achou tudo uma porralouquice e na real nem sabia o que estava acontecendo. Mas o fato é que a rua de Lagarto, no centro, onde fica a Caverna do Jimmy Lennon, quase ficou interditada, de tanta gente que se aglomerou na porta. A todo momento Chapolin (apelido do proprietário do estabelecimento) passava com seus asseclas com mais levas de cerveja e gelo. Lá dentro, no inferninho - literalmente falando, já que os ventiladores e ar-condicionados da casa não dão conta da refrigeração - algumas das melhores bandas da cidade se revezavam no palco. Karne Krua fez um ótimo show, como sempre, a despeito do publico ainda um tanto quanto morno. Idem para a Renegades. O público só começou a se animar pra valer na terceira apresentação, de Ferdinando Blues Trio. Deve ter sido o álcool fazendo efeito. Foi nessa hora, também, que aconteceu o pole dance da musa da noite, Inês, a modelo que estampa o material publicitário do livro. E que eu, veja só, perdi! Vi apenas nas fotos que Gil, mulher de Adolfo, me mostrou no celular. Mas foi bom, pelo que vi ...

Já tá aqui em casa ...
O capeta parece ter despertado de vez e incorporado na massa que se acotovelava para ver os Mamutes, que fez uma apresentação sensacional. Hard rock "setentista" de primeira, cheio de suingue e malemolência, feito pra chacoalhar o esqueleto, só que no ritmo do rock and roll. Que, em sua origem, era musica pra dançar, lembremos sempre disso. A noite foi encerrada com outra paulada, desta vez por conta da melhor banda de rock em atividade no Brasil - pena que o Brasil ainda não saiba disso -, a Plástico Lunar. Não sei se foi impressão minha, mas parece que está se configurando o que eu já botava fé que iria acontecer: eles estão, finalmente, superando a falta que a saída de Julico, da The Baggios, fez. Me pareceram mais entrosados. Acima de tudo Leo Airplane, este verdadeiro monstro de talento a toda prova que tanto enriquece a nossa pequena mas orgulhosa cena, e que foi escalado para substituir o insubstituivel na outra guitarra, me pareceu bem mais à vontade em seu novo papel, sem esquecer o que já fazia, que era fornecer a cama de teclados psicodelicos com timbragens "vintage" tão característicos do som da banda. Digo mais: Daniel, por algum motivo que eu não sei precisar qual é, estava sem sua guitarra, o que a principio significaria mais um desfalque na formação. Mas que eles tiraram de letra. Foi a primeira vez, também, que eu ouvi "Banquete dos gafanhotos" sem Odara nos vocais, só que essa foi fácil, já que a Plástico (ou melhor, a prástico, como dizia o saudoso Roberto Nunes) sempre teve bons vocalistas de sobra. O publico respondeu à altura e, apesar do avançado da hora, já perto das 4 da manhã, praticamente os obrigou a finalizar com uma sequencia de clássicos. Sensacional!

Dito isto, não poderia encerrar este relato sem comentar o motivo primário da noite: O livro de Adolfo Sá, "Viva La Brasa", que estava finalmente sendo lançado, depois de mais de dois anos de "maturação". Está belíssimo! Mais um impecável trabalho de diagramação comandado por Gabi Ettinger. Uma verdadeira obra de arte, impressionante. A curadoria ficou por conta do Calango doido Rian Santos e, numa primeira olhada, me pareceu perfeita. Tem, inclusive, um texto meu sobre a Karne Krua, deliciosamente pomposo e dramático, do qual eu nem me lembrava mais, já que havia sido originalmente publicado na edição xerocada de meu fanzine, o Escarro Napalm, há exatos 20 anos!

Um grande registro não apenas do trabalho de Adolfo, do qual sempre fui fã, mas de todos nós, "fanzineiros" e demais militantes do "underground" alternativo de uma geração que começou a produzir em tempos ainda pré-digitais, por volta da segunda metade da década de oitenta e primeira da de noventa do século passado, e não parou mais. Nem vai parar.

"Viva La Brasa" me representa! Tenho orgulho de fazer parte dessa história.

Relato da festa de lançamento por Adelvan "Kenobi"

Entrevista por Ria Santos

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