sexta-feira, 16 de maio de 2014

Imprima-se a lenda ...

"John Ford point", em Monument Valley
A doutrina do “Destino Manifesto”, que impulsionou a expansão da grande nação norteamericana em direção ao oeste, em conflito com os povos nativos que já ocupavam o território, está a pleno vapor quando somos apresentados, de forma magistral – pela paisagem que se entrevê do ponto de vista do interior escuro, assim como a sala de cinema, de uma casa de fazenda - ao cenário e aos personagens que povoam “Rastros de ódio”, o melhor filme de John Ford e uma das grandes obras-primas da história do cinema. O conflito já está, portanto, instalado, e no calor da conflagração é sempre difícil distinguir as motivações e as razões por trás de atos de barbárie como o perpetrado pela tribo comanche contra a família do irmão de Ethan, o personagem icônico magnificamente interpretado por John Wayne. Um sentimento, no entanto, é evidente e constante: a vingança. Os índios se vingam da invasão de seu território e extermínio de seu povo e sua cultura. Já os brancos, investem contra a teimosia dos “selvagens”, que insistem em resistir ao avanço inexorável da “civilização”.

O embate ideológico está, inevitavelmente, posto, e é bastante evidente que a película é construída a partir do ponto de vista dos “colonizadores” – eles próprios descendentes de povos colonizados. Foi assim durante toda a construção da mitologia do chamado “velho oeste” pela cinematografia hollywoodiana, até que, em 1990, kevin Costner dirigiu “Dança com lobos”, primeiro grande filme do estilo a mostrar os fatos com uma visão claramente respeitosa ao drama das nações indígenas. Mas é, a meu ver, injusto reputar a “Rastros de ódio”a pecha de “racismo”. Por mais que Ethan/Wayne seja retratado como O herói e o chefe indígena Scar como o vilão bárbaro e impiedoso, há toda uma série de nuances durante a narrativa que nos deixam entrever que Ford está, acima de tudo, disposto a discutir o tema e as questões postas na tela, para além de simplesmente adotar qualquer posicionamento de forma maniqueísta, sem maiores reflexões a respeito. Com efeito, Ethan acaba se equiparando ao seu antagonista ao também escalpelá-lo depois de derrotá-lo, e se redime, em parte, de seu sentimento preconceituoso, ao desenvolver afeto pelo mestiço que inicialmente desprezava e aceitar a volta da sobrinha, aculturada. A identificação histórica da direita republicana com a figura mitológica do “cowboy” personificada por John Wayne é, portanto, pelo menos neste caso específico – porque em verdade o ator realmente incorporou o personagem à sua vida “real” -, mais uma opção do que um direcionamento claramente apontado pelo filme, que passa longe de ser apenas um panfleto político/ideológico. Algo parecido com o que aconteceu recentemente com os que se identificaram com o personagem de Wagner Moura em Tropa de Elite, no Brasil.

São publicas e notórias, no entanto, as preferências e a visão de mundo do diretor John Ford ao longo de sua obra, na qual procurou sempre dar forma ao mito da grande nação nascida da força dos pioneiros e da gente simples, do povo. É assim em “A Mocidade de Lincoln”, drama “de tribunal” no qual conta de forma didática uma história centrada no embate entre o campo, representada pela família dos acusados, e a cidade, encarnada na figura do arruaceiro provocador, vítima de si mesmo. Ou em “Juiz Priest”, outro “drama de tribunal” – mais para comédia dramática, no caso - no qual retrata o dia-a-dia de uma pequena cidade sulista com clara simpatia pela causa derrotada dos confederados. Inclusive na representação dos negros, tratados com reverência no aspecto cultural, especialmente através da trilha sonora, mas convenientemente mantidos na trama em uma posição social de subserviência conformada.

Ford tem pelo menos mais dois clássicos absolutos do gênero “western” em seu currículo: “No tempo das diligências”, no qual acompanha as aventuras e desventuras de 9 passageiros pelas pradarias inóspitas com índios à espreita entre as montanhas de Monument Valley, e “O Homem que matou o facínora”, no qual somos apresentados à máxima “imprima-se a lenda” pelo jornalista que se recusa a publicar a verdadeira versão dos fatos por trás da morte de Liberty Valance (Lee Marvin, em interpretação impecável), um dos vilões mais asquerosos já apresentados na tela dos cinemas. Não tão controversos quanto sua obra-prima, mas igualmente icônicos na apresentação de um universo idealizado forjado a ferro e fogo a partir do desbravamento de territórios inóspitos.

Para além das idiossincrasias ideológicas, no entanto, o mais importante é que a obra de Ford forma um impressionante painel cultural da américa – DO NORTE, “estadunidense” – e merece muito ser revista e estudada, porque é brilhante. Especialmente alvissareiro é ter a oportunidade de revê-la em tela grande, no cinema, experiência que tivemos aqui em Aracaju com a mostra “A América por John Ford”, uma parceria do Sesc-Se com o Cinema Vitória, da Rua do Turista. Nela, os expectadores puderam ver em tela grande e com entrada franca, além dos títulos citados, “O prisioneiro da Ilha dos Tubarões”, “Médico e Amante” e “As vinhas da Ira”. Um verdadeiro banquete cinematográfico!

Inesquecível ...

A

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