Karne Krua, de Aracaju, Sergipe, é, muito provavelmente, uma das bandas
punk mais antigas em atividade ininterrupta no norte e nordeste do
Brasil. Nunca pararam! Posso atestar
isso, já que os acompanho desde 1987, quando fui ao meu primeiro show de
rock “underground”. Sobrevive às idas e vindas de componentes graças à
persistência de Silvio, o vocalista e único membro original
remanescente.
Idas e vindas que, felizmente, já cessaram há um
bom tempo: a formação mais recente, com Adriano na bateria, Alexandre na
guitarra, Ivo Delmondes no baixo e Silvio nos vocais, é uma das mais
estáveis e duradouras. E, provavelmente, também a melhor, conseguindo o
feito de superar a “clássica”, com Silvio, Marlio, Marcelo e Almada -
aquela que definiu a sonoridade da banda e compôs verdadeiros hinos do
Hard Core undergound nacional.
A Karne Krua existe desde 1985.
Havia na época um cenário “roqueiro” pulsando nos submundos da cidade,
herdeiro direto da nova onda do rock nacional que tomava conta do país.
Vieram, no entanto, com uma proposta ousada para a provinciana capital
do menor estado do país: radicalizar na postura e na sonoridade. Fazer
punk rock e Hard Core cru, bruto e engajado. Fizeram barulho e chamaram a
atenção, aglutinando ao seu redor toda uma nova cena com nomes como
Manicômio, Condenados, Cleptomania, Logorreia, Forcas Armadas e
Sublevação. Dessas, algumas tiveram vida curta e sumiram na poeira do
tempo, deixando pouco ou nada para trás. Outras sobrevivem até hoje. Mas
nenhuma com a força e a capacidade de se renovar e renovar seu público,
de geração a geração, que a Karne Krua tem.
Como toda banda
que dura tanto, passaram por várias fases e diferentes variações de
sonoridade. Tudo devidamente registrado na farta discografia e
“demografia”, que começou com a tosca “As Merdas do sistema”, alcançou
uma certa maturidade com a clássica – embora ainda tosca – “labor
Operário”, experimentou o primeiro gosto do profissionalismo com
“Suicídio”, a primeira gravada em estúdio, no Recife, e se “consagrou” –
na medida do possível para uma banda totalmente independente – com o
primeiro registro em vinil, o LP auto-intitulado, de 1994.
O
primeiro disco da Karne Krua está fazendo 20 anos de lançado e, apesar
de seus defeitos gritantes – de gravação e mixagem, principalmente – é
um clássico. Principalmente porque foi gravado ainda com a formação mais
célebre - que logo depois se dissolveu definitivamente – e tem um
repertório impecável, fruto da excelente fase pela qual passavam na
época e que rendeu pérolas do quilate de “O vinho da História” e “A
Noite do Deus morto”. Além disso, havia a bagagem que já vinham
acumulando em quase 10 anos de atuação nos porões do punk rock
nordestino, período no qual compuseram alguns clássicos que até hoje são
cantados em coro nos shows: “America latina now”, “cenas de ódio e
revolta” e “Sindicato”, dentre outras. Músicas que, para além da
simplicidade dos acordes primários típicos do estilo, carregavam uma
poesia improvável em suas letras, como na de “política da seca” - um
lamento que, a meu ver, poderia constar tranquilamento ao lado de
grandes canções icônicas sobre a tragédia do sofrimento do povo do
nordeste, como “Asa Branca” e “A Triste partida”. Seus versos são um
verdadeiro soco no estômago do conformismo e não me deixam mentir: falam
de “pessoas castigadas pelo sol e pela fome” que “lamentam a dor de
mais um ano que passou”. Porque “os miseráveis são fonte de renda, mão
de obra barata. Voto Comprado. Essa é a grande armadilha, e deverá ser
cultivada”.
O disco foi lançado tardiamente, numa época de
transição para a industria da musica, do analógico para o digital. Não
teve versão em CD e, muito por conta disso, teve uma repercussão
reduzida. Hoje, no entanto, a situação se inverteu: é cultuado
justamente por ser, além do primeiro registro “oficial” de uma banda
clássica do cenário local e nacional, um dos poucos discos sergipanos a
ter tido uma edição em vinil.
Seguiram em frente: ao longo das
décadas de 1990 e 2000 foram absorvendo novos membros e novas
influências, notadamente do Hard Core novaiorquino - Biohazard, Agnostic
Front - e da música regional – o repente e o “aboio”, principalmente.
Novas fitas demo foram lançadas – “Máscaras para o caos”, de 1997, e
“Instantes Irreversíveis”, de 1999 – e finalmente, em 2002, o segundo
disco, agora em CD: “Em Carne viva”. O lançamento aconteceu numa noite
inesquecível daquele início de século, quando conseguiram o feito de
lotar o Espaço Emes, maior arena de shows local, que já serviu de palco
para nomes consagrados da música popular e do rock, como Roberto Carlos,
Sepultura e Ana Carolina. Tudo registrado em vídeo e disponível em DVD.
O maior triunfo da banda, no entanto, ainda estava por vir: o álbum
“Inanição”, uma verdadeira obra-prima do gênero em terras brasilis.
Gravado num momento de transição, ainda com o grande baterista Thiago
“Babalu”, que se mudou para São Paulo e hoje toca com Siba, ex-Mestre
Ambrosio, e Alexandre, o guitarrista, fazendo também o papel de
baixista, demorou uma eternidade para ser lançado. Só veio ao mundo em
2012, exatos dez anos depois do segundo. Mas valeu a pena a espera:
trata-se de uma impecável coleção de canções que, alinhadas, traçam um
impressionante painel de angustia e revolta diante das injustiças do
mundo, do drama dos retirantes ao sofrimento dos animais usados em
testes de laboratório. E tem, pelo menos, um novo clássico: a música
título, “inanição”. Nele a banda consegue finalmente registrar todo o
potencial que, até então, só se revelava em toda a sua plenitude em cima
do palco. É um registro que não pode faltar na coleção de ninguém que
se diga apreciador do combativo e altivo punk rock nacional.
Hoje, prestes a completar 30 anos de carreira ininterrupta, continuam
tocando principalmente em sua cidade e regiões circunvizinhas, porque
não têm estrutura nem suporte financeiro para vôos mais altos. Mas
seguem vivo e ativos. Acabam de lançar um EP 7 polegadas - formato
outrora popularmente conhecido no Brasil como "compacto" - em parceria
com o "Besthoven", de Brasília. Trata-se de um verdadeiro soco sonoro em
forma de 4 músicas emendadas, uma espécie de "suíte" Hard Core versando
sobre os horrores da guerra. A edição é caprichada, com prensagem de
qualidade a cargo da renascida polyson, única fábrica de discos de vinil
ainda em atividade no país, e uma excelente arte de capa de autoria de
Thiago Neumman, o popular "Cachorrão".
Às vezes eu tenho a
impressão que a Karne Krua nunca vai acabar. Sei que sim – porque tudo,
um dia, acaba. Mas torço para que não.
Que seja eterna enquanto dure, como dizia o poeta.
por Adelvan
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Realmente fudido! Viva Karne Krua! Orgulho de ser sergipano e ter essa banda para nos representar!
ResponderExcluirBela resenha, como sempre. Conheci a Karne Krua no clássico show de 2002 e desde então tenho uma profunda admiração por ela e por Sílvio. Vida longa à Karne!
ResponderExcluirMurillo Viana