segunda-feira, 24 de junho de 2013

Street fighting men

Acordei na Vila da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro, na casa de meu camarada Leonardo “Panço”. Tinha ido à “cidade maravilhosa”, a princípio, para ver o show do Cannibal Corpse com a Gangrena Gasosa lançando seu DVD “Desagradável” no Circo Voador, mas como o Brasil subitamente se sublevou, decidi conferir de perto a sublevação ...

Havia uma mega manifestação marcada para as 16H, portanto fui alertado de que o quanto antes me dirigisse ao centro, melhor. Peguei um busão e saltei próximo ao recém-inaugurado Museu de Arte do Rio, que aproveitei para visitar. Belíssimo! Rico acervo de pinturas, esculturas, fotografias e objetos antigos que retratam a vida da urbe em tempos ermos. Recomendo.

Saindo de lá, vi que as ruas já estavam agitadas e havia alguma aglomeração na região da Candelária, o ponto zero do protesto de logo mais. Camelôs vendiam máscaras do V de Vingança (ou de vinagre, no caso) a 10 mangos, sob os holofotes da imprensa que já começava a registrar a movimentação. Fui almoçar e aproveitei para me situar quanto à localização do Circo Voador, local dos shows. Na volta, resolvi descansar nas escadarias do Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara Municipal. Acabei ficando um tempão por lá mesmo, observando a movimentação. Ao que me consta, a passeata passaria por ali, então resolvi esperar.

Não passou. Decidi então descer a Avenida Rio Branco em direção à Candelária para conferir o que estava acontecendo. Várias outras pessoas tiveram a mesma idéia. No caminho, animado, assisti a uma projeção bacana na parede de um prédio convocando o povo às ruas. E a um “manic street preacher” que cismou de fazer suas orações prostrado num dos cruzamentos mais movimentados da cidade – que ainda não estava fechado! Algumas pessoas foram lá tentar convencê-lo a desistir da idéia, mas ele estava irredutível: “O Senhor Jesus me mandou orar aqui, e é exatamente isso que irei fazer, se me permitirem”. Diante do fato consumado, alguns ficaram lá para, pelo menos, ajudar a alertar os veículos da presença do maluco ...

Segui caminho até encontrar a manifestação, que havia mudado de rumo e seguia pela Avenida Presidente Vargas - em direção à prefeitura, segundo me informaram. Me juntei à turba, animada. Especialmente um pessoal do Movimento Negro que cantava e pulava e gritava que “quem não pula é racista”. Não pulei. Caminhei, caminhei, e confesso que comecei a ficar meio confuso. Não havia foco e, talvez por conta disso, a coisa toda estava me parecendo um tanto quanto vazia de conteúdo. Sem “liga”. Pra que se tenha uma idéia, o único panfleto que eu recebi durante todo o percurso foi um de divulgação de uma casa de strip tease! Já chamava a atenção, no entanto, a quantidade de cartazes que se referiam à PEC 37, chamada pela grande midia de "pec da impunidade", mas que a OAB - Organização dos Advogados do Brasil – por exemplo, defende, "argumentando que o papel do MP não é presidir inquéritos criminais, mas sim, supervisionar e fiscalizar investigações conduzidas pela Polícia Judiciária (leia mais aqui). Ah, mas isso é porque advogados defendem bandidos. Bom, se esse argumento fosse válido, tanto melhor para os advogados, que teriam mais clientes, sem a PEC 37. Agora, responda duas questões. Quem, em sua história, defendeu mais as liberdades democráticas: a Rede Globo ou a OAB? Quem se preocupa mais com as garantias individuais: a família Marinho ou a advocacia? Antes de tomar uma decisão sobre a legitimidade ou não da PEC 37, faça o confronto entre duas personalidades." (Brasil 247)

Pois é: na dúvida, sem ter uma opinião bastante formada e embasada, eu prefiro não carregar um cartaz no meio de uma multidão. A chance de que você esteja sendo, na verdade, manipulado por interesses que não são os seus é muito grande. Houve, por exemplo, uma cena impagável no Bom Dia Brasil dia desses, em que um repórter da Globo pergunta a uma jovem da periferia sobre o que ela protesta – e ela responde, depois de olhar para o cartaz que tinha nas mãos: "Deixa eu ver... é sobre essa PEC aqui". Fora isso, haviam no dia 20 desde gritos de guerra genéricos pelo combate à corrupção até um apelo de um senhor para que a Cruz Vermelha lhe pague o que lhe deve (???!!!) e um rapaz que carregava uma cartolina com a seguinte frase: “Procura-se guitarrista para banda de thrash metal"!! A PEC 33 também foi lembrada – e eu nem sabia de que se tratava! Agora sei, devido à nem sempre tão boa mas hoje em dia praticamente inevitável consulta ao google: ela foi apresentada pelo Deputado Nazareno Fonteles, do PT do Piauí, e visa submeter ao Congresso Nacional decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição.

Bom, além desse samba do crioulo doido, a coisa estava meio emperrada. Parece que a ponta já havia chegado onde devia chegar, e não havia mais para onde prosseguir. Ficamos encalhados lá na “rabeta”. Depois de alguns minutos de hesitação, dei minha contribuição por encerrada e voltei à Cinelândia pela Rio Branco. Decidi pegar uma sessão de “Faroeste Caboclo” no Odeon para passar o tempo até a hora do show. Filme horrível! Péssimo! Pastiche, lixo. Não assista.

Na saída a idéia era já partir para o Circo, na Lapa, mas a movimentação na Cinelândia me chamou a atenção. Mais e mais pessoas chegavam e se prostravam nas escadarias da Câmara Municipal, cantando o Hino Nacional e se manifestando de forma agressiva, mas apenas verbalmente – “Hey, Cabral, vai tomar no cu”, eles gritavam. Não havia vandalismo nem quebra-quebra, muito embora alguns mais afoitos já ensaiassem uma escalada rumo à parte superior do edifício. Lembrei que logo ali, a dois quarteirões, na rua que levava aos arcos da lapa e pela qual eu deveria passar para chegar ao Circo Voador, ficava o Batalhão Central da PM. “Vai dar merda”, pensei. Me posicionei estrategicamente já pensando numa fuga e fiquei esperando o circo (ele de novo) pegar fogo ...

Pegou. Tensão no ar: viaturas se movimentavam lentamente no fim da rua com as sirenes ligadas em direção à aglomeração. Atrás delas avistei o temido Batalhão do Choque. A gurizada também viu e tratou de arrastar barreiras para o meio da rua para servir como barricada. “Uzômi” não perderam tempo: logo começavam os estouros das bombas de gás lacrimogênico arremessadas covardemente em direção aos manifestantes que, repito, eram pacíficos, não estavam fazendo nada demais. Parece que o Excelentíssimo Senhor Governador Sergio Cabral resolveu decretar estado de Sítio e proibir a liberdade de manifestação, atiçando seus cães amestrados sedentos de sangue pra cima de uma turba indefesa.

O caos se instalou e eu não dei mole: corri pra longe daquela porra, seguido de uma multidão. Tive medo de ser pisoteado, mas deu tudo certo. Desci pela rua paralela, que abriga a catedral metropolitana e o edifício sede da Petrobrás, e resolvi chegar ao circo contornando o quarteirão para escapar da sanha assassina da Policia Militar. Mesmo de longe os olhos começavam a arder. Conseqüência, certamente, do gás espalhado pela atmosfera. “A lapa está fechada”, gritavam alguns. Como assim, fechada? Como podem fechar um bairro inteiro?

Não estava. Cheguei aos arcos, mas o clima estava tenso por ali também: a rua na qual ficava o Batalhão da PM, esta sim, estava fechada, e alguns manifestantes provocavam os policiais. “Vai dar mais merda”, pensei. Fui pro circo e tratei de entrar, a tempo de ouvir, lá de dentro, os estouros das balas de borracha e bombas de gás tomando conta do ambiente. O caos se instalou. Feio. Os shows começaram a rolar, mas durante as duas primeiras bandas de abertura tiveram que ser interrompidos por alguns minutos para que as pessoas se recuperassem dos efeitos do gás, que tomava conta do ambiente. De dentro assistíamos, lá fora, à polícia caçando selvagemente os manifestantes por entre os arcos da lapa e visando, principalmente, os que usavam as máscaras de V (gostaria de saber o que Alan Moore acha disso). Para que se tenha uma idéia da desproporcionalidade do uso da força contra jovens desarmados eles usaram, na operação, até um “caveirão”, o tristemente célebre carro blindado com o qual os “pigs” costumam subir os morros tomados pelo tráfico. “São uns porcos sanguinários, sádicos e nojentos”, como bem diz a letra de uma das musicas do clássico álbum “Brasil”, dos Ratos de Porão.

Felizmente, com o tempo, as coisas se acalmaram, e os shows puderam prosseguir normalmente. Na hora foi punk, assustador mesmo. Parecia cena de guerra civil. O gás, mesmo para quem o pega diluído no ar, arde muito nos olhos e na boca. Os que têm um contato mais próximo costumam vomitar, tamanho o mal estar.

Passado o susto, ficou tudo bem. Eu sou asmático, mas não tive nenhuma crise provocada pelo gás. Sobrevivemos à Batalha da quinta-feira, 20/06/2013. Uma noite que ficará na história das revoltas populares do Brasil, quando cerca de 1.000.000 de pessoas foram às ruas protestar por todo o país – 25.000 delas em Aracaju, inclusive. E cerca de 300.000 na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Valeu como experiência de vida.

A.

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