segunda-feira, 10 de junho de 2013

Dez dias que abalaram o mundo

Há 96 anos, em 1917, um correspondente de guerra norte-americano idealista e com espírito aventureiro resolveu conferir de perto as agitações que sacudiam os domínios do czar russo, do outro lado do mundo. Saiu de lá com um relato que foi aclamado como a obra que inaugurou a grande reportagem no jornalismo moderno. “Dez dias que abalaram o mundo” correu o globo, então perplexo e curioso em saber o que, afinal, queriam aqueles revolucionários “bolcheviques”, e como eles conseguiram “chegar lá”, derrubando de um só golpe (na verdade foram vários) tanto a estrutura arcaica da velha monarquia quanto a tentativa de se implantar na Rússia um regime liberal moderno, a chamada “democracia burguesa” do estilo ocidental. Muito por conta disso – e também por ser excelente literatura – tornou-se um clássico, sobrevivendo ao tempo e à própria revolução cuja gênese registrou. A Universidade de Nova York o elegeu como um dos dez melhores trabalhos jornalísticos do século XX.

Lênin em uma reconstituição cinematográfica
Tive meu primeiro contato com essa obra-prima na década de 1980, numa biblioteca informal montada nas dependências e à disposição dos clientes do café Aragipe, em Aracaju. Era uma edição primorosa, do Círculo do livro. Na capa, dura, balas de fuzil e revólver sobrepostas a uma imagem de trabalhadores sublevados. Me impressionou. Queria tê-lo em minha biblioteca particular(ok, talvez eu não seja tão socialista, afinal), mas era  difícil de achar por aqui, na época. Apenas no Século XXI foi finalmente relançado e hoje está disponível no Brasil em 3 formatos: um de bolso, da LP&M, e dois maiores, em brochura e capa dura, lançados pela Penguim/Companhia das letras e pela Ediouro. O da Ediouro é uma edição especial, com capa em detalhes de verniz e miolo ricamente ilustrado com imagens e notas explicativas – dentre elas vários textos de proclamações e documentos reproduzidos na íntegra. É o que eu tenho e foi o que li.

Trotski
Os primeiros capítulos são um tanto quanto maçantes, especialmente para quem não está acostumado com a mania dos russos de denominar tudo através de siglas. Para ajudar os incautos quanto a esse detalhe e também quanto à confusa profusão de correntes políticas agrupadas nos mais diversos partidos e organizações, Reed escreveu uma introdução explicando as mais importantes e representativas.

À medida que a leitura avança e o texto vai se tornando mais descritivo do que analítico, somos arremessados num turbilhão de imagens e ação ininterrupta. O autor, visivelmente empolgado e interessado, esteve presente em alguns dos principais acontecimentos, no calor do momento. Esteve, por exemplo, no palácio de inverno do czar por dois momentos, no dia de sua tomada: primeiro quando ainda era dominado pelos defensores do governo provisório de Kerenski, e depois, já nas mãos dos bolcheviques. Na porta presenciou uma pequena multidão indignada e bem vestida de burgueses, intelectuais e aristocratas, liderados pelo prefeito, que queria a todo custo retomar o palácio, no que foram impedidos pela milícia que guardava o local. Nesta e em várias outras ocasiões esteve em perigo devido ao fato de que 90% da população russa era analfabeta e, portanto, incapaz de ler o que estava escrito em seu salvo-conduto. A mais dramática delas aconteceu no front dos arredores de Petrogrado, onde por muito pouco não foi fuzilado – reproduzo o trecho sobre esse episodio no final deste artigo.

Profissional exemplar, Reed não se deixou levar por suas preferências ideológicas – muito embora as explicite durante toda a narrativa – e fez questão de registrar, também, as ações e motivações do “outro lado”, os opositores dos sovietes (conselhos operários) e dos bolcheviques - praticamente todas as demais correntes organizadas da política russa, incluindo aí os partidos socialistas. Movimentava-se freneticamente entre o Instituto Smolni, onde Lênin, Trotski e multidões de operários e soldados sublevados se reuniam em assembleias e organizavam a insurreição, e a “Duma” (parlamento) municipal, onde o prefeito da cidade (Petrogrado, depois Leningrado, hoje São Petersburgo) tentava aglutinar a resistência.

Onipresente, registrou momentos antológicos, como a tomada da estação telefônica, então sob controle da reação, que a utilizava para espalhar o terror por toda a Rússia com notícias falsas e alarmantes, e o desespero de suas funcionárias, assustadas diante do assalto daquela gente do povo simples e embrutecida, maltrapilha e armada até os dentes. Mesmo tendo sido prontamente tranquilizadas de que nada lhes aconteceria, a maioria delas se recusou a colaborar, ofendendo os operários, numa atitude tipicamente “pequeno-burguesa”. Foram liberadas e correram para a Duma, onde o “Comitê de resistência” ao golpe bolchevique se reunia. Lá fizeram seu relato, visivelmente orgulhosas ao serem aplaudidas como heroínas pelos nobres membros da alta sociedade presentes.

Já em Moscou, onde chegou com grande dificuldade devido ao caos que tomava conta das linhas férreas, repletas de soldados que abandonavam o front e viajavam, inclusive, no teto das composições, Reed constata que os relatos alarmistas que chegavam a Petrogrado eram exagerados, frutos da guerra de informação. A Catedral de São Basílio, centro da fé ortodoxa, por exemplo, estava praticamente intacta. Lá ele assiste a uma cena impressionante: ao chegar às muralhas do Kremlin, vê grupos de trabalhadores cavando fossas profundas. Fica sabendo que ali serão enterrados, coletivamente, os operários e soldados mortos em combate. Os grupos se revezam até o dia amanhecer abrindo as covas. Quando amanhece, chega a seus ouvidos o murmúrio de uma multidão que se aproxima vagarosamente. Era o cortejo com os corpos, composto por um mar de bandeiras vermelhas carregadas por simpatizantes da causa, parentes e amigos dos combatentes, que choravam copiosamente. Nas palavras do autor: “Muitas eram mulheres, as fortes e robustas mulheres proletárias. Acompanhando os mortos vinham outras – jovens e alquebradas, velhas, enrugadas – que emitiam sons guturais, como animais feridos, tentando seguir seus filhos e maridos para dentro do Túmulo Fraternal, emitindo gritos estridentes quando mãos compassivas as detinham. Os pobres amam assim desse jeito, intenso!”

A guerra pela informação era intensa, com panfletos, jornais, decretos e manifestos colados nos muros e se multiplicando por todos os lados. No Smolni, Lênin e Trotski se revezavam na tribuna para justificar as medidas tomadas – dentre elas a expropriação e proibição de circulação dos jornais da oposição. Num dado momento começa a haver uma pressão, mesmo entre os bolcheviques, para que seja abrandada a censura. E aí surge um grande debate visando decidir até onde poderia ir a liberdade de imprensa. Se incluiria ou não, por exemplo, a imprensa burguesa e de certos setores opositores abertamente contra-revolucionários. “A revolução que fazemos não hesita quando se trata de atacar a propriedade privada, e é desse ângulo que deve ser vista a questão da imprensa”, argumentam os bolcheviques. Sendo assim, eles propõem a volta dos jornais dos demais partidos socialistas, desde que estes não insuflem a população a um levante, e a extinção da imprensa burguesa, acompanhada pelo confisco das tipografias privadas e das fábricas de papel. Os partidos políticos delas passariam a fazer uso “na proporção da força das idéias que representam – em outras palavras, proporcionalmente ao número de seus constituintes”. Assim, se estabeleceria “um regime sob o qual o capitalista proprietário de tipografias e fábricas de papel não possa se constituir como todo-poderoso e exclusivo fabricante da opinião pública.” “Três semanas atrás, os bolcheviques eram os mais intransigentes defensores da liberdade de imprensa... os argumentos dessa resolução lembram singularmente o ponto de vista das Centúrias Negras e dos censores do czarismo – também eles falavam em “envenenadores da mente do povo”, retrucou um opositor. Trotski argumentou longamente a favor da resolução: (...) “a vitória sobre nosso inimigos ainda não é completa, e os jornais são armas nas mãos deles. Nessas condições, o fechamento desses jornais é uma medida de legítima defesa. (...) A soberania da democracia, que está sendo implantada na Rússia, exige que o domínio da imprensa por parte da propriedade privada seja abolido, tal como a dominação da indústria pela propriedade privada...” “Confisquem as instalações do PRAVDA!", gritavam os opositores. O debate se encerrou com uma fala de Lênin, que, nas palavras do autor, estava “calmo e impassível, sua fronte franzindo-se enquanto falava pausadamente. Escolhendo as palavras, cada frase tinha o efeito de uma martelada.”

O penúltimo capítulo chama-se “A conquista do poder” e descreve os fatos que se sucederam nos meses seguintes à revolução. É menos descritivo e mais analítico. Menos reportagem, mais artigo. Nele vemos como o governo soviético foi sendo empurrado à radicalização por inúmeros boicotes, greves do funcionalismo público e sabotagens. E a guerra de informação prosseguia – os bolcheviques fixavam informes à população que serviam também como alertas aos grevistas, explicando o porque dos problemas administrativos e, principalmente, da crise no abastecimento de bens básicos, decorrente dos boicotes. Os grevistas respondiam com apelos ao povo para que os apoiassem. Desnecessário dizer que os bolcheviques eram mais convincentes, principalmente quando os informes eram escritos pessoalmente por Lênin. O mesmo ocorria no exterior – os embaixadores e os governos estrangeiros simplesmente ignoravam os decretos dos bolcheviques e não reconheciam o novo regime, que foi criado a ferro e fogo, apoiado exclusivamente nas massas, cansadas da guerra e da exploração e seduzidas pelas promessas de paz, pão e terra.

O livro se encerra com a descrição do Congresso dos camponeses, no qual é selada a aliança entre os operários urbanos e do campo – onde os bolcheviques tinham pouca penetração – representada posteriormente na emblemática figura da foice e do martelo, símbolo, até hoje, do movimento comunista internacional. Aliança conquistada sob uma luta fraticida, na qual manobras de bastidores foram fundamentais para isolar os líderes camponeses “tradicionais”, historicamente defensores de ideais conservadores.

AQUI você encontra a íntegra da edição de bolso, lançada no Brasil pela editora L&PM – que vem com um curioso “posfácio” da edição soviética de 1957, quase que inteiramente dedicado a demonstrar os supostos erros de avaliação de Trotski que escaparam da análise de Reed em seu relato. Mesmo depois da “desestalinização”, os embates que se sucederam à morte de Lênin, em 1924, se faziam sentir: a figura de Trotski nunca foi reabilitada, oficialmente, pelo Partido Comunista da União Soviética, herdeiro direto da facção Bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo.

Abaixo, alguns trechos emblemáticos do livro, reproduzidos da edição lançada pela Ediouro em 2002. A tradução é de Denise Tavares Gonçalves. Tudo o que não estiver entre aspas é comentário meu.

“Eram exatamente 8h40, quando uma corrente de aplausos anunciou a entrada do “presidium”, com Lênin – o grande Lênin – entre eles. Uma figura baixa e atarracada, com uma grande cabeça fincada nos ombros, calvo e rotundo. Olhos pequenos, um nariz arrebitado, boca larga e generosa e queixo quadrado (...). Usava roupas gastas, com as calças compridas demais. Nada marcante, para ser o ídolo de uma multidão, amado e reverenciado como talvez poucos líderes na história. Um estranho líder popular – líder puramente por virtude do intelecto; sem cor, sem humor, instransigente distante, sem idiossincrasias pitorescas - , mas com o poder de explicar idéias profundas em termos simples, de analisar uma situação concreta. E isso combinado com uma incrível audácia intelectual.”

“Era a vez de Lênin, agarrado à borda do púlpito, com seus pequenos olhos piscando e examinando a multidão enquanto esperava ali de pé, aparentemente sem notar a longa ovação, durante vários minutos. Quando ela terminou, ele disse simplesmente: “Agora iremos construir a ordem socialista!” Novamente aquele rugido humano avassalador.”

Então são relatados e publicados na íntegra os primeiros decretos dos Bolcheviques, de uma ousadia tamanha que arranca um elogio inclusive de um líder anarquista presente: “é preciso respeitar um partido que propões tudo isso sem tergiversar, em seu primeiro dia de governo”.

Alguns membros de outros partidos socialistas que resolveram ficar no Congresso dos Sovietes apesar do boicote de seus líders – aos gritos de “ainda estão aí? Pensei que tinham ido todos embora” vindos da multidão – fizeram ressalvas, que foram respondidas por Trotsky conforme o relato abaixo:

“Então ergueu-se Trotsky, calmo e sarcástico, consciente de seu poder, recebido com uma ovação: “Eles falam na necessidade de uma coalizão. Existe apenas uma coalizão possível – a dos trabalhadores, soldados e camponeses mais pobres, e foi graças ao nosso partido que ela se realizou ... (...) Avilov tenta nos assustar com a ameaça de uma paz às nossas custas. E eu respondo que em todo o caso, se a Europa continuar sendo governada pela burguesia imperialista, a Rússia revolucionária inevitavelmente se perderá ...

Existem apenas duas alternativas: ou a revolução russa cria um movimento revolucionário na Europa, ou as potências européias destruirão a Revolução Russa.”

Eles o aplaudiram freneticamente, aprovando sua ousadia, a idéia de serem heróis da humanidade. (...) Subitamente, num impulso comum, estávamos todos de pé, murmurando juntos num uníssono suave e crescente a “internationale”. Um velho soldado grisalho soluçava como uma criança. Alexandra Kollontai rapidamente conteve as lágrimas.”

Uma outra passagem descreve a ocasião em que Reed toma um trem até o subúrbio de Petrogrado para ver de perto a espera pela chegada das tropas de Kerensky. Lá se depara com uma cena que, a meu ver, retrata bem o clima de confronto ideológico do momento:

"Saímos pela cidade. Na porta da estação, dois soldados armados de fuzis com baionetas caladas foram rodeados por uma centena de comerciantes, funcionários do governo e estudantes que os atacaram violentamente com acusações e insultos. Os soldados estavam constrangidos e magoados, como crianças que foram pegas fazendo algo errado.

Um jovem alto, com uniforme de estudante e ar arrogante, liderava o ataque.
- Vocês compreendem, eu presumo, - disse em tom desdenhoso – que pegando em armas contra seus irmãos estão se transformando em instrumentos dos assassinos e traidores!
- Escute, irmão – disse o soldado, em tom sincero. – Você não entende. Existem duas classes, o proletariado e a burguesia. Nós ...
- Ah, eu conheço essa conversa fiada! – interrompeu o estudante, bruscamente. Um bando de campônios ignorantes como você ouve alguém dizer umas palavras bonitas e pronto. Nem sabem o que significam. Só sabem repeti-las feito papagaios – a multidão riu. – Sou estudante marxista e afirmo que não é pelo socialismo que vocês estão lutando. Que isso é pura anarquia pró-germânica!
- Ah, sim, eu sei – respondeu o soldado, com o suor pingando de sua testa. – É fácil perceber que o senhor é um homem instruído e eu sou um homem simples. Mas me parece que...
- Suponho – interrompeu o outro, com desprezo, - que você acredite que Lênin é um verdadeiro amigo do proletariado!
- Acredito, sim – respondeu o soldado, incomodado.
- Meu amigo, você sabe que Lênin atravessou a Alemanha num vagão fechado? Você sabe que recebeu dinheiro dos alemães?
- Não sei de nada disso – respondeu o soldado, com firmeza. – Só sei que ele diz o que eu e todos os homens simples como eu queremos ouvir. Existem duas classes: a burguesia e o proletariado...
- Você é um idiota! Saiba, meu amigo, que passei dois anos em Schlusselburg por causa de minha atividade revolucionária enquanto vocês ainda estavam matando revolucionários e cantando “Deus salve o Czar”. Meu nome é Vasili Georgevich Panyin. Já ouviu falar de mim?
- Desculpe, nunca ouvi seu nome – respondeu o soldado, humildemente. – Mas eu não sou um homem instruído. O senhor deve ser um grande herói.
- Pois sou – disse o estudante, com convicção – E sou contra os bolcheviques, pois estão destruindo nossa Rússia e nossa revolução livre. Como explica isso?

O soldado coçou a cabeça.

- Não posso explicar tudo – disse ele, fazendo caretas devido ao esforço intelectual. – Para mim, tudo parece muito simples... mas eu não sou um homem instruído. Para mim, parece mesmo que só existem duas classes: o proletariado e a burguesia...
- Lá vem você de novo com essa estúpida teoria! – gritou o estudante.
- Duas classes somente – continuou o soldado, obstinado. – E quem não está de um lado está de outro...

O relato prossegue: “Nas escadarias do Instituto Smolni, vi Trotski ser interpelado pela imprensa estrangeira, que insistia para que ele enviasse uma mensagem ao mundo. Ele respondeu: “Neste exato momento, a única mensagem que temos é a que sai da boca de nossos canhões”.

A Guerra civil estava deflagrada. A tentativa de Kerenski de tomar Petrogrado havia fracassado fragorosamente, mas ainda haviam combates nos arredores da cidade. O ex-homem forte do antigo governo provisório fugiu, disfarçado de marinheiro, o que exterminou de uma vez por todas qualquer resquício de admiração que o povo russo ainda viesse ainda a ter por sua figura.

John Reed decide voltar ao front de carona num caminhão cheio de voluntários ...

“(...) Dois soldados pularam na nossa frente, apontando os fuzis. Diminuímos a marcha e paramos.
- Seus passes, camaradas.
Os guardas vermelhos reclamaram bem alto:
- Somos guardas vermelhos, não precisamos de passe... Vá embora, não ligue para eles.
Mas um marinheiro objetou:
- Está errado, camaradas. Devemos manter a disciplina revolucionária. E se vierem contra-revolucionários dentro de um caminhão alegando: “Não precisamos de passes”? Esses camaradas não conhecem vocês.

Começou a discussão. No entanto, todos eles, marinheiros e soldados, acabaram concordando com o primeiro. Resmungando, cada um dos guardas vermelhos apresentou seu sujo bumaga (passe). Todos eram iguais, exceto o meu, que fora expedido pelo Estado-Maior Revolucionário do Smolni. Os sentinelas disseram que eu teria que acompanhá-los. Os guardas vermelhos objetaram veementemente, mas o marinheiro que havia falado primeiro insistiu: “Sabemos que esse é um verdadeiro camarada”, disse ele. “Mas existem ordens do Comitê, e essas ordens devem ser obedecidas. É essa a disciplina revolucionária...”

Para não causar mais problemas, desci do caminhão e acompanhei sua partida. Ao desaparecer na estrada, todos ainda me acenavam um adeus. Os soldados trocaram idéias baixinho e em seguida me colocaram contra o muro. Logo percebi o que iria acontecer: eles vão me matar!

Olhei para os lados. Não se via uma alma em nenhuma direção. O único sinal de vida era uma fumaça vinda de uma dacha, um casebre de madeira, a cerca de um quilômetro e meio adiante. Os dois soldados já se afastavam da estrada para tomar distância. Desesperado, corri até eles. - Mas camaradas! Olhem! Esse é o selo do Comitê Militar Revolucionário!

Examinaram meu passe com ar obtuso e depois se entreolharam.
- Mas este é diferente dos outros – disse um deles com teimosia. – Não sabemos ler, camarada!
- Venha – disse eu, pegando-o pelo braço. – Vamos até aquela casa. Alguém lá deve saber ler.
- Não – disse um.
O outro examinou-me e murmurou:
- Por que não? Afinal, matar um inocente é crime sério.

Andamos até a casa e batemos à porta. Atendeu-nos uma mulher gorda e baixa, que deu um pulo para trás de susto, balbuciando:
- Não sei nada sobre eles! Não sei nada sobre eles!
Um dos guardas deu-lhe o passe. Ela gritou.
- Leia este papel, camarada.
Hesitante, ela pegou o papel e leu-o em voz alta:
O portador deste passe, John Reed, é representante da Social-democracia norteamericana, um internacionalista...

Novamente na estrada, os dois soldados conjeturavam. “Temos que levá-lo ao Comitê do Regimento”, disseram. A noite caía rapidamente enquanto nos arrastávamos pela estrada lamacenta. De vez em quando encontrávamos pelotões de soldados, que circulavam ao meu redor, lançando olhares ameaçadores, examinando meu passe e divergindo em opiniões: deviam ou não fuzilar-me?

Já era noite quando chegamos ao quartel do segundo de Fuzileiros de Tsarkoye Selo, uma série de edifícios baixos espalhados ao longo da estrada. Na entrada, um grupo de soldados em postura relaxada fez perguntas desconfiadas. Um espião? Um provocador? Subimos uma escada em caracol que levava a uma sala enorme e simples, com um grande aquecedor no centro, e fileiras de camas de lona no chão, onde cerca de mil soldados jogavam cartas, conversavam, cantavam ou simplesmente dormiam. No teto, um grande rombo feito pela artilharia de Kerênski...

Fiquei parado à porta. Imediatamente, todos silenciaram e voltaram o olhar para mim. De repente, começaram a se movimentar, devagar a princípio, depois com rapidez, agressivos, com os rostos cheios de ódio. “Camaradas! Camaradas!” gritou um de meus guardas. “Comitê! Comitê!” A turba parou e formou um cerco em torno de mim, resmungando. Um jovem magro, usando braçadeira vermelha, aproximou-se.

“Quem é ele?”, perguntou agressivamente. Os guardas explicaram. “Deixe-me ver os papéis!” Ele leu os papéis com muita atenção, olhando-me de modo interessado. Em seguida sorriu e devolveu-me o passe. “Camaradas, este aqui é um camarada norte-americano. Sou o presidente do comitê e dou-lhe as boas vindas no regimento...” O clima apreensivo deu lugar à euforia geral. Todos queriam apertar minha mão.”

“ Na noite de 16 de novembro, vi 2 mil guardas vermelhos descerem a avenida Zagorodny, atrás de uma banda militar que tocava a Marselhesa – uma combinação perfeita – com bandeiras vermelho-sangue pairando abre as cabeças dos humildes trabalhadores, que ali estavam para dar as boas-vindas a seus irmãos que haviam defendido a “Petrogrado Vermelha”. Sob a triste luz do ocaso eles caminhavam – homens e mulheres – brandindo suas longas baionetas; pelas ruas escuras e cheias de lama, por entre multidões de burgueses calados – arrogantes, mas temerosos...

Todos estavam contra eles: negociantes, especuladores, investidores, donos de terras, oficiais do exército, políticos, professores, estudantes, profissionais liberais, donos de lojas, vendedores. Os outros partidos socialistas nutriam pelos bolcheviques um ódio implacável. Do lado dos sovietes estavam os trabalhadores mais pobres, marinheiros, todos os soldados não desanimados pela guerra, os camponeses sem terra e alguns – poucos – intelectuais.

Dos cantos mais distantes da imensa Rússia, onde cresciam os combates de rua, as notícias da derrota de Kerênski amplificavam o eco da magnífica vitória do proletariado. (..) Em Moscou, os bolcheviques haviam voltado sua artilharia para o último baluarte da burguesia: O Kremlin.
“Estão bombardeando o Kremlin!” A notícia corria de boca a boca nas ruas de Petrogrado, provocando pavor. Os que vinham de Moscou, da “branca e reluzente mãe Moscou”, relatavam fatos horrorosos. Milhares de mortos; a Tverskaya e a Kuznetski ardiam em chamas; a igreja de São Basílio fora reduzida a ruínas (...)

Nada que os Bolcheviques fizessem poderia ser comparado a essa vergonhosa blasfêmea praticada no coração da Santa Rússia. Aos ouvidos dos devotos só chegava o estrondo da artilharia atingindo a Santa Igreja Ortodoxa e reduzindo a pó o santuário da nação russa...

(...) Petrogrado, na realidade, apesar de haver sediado o governo por um século, ainda é uma cidade artificial. A verdadeira Rússia está em Moscou, a Rússia de ontem e a de amanhã. Em Moscou, teríamos a noção precisa do verdadeiro sentimento do povo para com à Revolução. Lá, a vida era mais intensa.

Foram os relatos escabrosos que nos fizeram ir até lá.”

por Adelvan

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