quarta-feira, 5 de maio de 2010
ANNO DRACULA
“Um pequeno detalhe”, diz Benjamin Franklin numa frase que o dr. Seward cita em algum ponto de Anno Dracula, romance de 1992 de Kim Newman recém-publicado no Brasil pela Aleph, “pode mudar o curso da história.” É desses pequenos – e às vezes não tão pequenos – detalhes que vivem tanto a história alternativa quanto a ficção alternativa, dois subgêneros da ficção especulativa que têm muita coisa em comum.
A diferença é que, enquanto a primeira se ocupa de eventos que poderiam mudar o curso da história, a segunda se concentra em pontos de divergência que alteram o enredo de uma obra de ficção. O que aconteceria se o Eixo tivesse ganhado a II Guerra Mundial? Se o Sul derrotasse o Norte durante a Guerra da Secessão? Se o Brasil tivesse perdido a Guerra do Paraguai? Responder a essas perguntas é fazer história alternativa. E se os Elder Ones de Lovecraft dominassem a Londres de Sherlock Holmes? Ou se o Phileas Fogg de Júlio Verne fosse um agente secreto alienígena? Nesse caso, trata-se de ficção alternativa.
Anno Dracula pertence a ambos os subgênereos ao mesmo tempo. Nele, Kim Newman muda o desfecho do romance de Bram Stoker e, com isso, também modifica irremediavelmente a história da Inglaterra e do mundo.
Em vez de ser derrotado, estaqueado e decapitado pelo pequeno exército de Van Helsing, Drácula vence seu arquinimigo, casa-se com a rainha, a quem transforma em vampira, e torna-se o Príncipe Consorte, instaurando vampiros nos postos-chave do governo e instituindo uma distopia vampiresca na Inglaterra vitoriana. A cabeça decapitada de Van Helsing fica exposta em frente ao Palácio de Buckingham, numa advertência muda mas eloquente aos opositores do novo regime. Isto é, aqueles que não foram mandados para campos de concentração.
A sociedade se divide em quentes (vivos), renascidos (vampiros recém-convertidos) e anciãos (vampiros antigos, de plena posse de seus poderes). Ser transformado num morto-vivo deixa de ser uma maldição e torna-se o bilhete de ingresso numa nova forma de aristocracia. Prostitutas se especializam em vender seu sangue e, à custa de serem mordidas vez após vez, eventualmente também acabam se transformando em um tipo degenerado de vampiros, quando passam a oferecer seus serviços a qualquer um que queira, senão a imortalidade, pelo menos a honra de ostentar caninos pontiagudos e a distinção de se alimentar de sangue.
É quando um misterioso serial killer, que a imprensa apelida de Faca de Prata, começa a assassinar as prostitutas de Whitechapel. No mundo ficcional construído por Newman, Faca de Prata é o equivalente de Jack, o Estripador, mas com uma pequena, porém fundamental distinção.
Suas vítimas são todas vampiras.
Anno Dracula, contudo, não é um whodunit. Embora a trama principal do romance gire em torno da investigação dos crimes cometidos pelo Faca de Prata, sua identidade é revelada ao leitor logo nas primeiras páginas. O que interessa a Kim Newman não é fazer suspense sobre quem matou quem, mas explorar em minúcias, e com uma profusão saborosa de detalhes, todas as possíveis consequências que o vampirismo teria sobre a sociedade numa época em que se fabricou boa parte da mobília que, como diz o psicólogo James Hillman, ainda atravanca os quartos, porões e sótãos da mentalidade contemporânea.
Para isso, o autor mobiliza uma quantidade impressionante de personagens, tanto ficcionais quanto históricos, os primeiros saído das páginas de praticamente todos os romances e contos sobre vampiros escritos ao longo dos séculos XIX e XX, além da participação especial de personagens criados por Conan Doyle, Robert Louis Stevenson, H. G. Wells e vários outros autores, bem como de filmes que vão do Nosferatu de Murnau ao relativamente obscuro Blacula, sem esquecer de A Dança dos Vampiros, de Roman Polanski, e das cultuadas séries Dark Shadows (na verdade, uma soap opera) e The Night Stalker.
Um destaque especial vai para Lorde Ruthven, de The Vampyre. Publicado originamente em 1819 e concebido por John Polidori durante o mesmo fim-de-semana em Genebra que deu ao mundo o Frankenstein de Mary Shelley, Lorde Ruthven é um dos primeiros vampiros da literatura. No universo ficcional de Anno Dracula, ele se torna uma figura-chave da nova ordem criada pelo Príncipe Consorte.
Num certo sentido, pode-se dizer que Anno Dracula é o romance definitivo sobre vampiros que o século XX produziu, não necessariamente por ser o mais bem-escrito (embora seja muito bem escrito, com um final que é um soco no estômago), mas porque sintetiza todas as características que o mito assumiu ao longo dos 173 anos que medeiam entre o The Vampyre de Polidori e o livro de Kim Newman. Estão lá desde os predadores quase irracionais do folclore centro-europeu às masterminds frias e calculistas que se dedicam a intrigas políticas entre as diferentes linhagens de vampiros, popularizadas por Vampire: The Masquerade, sem faltar sequer os vampiros lânguidos e decadentes de Anne Rice. O livro antecipa até mesmo a moda recente de vampiros apaixonados, felizmente sem a pieguice emo dos romances de Stephenie Meyer. E propõe, implicitamente, o desafio de escrever uma história de vampiros que escape a esses paradigmas, resgatando a figura dos sugadores de sangue de sua banalização atual.
A tradução de Susana Alexandria é bem-cuidada e não se deixa contaminar pelos anglicismos e falsos cognatos tão comuns em tempos de traduções fast food. O glossário de personagens no final do livro é uma mão-na-roda, se bem que incompleto (deixa passar, por exemplo, George Bernard Shaw e Annie Besant, companheiros nas convicções socialistas e na fundação da Sociedade Fabiana, ainda que Shaw fosse um ateu irreverente e Besant uma teósofa convicta). A edição da Aleph traz ainda um posfácio de Octavio Aragão, ele próprio um mestre da ficção alternativa, que mata a cobra e mostra a estaca, contextualizando o gênero de um modo conciso mas rico, e lembrando que um dos pioneiros em pegar personagens de diferentes obras e colocá-las em um novo contexto, como Newman faz em Anno Dracula, foi ninguém menos que o nosso Monteiro Lobato.
Anno Dracula merece muito ser lido, tanto pela originalidade da premissa e pela ousadia do escopo quanto pela competência com que a ideia é executada.
Mesmo se você, como eu, anda meio pela tampa com vampiros.
>> EPISTEMONIKE PHANTASIA – por Lúcio Manfredi
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