segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Gênesis, por Robert Crumb

por Rosane Pavam

Fonte: Carta Capital

O deus dos quadrinhos encontra o deus do paraíso no Gênesis. Nesta novela gráfica de 216 páginas, prometida ao Brasil no final de outubro pela editora Conrad, o autor Robert Crumb prossegue espicaçando o establishment cultural, desinteressado de ocupar a cadeira dos tranquilos. No panteão deste Crumb de 66 anos, fervem em histórias os hebreus, os nascidos de Jacó e Esaú, o morticínio do qual sobreviveu o plantador de videiras Noé, toda a aventura egípcia, incestos e fornicações, como as viu e perpetrou o primeiro livro dos cristãos.

Na terça-feira 29, em entrevista por telefone à CartaCapital a partir da França, país onde vive há 16 anos por insistência da mulher, Aline Kominsky, e ainda trazendo na fala a forte musicalidade americana, Crumb disse esperar pelo pior. Dos judeus ortodoxos, ele aguarda a repulsa por ter reproduzido a imagem de Deus. Dos cristãos fundamentalistas, ele crê que possam vir as trevas, nascidas de sua obediência ao verbo às vezes modificado das escrituras. Problema deles, diz Crumb.

“Não matei as palavras bíblicas”, ele assevera, gentil e bem-humorado, gargalhando ao final de cada raciocínio claro, como se um “rará” semelhante ao dos gibis pudesse liberá-lo da tensão envolvida no que acaba de dizer. “Apenas reproduzi cada passagem do Gênesis, conforme o que está escrito na tradução de Os Cinco Livros de Moisés, por Robert Alter. Como ilustrador, nem sempre tive a pista para desenhar certos trechos. Mas, se essa indicação existia no texto, eu a ilustrei fielmente. Não procurei ser lúbrico, lascivo, sensual.”

Reproduzir os olhos duros do Senhor surgiu-lhe como uma possibilidade quando Crumb em pessoa o viu em um sonho, há nove anos. “Meu Deus era severamente complexo e sua face carregava raiva”, ele diz. O que o desenhista viu não diferia muito das imagens usualmente ligadas ao Criador, uma figura nascida da tradição patriarcal e tribal, não recomendada em absoluto, por Crumb, como modelo de conduta moral para estes tempos. No máximo, esse Deus escrevia sua história muito bem.

O ser supremo de Gênesis tem barba e mau humor. Os cabelos são fortes e longos, possivelmente crespos. Deus não explica por que elege um homem como herdeiro da terra e por que destrói todos os outros que praticam o mal. Nem mesmo define o mal. Essa criatura não é negra, mas, espera o desenhista, guarda traços semitas. E não é mulher porque o texto não a fez assim.

A grande pergunta com muitas respostas é por que Crumb, o revolucionário autor das fornidas senhoras inspiradas nas africanas, que pôs no devido lugar os pilantras conservadores e os libertários, o criador de Mr. Natural para que ninguém mais acreditasse em gurus, teria desejado transpor o Gênesis aos quadrinhos. Nesta entrevista, lança-se a uma especulação.

Crumb leu a Bíblia quando menino. Foi criado católico e estudou em escola “de freiras e irmãs”. Não via razão para descrer das “poderosas” histórias bíblicas que conhecia. Mas, aos 16 anos, ele se confessou a um padre pela última vez. “Do momento em que comecei a questionar a existência de Deus até a decisão de largar a Igreja passou-se pouco tempo.”

Nunca mais uma coleta de dízimo o pegou, e ele leu as terríveis histórias papais desde a Idade Média. Mas, com o tempo, o homem sem fé, estranhamente perseguidor do espírito por meio do intelecto, percebeu uma coisa. Os religiosos que se diziam seguidores da Bíblia não a liam mais.

E isto, a que ensaístas como Michel Onfray chamam de “ateísmo cristão”, incomodou o senhor Crumb. Ele achou que deveria refazer o Verbo diante do homem. Uma tarefa, como se disse, destinada a um deus. Seu trabalho nesse campo é generoso e revelador. Quando ele ilustra fielmente as parábolas alheias, aquele mundo se materializa e não nos parece tão estranho. A única surpresa causada pelo livro nasce das palavras e das tramas originais, sepultadas pela história. “A Bíblia é uma parte importante da cultura cristã, judaica e até mesmo islâmica”, defende o autor. “Mas, hoje, ninguém a enfrenta. O texto é difícil. As pessoas põem a Bíblia para dormir.”

As grandes e também poderosas palavras de Crumb, sua ironia ao escrever, sem nada dissimular, como flecha teleguiada ao alvo, surgem na edição em dois momentos. No prefácio, em que o artista apresenta a dificuldade em pesquisar o tema, e nas notas finais, nas quais se arrisca a alguns palpites, como o de associar o imaginário antigo às crenças da encruzilhada demoníaca, presente no blues americano. “Nunca pensei em ser romancista, sempre segui fundo como cartunista e ilustrador”, ele afirma à CartaCapital. Sua escrita visual é tão poderosa e adequada aos tempos que talvez Crumb ainda não tenha avaliado o que lhe proporcionaria a escritura de romances.

Outra razão para que concebesse esse tomo talvez tenha sido inconsciente, fundada no gênero a que ele pertence como artista. Ele pode ter quadrinizado o Gênesis primeiro, mas não foi pioneiro ao usar as figuras bíblicas nas narrativas sequenciais. Justin Green, um companheiro nascido em 1945, desenhou a primeira autobiografia de que se tem notícia no mundo da HQ, justamente sobre o confronto que um adolescente faz de seus desejos sexuais com o fervor religioso. Intitulado Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary (Binky Brown Encontra a Virgem Santa Maria), o texto vendeu 50 mil cópias nos dez anos seguintes a seu lançamento, em 1972.

Outro artista com quem Crumb parece solidarizar-se estética e filosoficamente é o canadense Chester Brown, de 49 anos, um dos mais impressionantes autores de quadrinhos da geração posterior. Brown defende a anarquia como um ideal e quer tirar a esquizofrenia da lista de doenças mentais. Em 1983, ele começou a publicar Yummy Fur. A partir do quarto volume desta série em miniatura, tocou no Novo Testamento, mostrando Jesus segundo Marcos e Mateus. Crumb considera que seu companheiro fez o melhor possível com a história do filho de Deus, a seu ver difícil de ser contada, porque fundada em quatro evangelhos. Depois de quatro anos enfiado no Gênesis, Crumb quer afastar de si o cálice da religião e voltar a remexer a própria história. Seu próximo trabalho, ainda indefinido, inclui uma parceria com a esposa, Aline.

Crumb será avô pela primeira vez, de um menino, e “a qualquer momento”. Não tem, nem quer ter, ideia do que significa este passo. Ele anda rápido e para frente. E foi com o intuito de fazer avançar a própria arte, menos do que moralizar a sociedade em trevas, que ele, pescador da música antiga de Madagáscar ou da Grécia nos mercados de pulgas, revelou Deus à nossa antiga imagem e atual dessemelhança.

A ENTREVISTA:

Diante desse deus

02/10/2009 às 16:17:44

Rosane Pavam

Chegava a hora de falar com deus. Deram-me seu telefone de Paris, onde naquele dia, 29 de setembro de 2009, ele já respondera a jornalistas de todo o mundo, convidados à coletiva sobre seu aguardado livro Gênesis.

Não era fácil, mas parecia necessário arriscar-se a alcançar Robert Crumb, expressão máxima dos quadrinhos, ao lado do também americano Will Eisner, que eu entrevistara duas vezes nos longínquos anos 90. Não esperava que Crumb me respondesse, o que secretamente me confortava, presa que estava à redação da revista e à necessidade de elaborar um texto para as páginas abertas (leia aqui). Eu não queria falar com ele, ou simplesmente o temesse como ao ser supremo, sabe-se lá quem esse cara seja.

Crumb é imprevisível, pode atender ao telefone ou não, avisou-me seu editor brasileiro. Mas, naquele dia, o deus sobre a terra estava pronto. Ele falou primeiro, esperou e respondeu. Vivi o temor. O tremor da musculatura, a confusão dos nervos. Eu nem sabia por onde começar. O que perguntar a deus?

Ele é mais vigoroso e juvenil ao telefone do que me pareceu Eisner quando o entrevistei pela primeira vez, com setenta anos talvez, habitante da Flórida por pressão da mulher. Crumb tem 66 e mora no sul da França há 16, também por pressão da mulher.

O homem é irreverente, a voz mais jovem do que a idade lhe dá, mas também respeitoso, com toda a paciência para a dificuldade da interlocutora em chegar ao ponto com ele. A qualquer ponto. Neil Gaiman, polido em suposto, só pensara naquele restaurante de Parati em emanar sua musculatura de escritor. Se isto vale alguma coisa, o britânico não me convenceu. E pouco se importou com isso, claro. Ele tem segredos.

Crumb, não sendo Gaiman, dispensou ser sofisticado ao falar, já que desejava falar. Foi extremamente gentil e colaborativo por quase uma hora de conversa. Não elaborou teses. Respondeu sim ou não, contou um caso, riu um “rá”, expulsando ocasionalmente da garganta um diabinho irônico e feliz.

Às vezes só disse “yeah”, “good”, “that’s good”, com o sotaque tão americano tanto possível. Perguntei se apreciava os quadrinhos autobiográficos que ganharam o mundo a partir dele. Não inventei isso, lembra. E eu insisto que explique melhor por que os autobiográficos são tão bons. Ele parece achar estranho, esforça-se, alonga-se. Não é importante que o desenho seja bom neste caso, começa. As palavras são mais importantes. Penso ter sido jornalista e achado a frase.

O que ele reverencia em Gênesis são também suas palavras, não importa quão incoerentes, reiterativas, pleonásticas se pareçam. Quando Robert Crumb lhes dá sua qualidade gráfica, ele o faz com toda a ousadia, mas também com tranqüilidade. Não transparece receio.

As meninas são fornidas. As escravas, um pouco menos. Mulheres bonitas, mulheres de Crumb, rostos resolvidos. Às vezes invejosos, como os de Sara. Os homens, pelo contrário, estão permanentemente assustados com a presença de Deus, esse ser incoerente, cheio de ira. Os da tribo são respeitosos por pânico, diz-nos o artista, que escreve enquanto desenha. Tudo simples, direto, sem medos ou cinzas.

É por isso, percebo, que sempre amei a arte de Robert Crumb como a maior entre todas as tentativas de fazer do quadrinho a coisa certa. De um assunto complexo como a Bíblia, o livro mais amado e pouco conhecido nestas trevas, ele tira apenas a direção retilínea, descarnada, à moda de um bom professor. Sem se importar que não o compreendam, sabendo que fez o melhor possível, com todo o cálculo. A seguir, a entrevista.

Antes de ilustrar o Gênesis, sua intenção era refazer a história de Adão e Eva. Por que mudou de ideia?
Enquanto eu lia sobre a história de Adão e Eva, percorri o Livro do Gênesis muito detalhadamente. Pesquisei sobre os antigos na Mesopotâmia e na Suméria. E, ao fim, todas as histórias se ligavam de alguma forma ao Gênesis. Achei então que, melhor do que fazer uma história em torno de Adão e Eva, seria ilustrar, apenas, o grande livro. Com o Gênesis, minha intenção era manter as palavras, não matá-las.

E você abdicou de suas próprias palavras, usualmente muito bem conduzidas dentro dos quadrinhos. Um leitor poderá sentir falta delas. Você já pensou em um dia escrever romances?
Nunca. Sempre caminhei pela ilustração e o cartum. Nunca nem tentei começar uma ficção só usando palavras.

Você acredita em Deus?
Não sou religioso. Mas fui criado no catolicismo. Em escola católica, de freiras e irmãs. Acredito que, quando criança, não tinha razões para desacreditar no que me contavam. Por volta de 15, 16 anos, comecei a fazer meus questionamentos. Rapidamente rompi com o catolicismo depois que comecei a questioná-lo. E passei a estudar outras idéias sobre o assunto, sobre as coisas chocantes que não lhe contam sobre a Igreja, sobre o comportamento dos papas. Especialmente na Idade Média, comportavam-se muito mal. Ainda se comportam.

Parei de me confessar aos 16 anos. Nunca mais me tornei membro de uma igreja estabelecida ou de uma religião. Não sigo qualquer doutrina religiosa, de maneira alguma. Contudo, ainda me sinto muito interessado pela procura espiritual, mas de uma maneira mais ligada ao intelecto.

Eu certamente acredito que existe uma força que move nossos destinos. Maior do que nós. Não sabemos o que é. É grande demais para que nós tenhamos qualquer chance de saber do que se trata.

Mas é interessante estudar, perguntar-se, imaginar o que ela poderia ser. Eu pessoalmente não acho que alguém vá encontrar inspiração no Gênesis. As histórias são boas, mas como guia espiritual ou moral, não servem. Você terá problemas se ler o livro com essa intenção! É primitivo. A moral é tribal. Existe um plano. E o cara se sente honrado em segui-lo. Deus nos deu essa terra, essa terra pertence a nós, toda essa história...

Contudo, procurei sempre ilustrar o que está no texto. Ló fez sexo com suas duas filhas, coisa muito estranha. Isto está escrito e eu desenhei. Eu evitei ser cômico, lúbrico, sensual, explícito. Se as pessoas se sentirem ofendidas com o que virem, problema delas. Não podemos agradar a todos. Especialmente pessoas seriamente religiosas. Não posso ajudá-las.

Às vezes o texto não descrevia exatamente o que estava acontecendo. E então inventei o que ilustrar, até certo ponto. A cena diz: “Antes que Deus decidisse destruir a raça humana... Porque ele viu o mal no coração do homem.” Mas o que ele viu? Que mal o homem fez? Então eu tinha de mostrar que mal esse homem estava fazendo. Eu não estava indo contra o texto, porque o texto me deixava livre para imaginar que mal seria esse. Mas se o texto dissesse que os personagens se deitavam no chão, sim, eu os deitava no chão. Pessoas fazendo sexo, sim, eu desenhei.

Seu Deus é tradicional, um velho homem barbudo. Foi assim que ele se apresentou em seu sonho?
No meu sonho de 2000 ele era muito mais complexo. Mas eu decidi desenhá-lo velho, de longas barbas e severo, com a face do patriarca. E o fiz homem porque assim ele é descrito _ Ele, segundo o texto bíblico. Tudo isto partiu dos hebreus. Eu até pensei em fazê-lo mais judeu... em uma segunda leitura, havia mais componentes africanos... A história toda pertence à tradição semita. A europeia faz Deus com os cabelos loiros. Então decidi desenhá-lo de cabelos mais escuros, na tradição semítica.

Esse Deus que você viu no sonho não seria apenas você?
Eu? Bem, tudo o que aparece nos sonhos remete a alguma parte de nós mesmos. Pelo menos é o que dizem. Mas a imagem do sonho, tão vívida, definitivamente não pertencia a mim, estava do lado de fora. A verdade é que ele entrou em mim, falando comigo de alguma forma. Mas eu só fui capaz de visualizar essa criatura. Sua face era muito severa. E também repleta de ira. Um deus muito velho, com barba. O deus do Gênesis é o da justiça. Não é bonitinho, nem especialmente amigável.

Tudo parece muito respeitoso sob este aspecto para que alguém se incomode com suas ilustrações.
Eu imagino que os fundamentalistas, especialmente alguns judeus ortodoxos, se sentirão muito incomodados. Porque, segundo eles, não se pode ver a face de Deus, de forma alguma.

Talvez estejamos vivendo um momento especialmente de trevas, em que a liberdade de ação ou de pensamento pareça indesejável a grande parte das pessoas.
Concordo. Vivemos um momento obscuro.

Nunca lhe interessou desenhar o Novo Testamento?
Sempre me interessou o Gênesis. E a história do Novo Testamento apresenta algumas dificuldades para ser contada. Você tem de escolher uma entre as quatro versões de Mateus, Marcos, Lucas ou João. Não há como narrá-las todas. Ou então é preciso encontrar uma maneira de extrair as histórias interessantes e seguir com elas. Isto seria o que eu faria, provavelmente. Mas Chester Brown já contou essas história, e muito bem, em suas leituras dos evangelhos de Marcos e Mateus.

Você é visto como alguém nostálgico, ligado ao passado, aos primeiros anos americanos, à arte e à ação dos anos 60. Mas se vê pessoalmente assim?
Talvez eu me veja mais como um cultural carrier, trazendo coisas do passado que valem continuamente no presente. Nós não podemos simplesmente apagar o passado. Meu estilo de desenhar é muito tradicional. Uma velha maneira de ilustrar. Não penso que deva inovar nisso. Não acho que seja necessário.

Também não acho que a tecnologia seja a melhor coisa do mundo. Acho que temos de ser muito cuidadosos em relação a ela. Usar a tecnologia é uma coisa, mas depender das máquinas para tudo talvez não seja a melhor ideia. Voltar-se intimamente à natureza, talvez. Isto veio dos anos 60. Ser mais respeitoso com a terra, com o ambiente, abrindo mão de um materialismo. O amor à riqueza material veio dos anos 80 americanos.

Concordo com muito daquilo que houve nos anos 60. Questionar a autoridade era uma das coisas que se fazia então. Não aceitar o que vem do poder, do governo, da economia, da propaganda, questionar tudo isso seriamente - nós fazíamos isso nos anos 60. Mas coisas ruins também partiram de lá, como pisar fundo no álcool ou nas drogas.

Você já pensou em se voltar solitariamente à natureza, para uma vida recolhida, em que possa reverenciá-la?
Não é possível viver junto à natureza sozinho. Bem, há pessoas que conseguem viver ainda sozinhas ou em comunidades, seguindo seus ideais. Mas eu não consigo. Admiro quem consiga, mas a maioria, como eu, não se sente capaz.

Trabalhar a partir do Gênesis teria essa intenção de mostrar como é duro viver em sociedade, conviver com o outro, lutar contra as adversidades? Você, ao ilustrar o livro, tinha um propósito de combater os obscurantismos?
Não sei. Acho que minha ideia era expor a Bíblia. Muitas das histórias são tremendamente poderosas. As pessoas hoje em dia não são muito próximas dessa leitura. O texto é difícil de enfrentar. As pessoas põem a Bíblia para dormir. Ilustrando-a agora, ela volta à evidência. É uma parte importante de toda a cultura ocidental. Da cultura cristã, judaica e até mesmo islâmica.

Estou mostrando cada palavra do Gênesis. Esta é a parte mais importante do trabalho. Não há lições morais que possam ser apreendidas dali. São histórias profundas, mas para as pessoas de hoje eu não penso que possam servir. A moral é muito velha, tribal.

Seu Noé planta videiras. Você bebe vinho hoje, na França?
Já bebi, mas parei com o álcool há muitos anos, quinze ou dezesseis. Estou numa fase sóbria, sabe.

E tem lido bastante?
Mais do que já li em toda a minha vida. Tem muita coisa que eu quero saber. Encomendo livros pela internet. Não uso diretamente o computador, mas minha mulher sim. E minha secretária pega as coisas de que preciso na rede. Os sites que expõem o que está acontecendo, sobre o qual não somos informados e não nos damos conta. Como o Media Democracy. Leio textos de jornalismo investigativo, numa tentativa de saber o que permanece escondido de nós. Eu raramente escolho poesia, romances. Gosto de história, de investigação.

E os quadrinhos?
Alguma coisa de quadrinhos, também. O site Top of My Head traz muitas informações. O livro Stitches, de David Small, que saiu agora nos Estados Unidos, é sensacional, a história autobiográfica de um garoto com câncer na Detroit dos anos 50.

Você percebe esse aumento no número de livros de HQ que contam uma trajetória pessoal, dando-lhe um contexto histórico?
Sim. As autobiografias são uma ótima coisa para os quadrinhos, por esta razão histórica. Mesmo que os desenhos não sejam incríveis, as histórias são interessantes. As histórias importam mais do que a qualidade do desenho. A primeira mulher a fazer histórias autobiográficas foi minha mulher, Aline Kominsky. E o primeiro homem não fui eu, foi Justin Green, um americano da minha geração. Quando comecei a fazer quadrinhos autobiográficos, eles me pareciam necessários, mas não eram absolutamente fáceis de fazer.

Já leu um livro brasileiro?
Nunca, mas me interessa a música brasileira antiga. Todos os estilos dos anos 20 e 30, os 78 rotações. Não há nada por aqui, alguém tem de me trazer essas coisas do Brasil... Não sei de nomes especiais que me interessem, já que eu me interesso por muitos deles.

Pixinguinha, talvez?
Sim, Pixinguinha, esse! É muito bom. Diga a seus leitores que eu desejaria conhecer os 78 rotações de antes da Segunda Guerra Mundial...

Já esteve no Brasil?
Fui convidado para festivais de quadrinhos, essas coisas, mas nunca estive no Brasil. Gostaria de ir para lá algum dia, deus sabe quando.

Conhece alguma coisa da política brasileira? De o presidente americano Barack Obama, por exemplo, ter dito ao presidente brasileiro que ele era “o cara”?
Não, nunca ouvi falar disso.

Você continua a procurar por discos de 78 rotações para sua coleção?
Sim, e não faço isso pela internet. Faço caminhando, pelos mercados de pulga parisienses ou de outros lugares. Ainda estou atrás de música interessante da França, dos Estados Unidos, de toda parte. A música de Madagascar é maravilhosa. A do Norte da África, da Argélia, do Marrocos, do Egito, grande música. Da Índia, tão estranha no início. É uma musicalidade totalmente diferente da americana, pela qual não procuro mais. Há grande música em toda parte, como na Indonésia. Música grega, armênia, suíça.

Você compõe música?
Não componho, só toco. Não sou um músico muito desenvolvido, sou muito simples. Um estilo nada especial. Não é meu talento principal o de tocar música.

Você gosta do que Woody Allen faz musicalmente?
Eu gosto de alguns dos filmes de Woody Allen, mas não de sua música.

E não desenho mais a partir de temas musicais, como fiz em Blues. Meu próximo projeto será em colaboração com minha mulher, Aline. Mas não sei ainda exatamente o quê. Provavelmente algo relacionado a nossas vidas. Não será religião. Não penso que eu vá voltar a isso. Acho que já tive o suficiente da Bíblia nos quatro anos em que desenhei o Gênesis.

Tem algum plano de voltar a morar nos Estados Unidos?
Provavelmente nunca mais retorne aos EUA. Vou para lá agora, mas somente por um mês. E meu neto pode nascer a qualquer momento. É o filho de minha filha. Não faço qualquer ideia do que signifique ser avô.

Você gostaria de dizer alguma coisa mais aos leitores brasileiros?
Questione a autoridade. Fique longe da minha filha e das drogas.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Por um mínimo de respeito para com o artista sergipano

Sergipanos são os cidadãos brasileiros, nascidos em Sergipe, menor estado da federação. Faço parte desta classificação. Nasci, cresci, vivo em Sergipe e produzo Arte.
Atualmente, venho observando com uma mórbida atenção alguns sinais de descaso para com o artista sergipano. O (mal)dito artista sergipano, este que fazem questão de louvar por essas bandas, é tratado em sua terra com descaso.
O Festival Ibero-americano de cinema de Sergipe, Curta-se, promovido pela casa curta-se, mais uma vez se mostra desrespeitoso para com o realizador sergipano. Desde a sua primeira edição, acompanho o festival. Trabalhei em um dos filmes exibidos no primeiro festival e estou aqui novamente participando da 9ª edição como realizador, e percebi que, desde a publicação das obras selecionadas para esta última edição coisas estranhas têm acontecido. O curta-se continua mal em sua organização. Longe de ser um festival firme e maduro com seus 9 anos de existência, continua repetindo erros primários de produção. O que podemos esperar de um festival sergipano que não dá o devido respeito ao realizador e ao público sergipano ?
Dito isto, vamos aos casos: Assim que recebi um e-mail para ir retirar minha credencial na casa curta-se, lá vem o primeiro erro: meu sobrenome trocado na lista de circulação interna para controle das credenciais. Até aí, tudo bem. Um pedido de desculpas resolve o problema. No primeiro dia da mostra de filmes sergipanos, somente um dos vídeos propostos para a mostra foi exibido, com defeito nos créditos - e a mostra de vídeos sergipanos acabou-se aí. Os artistas sergipanos não tiveram seus filmes exibidos, assim como o público que compareceu a fim de apreciar a produção local foi desrespeitado. Na segunda mostra, ocorreu uma coisa que mexeu particularmente com a minha pessoa: senti-me desrespeitado, primeiramente por não ter sido mencionado na abertura da segunda noite, assim como também pela não inclusão do título do meu vídeo na cédula para votação do júri popular. Era como se eu não estivesse ali, ou como se, simplesmente o vídeo não existisse. Sim, eu me senti marginalizado. Não que eu estivesse fazendo questão de ganhar algum prêmio, mas simplesmente pela falta de organização (e consequente respeito) do festival para com o meu trabalho, assim como os dos realizadores que teriam seus trabalhos exibidos na primeira mostra (que só exibiu um dos quatro vídeos programados). Pois bem, vou ser bastante ingênuo ao crer, que pelo tipo de vídeo que eu faço (me dedico inteiramente aos vídeos ditos experimentais), que a produção teria esquecido exatamente da minha obra no momento de digitar a ficha pois não lembraram da estorinha que o meu vídeo contava, ou talvez o título seja muito grande e deu preguiça. Uma outra leitura do fato se resume em uma simples palavra: incompetência. Ah, esse mal que assola esta cidade.
O mesmo vídeo em questão, Desconforto ou qualquer título que lhe caia melhor; experimental, 15:18 min) também foi selecionado para outro festival em Sergipe, o “curta na TV” da fundação Aperipê, onde a fundação, EM CONTRATO, se predispunha a premiar com 100 cópias à cada realizador dos vídeo selecionado. Até hoje espero essas cópias, embora agora sem mais nenhuma esperança, pois pelo que eu tenho ouvido por aí, a Aperipê está contendo despesas (e o caso desses vídeos, suponho que não os interesse mais, a partir do momento em que o realizador sergipano, que deveria por direito ter o seu devido reconhecimento, apoio e respeito pela sua contribuição à cultura local (que não é somente feita de folclore / cultura popular), e sim toda e qualquer manifestação artística produzidas aqui nesta província. Nestes dois casos me sinto desrespeitado enquanto artista e sergipano que sou, concluindo aqui com algumas perguntas intrigantes:

É desta forma que se apóia e valoriza a cultura local?
O que finalmente resta para o artista sergipano?

Alessandro Santana, artista sergipano.