sábado, 21 de dezembro de 2019

Contagem regressiva

Jair Bolsonaro sempre teve clareza de que chegou ao poder por uma confluência única de circunstâncias, uma janela no tempo difícil de se repetir. Desde que se elegeu, tem apenas duas preocupações: evitar o impeachment e se reeleger. A tática para atingir suas metas é a mesma: manter o sólido apoio de uma parcela do eleitorado que não é maioria, mas que é grande o suficiente tanto para resistir a um impeachment como para chegar ao segundo turno em 2022.
A partir do terceiro mês de mandato, a parcela que apoia o atual presidente se estabilizou em torno de um terço do eleitorado. Mesmo que o apoio venha a cair para um quarto dos eleitores, ainda assim Bolsonaro tem boas chances de ser bem-sucedido. O sinal vermelho para seu projeto só acenderá caso caia abaixo desse patamar.
A grande ameaça está no fato de que o duplo objetivo – evitar o impeachment e conseguir a reeleição – não é um fim em si mesmo. É apenas um meio. O objetivo real de Bolsonaro é destruir a democracia. Manter-se no poder e vencer a eleição em 2022 são apenas requisitos para alcançar esse objetivo maior.
É claro que esse roteiro pode mudar. Bolsonaro pode tentar um golpe antes de 2022. Mesmo que seja uma tarefa ainda mais difícil neste momento de dispersão e de fragmentação, as forças democráticas têm de se preparar como puderem também para isso. Este texto é otimista. Acredito que, pelo menos por enquanto, as condições para um golpe não estão dadas e que está mantido o roteiro de destruição da democracia pela via eleitoral.
Apesar de todas as indicações, tem muita gente que ainda duvida de que o objetivo de Bolsonaro seja destruir a democracia. Os atos e palavras antidemocráticos do atual presidente não passariam, segundo essas pessoas, de “arroubos”. Outra parcela da sociedade acha que “as instituições democráticas” irão mantê-lo na linha. Porque, afinal, Bolsonaro continua apostando em eleições. E está realizando o que prometeu durante a campanha de 2018.
Mas o que Bolsonaro prometeu em 2018 foi exatamente isso – destruir as instituições democráticas. Na campanha, as “instituições democráticas” eram “o sistema”. E o sistema é “de esquerda”. O liberalismo que ele abraçou é meramente econômico – Bolsonaro tem ojeriza ao liberalismo político. Entre outras razões, é por isso que não passa de conversa fiada dizer que se trata de um governo “liberal na economia e conservador nos costumes”. É um governo liberal na economia e antiliberal em política.
No mundo todo, movimentos antidemocráticos destroem a democracia pela via eleitoral. Para isso, reduzem a democracia à realização de eleições, justamente. Insistem que a democracia não depende de instituições democráticas e de uma cultura política democrática para existir, precisa apenas de eleições e de consultas populares. Pelo contrário, as instituições democráticas e a convivência democrática na vida cotidiana são “ideológicas”, “de esquerda”.
É um liberalismo autoritário, um Frankenstein político. Para que cada pessoa possa fazer o que bem entende em sua vida privada, deve ter sua vida política reduzida a votar. Uma democracia reduzida ao voto não precisa de imprensa livre, Judiciário independente, escola que fomente a tolerância, Legislativo que fiscalize, movimentos sociais de contestação, autocontrole democrático da burocracia estatal.
Quando Eduardo Bolsonaro falou em “um novo AI-5”, a repulsa foi de tal ordem que não se prestou a devida atenção ao que ele disse em seguida: “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, vamos precisar dar uma resposta. E essa resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada por plebiscito, como ocorreu na Itália.” É claro que quem define o “ponto” da “radicalização” é quem fala. Especialmente se estiver no poder. O primeiro caminho escolhido por Eduardo Bolsonaro é usar a Presidência para decretar um novo AI-5, assim como o pai falou em invocar a Lei de Segurança Nacional contra Lula.
O outro caminho imaginado por Eduardo Bolsonaro foi o de um “plebiscito”. Quando a democracia é reduzida ao ato de votar, a realização de plebiscitos ou referendos dá a aparência de tornar o processo político “mais democrático”, já que “se vota mais”. E a referência à legislação aprovada na Itália pode ser à Lei de Legítima Defesa, cuja cópia foi entregue em mãos a Eduardo Bolsonaro pelo então homem forte do governo, o líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini. Mas pode ser também uma referência a qualquer plebiscito da Itália de Mussolini, sempre lembrado veladamente por Salvini de maneira elogiosa.
ara realizar seu projeto autoritário, Bolsonaro precisa investir em duas frentes simultâneas. Precisa manter as instituições democráticas existentes no mesmo estado de colapso em que já se encontravam desde as manifestações de Junho de 2013 – uma das razões decisivas para explicar sua eleição, aliás. Com isso, ele pretende eliminar entraves ao seu projeto que possam vir da própria burocracia de Estado, pretende eliminar a diversidade no fomento à cultura e os controles institucionais penosamente conquistados ao longo da redemocratização. Ao mesmo tempo, Bolsonaro quer introduzir uma nova cultura institucional, aparelhando o Estado com o máximo de adeptos do autoritarismo que conseguir. É marcante como aposta na formação de quadros jovens em seu governo. É visível a tentativa de construir um dispositivo cultural de extrema direita para chamar de seu. Com isso, tornará o aparelho de Estado o quanto possível uma arma eleitoral em 2020 e em 2022.
Na outra frente, Bolsonaro espera tornar mais orgânica sua base de apoio, convencendo-a paulatinamente de que a saída autoritária é não só a melhor, mas a única possível. Foi o que pretendi dizer há um ano, logo após a eleição, aqui mesmo na piauí (“A revolta conservadora”, edição 147, dezembro de 2018): “Como venceu a eleição com muita mobilização, mas sem nenhuma organização, Bolsonaro tem de convencer seu eleitorado mais fiel de que a revolução conservadora apenas começou. Precisa pedir tempo e paciência para desmontar de uma vez por todas o sistema político. Precisa conseguir que as pessoas de sua rede se engajem e se candidatem na eleição de 2020 para preparar uma renovação geral que prometerá completar apenas em 2022. A tática de identificar tudo que não é o seu governo – ou seja, a ‘esquerda’ – com o ‘sistema político’ o impede de utilizar os mecanismos clássicos do mesmo sistema para atingir esse objetivo.”
No mundo todo, não só no Brasil, eleições estão produzindo impasses. O exemplo mais recente é o da Espanha, um país de regime parlamentarista que realizou quatro eleições nos últimos quatro anos. Por toda a parte, as forças políticas adotaram posições meramente defensivas. Empenham-se em manter as bases eleitorais que têm, sem qualquer pretensão de ampliação ou de solapamento das bases de adversários.
Mas, apesar do travamento e do impasse, o Brasil não é a Espanha. É um país governado por um presidente de extrema direita que sinaliza o tempo todo sua intenção de instaurar um governo autoritário na primeira oportunidade. O atual presidente tem clareza de que propostas autoritárias têm tanto mais chance de vingar quando se apresentam em situações de travamento e de impasse como a nossa.

Mesmo quem considera que a situação é gravíssima age como se estivéssemos diante de um governo normal. Há um descolamento flagrante entre repetir à exaustão que a democracia está em risco e a ausência do sentido de urgência que deveria acompanhar essa constatação. O resultado é uma paralisia da ação que pode colocar tudo a perder.
Bolsonaro é agora presidente e não mais um candidato outsider. Mas, paradoxalmente, continua a ser tratado como candidato e como se ainda outsider fosse. O paradoxo tem sua razão de ser: ele se põe de fato como um presidente outsider; e é de fato candidato. Lançou-se à reeleição com menos de seis meses no cargo. E então a imprensa cobre seu governo como se fosse campanha eleitoral. Mais do que isso, tanto as mídias sociais como as forças políticas lidam com o governo como se estivéssemos em campanha eleitoral.
Continuamos a subestimar o atual presidente e as chances que tem de realizar seu projeto autoritário. Como todo outsider que se preze, Bolsonaro age sempre como se estivesse acuado, encurralado. E acreditamos. Acreditamos que o presidente da República está sempre na defensiva, perdendo. O presidente da República!
Tratamos Bolsonaro como se ele ainda fosse um candidato azarão e não o presidente do país. Como se fosse algo óbvio que seu projeto fracassará. Afinal, “não é possível que um sujeito tosco como esse, que não faz articulação política” possa chegar a 2022 com qualquer chance – é o que ouvimos dia sim, outro também. Mesmo porque – assim continuam os mantras da preguiça mental que tomou conta de nós nos últimos tempos – “a economia não vai decolar” e Bolsonaro pagará o preço.
Sério? Vamos agora acreditar em unicórnios em lugar de fazer política? Vamos colocar em risco a democracia brasileira com base em palpites de botequim?
O efeito dessa preguiça política generalizada é favorável a Bolsonaro em pelo menos três sentidos. Entra no ritmo eleitoral em que ele se sente confortável. Acredita no show de um presidente acuado, nas cordas, sem margem de ação. E, paradoxalmente, trata seu governo como se fosse um governo normal. A prova mais cabal dessa normalidade é que todas as forças políticas continuam a fazer cálculos meramente eleitorais, sem levar em conta que é a própria democracia que está em risco.

Acampanha midiática de normalização do governo Bolsonaro como um governo democrático ficou delegada sobretudo ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Na semana em que a Folha de S.Paulo foi frontalmente atacada por Bolsonaro, Guedes concedeu uma entrevista ao jornal, em 3 de novembro último. A entrevista pretendeu mandar o recado de que o governo continua contando com gente esclarecida, ciosa das liberdades democráticas, verdadeiramente liberal no sentido político da expressão. A normalidade foi expressa com perfeição já na chamada da entrevista, que reproduziu a seguinte fala de Guedes: “Dá para esperar quatro aninhos de um liberal-democrata após trinta anos de centro-esquerda?” Como se estivéssemos diante de uma simples “alternância no poder”. Como aconteceu em outra ocasião, quando Guedes afirmou que iria “enterrar o modelo econômico social-democrata” dos governos do PSDB e PT.
E, no entanto, ao identificar PSDB e PT como farinha do mesmo saco social-democrata, Guedes ecoa Bolsonaro, que identifica todas as forças políticas que não a sua ao “sistema”, à “esquerda”. O ministro fala como se integrasse um governo liberal sem mais. Ao mesmo tempo, deixou claro na entrevista que seu horizonte não se restringe a apenas “quatro aninhos”. Perguntado sobre a inclusão da Petrobras na lista de empresas a serem privatizadas, Guedes respondeu assim à jornalista Alexa Salomão: “Não agora. Num segundo mandato o presidente vai considerar as grandes [empresas estatais]. Nós, da equipe econômica, queríamos tudo agora.”
Para não deixar dúvidas de que se trata de um governo revolucionário, que vai muito além da adesão incondicional ao projeto reeleitoral dos “oito aninhos”, Paulo Guedes também entrou de cabeça no discurso apocalíptico-salvacionista dos mártires. No anúncio de sua proposta de refundar o Estado e a sociedade no Brasil, em 5 de novembro, usava uma pulseira com os dizeres “Apocalipse 12:11”.
O texto bíblico do versículo 11 do capítulo 12 do livro do Apocalipse (o “livro da revelação”) diz: “Eles, pois, o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra que testemunharam, pois desprezaram a própria vida até a morte.” Trata-se do capítulo bíblico que introduz o tópico das batalhas com o Diabo, que foi jogado para fora do Céu, para a Terra. O capítulo narra nada menos do que o conflito cósmico entre o bem e o mal: o mártir vence, mas morre; e morre para vencer.
A pulseira bíblica indica o que está por trás da versão liberal-tecnocrática do caos como método implantado por Bolsonaro como estilo de governo. Guedes propõe tanta mudança radical ao mesmo tempo que é impossível debater com alguma seriedade. O discurso nacionalista, o religioso e o tecnocrata se uniram para abolir de uma tacada o lento trabalho constituinte e constitucional realizado nos últimos 31 anos pela sociedade e pelos três poderes.
Sem nem entrar no mérito das inúmeras propostas e de suas muitas incoerências e iniquidades, o ministro age como se jogasse no colo do Congresso uma Constituinte específica. Isso, com eleições municipais pela frente, sem qualquer preparação anterior. Trata-se, além disso, de um pacote de medidas que poderia ter sido debatido de maneira escalonada, em uma série coerente.
Vai passar pelo Congresso? De que maneira? Essas são as perguntas que miram o alvo errado. O pacotaço de Guedes vai na contramão do consenso que se formou na elite do capitalismo global. Todas as políticas adotadas para enfrentar a crise econômica mundial iniciada em 2008 salvaram os sistemas financeiros, mas apenas empurraram o real problema com a barriga. O ciclo de revoltas de 2011 a 2013, que mirou essa primeira gambiarra, está sendo agora retomado em diferentes partes do planeta em novo patamar. Duas coisas já estão claras para a elite do capitalismo global: a desigualdade chegou a níveis inadministráveis; estamos efetivamente em estado de emergência ambiental.
O plano Guedes quer introduzir com trinta anos de atraso as mesmas políticas que levaram à crise de 2008. Somada à política de vale-tudo ambiental do governo Bolsonaro e ao estado deplorável das instituições, caminhamos para um acirramento das nossas crises superpostas. É nesse contexto que deve ser compreendida a declaração de Guedes durante entrevista coletiva em Washington, no último dia 25 de novembro: “Sejam responsáveis, pratiquem democracia. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?” Não há democrata que tenha o direito de permanecer indiferente a um ataque dessa magnitude à democracia. Não há democrata que tenha o direito de continuar a acreditar que Paulo Guedes é um democrata depois de uma declaração como essa.
Do pacotaço de Guedes o que de fato importa para o projeto de poder do atual presidente é culpar “o sistema” pelo resultado “distorcido” que vier do Congresso. Seja lá qual for. A narrativa oficial já está preparada de antemão: Bolsonaro apresentou um projeto de reformulação de cima abaixo do país e não foi ouvido pelo “sistema”. Como queríamos demonstrar.

Com alguma variação, as pesquisas de opinião sobre o presidente mostram que o eleitorado se divide em três terços: aprovação, rejeição, nem aprovação nem rejeição. Também os principais nomes colocados para 2022 se organizam segundo essa divisão: Bolsonaro, Lula, João Doria/Luciano Huck. Não importa aqui se o eleitorado se divide exatamente em três terços. O que importa é que se consolidou na política institucional uma tática de organização que se baseia na divisão em três partes, seja lá o tamanho que tenha cada uma. Para a manutenção dessa lógica, o que não pode acontecer é alguma das partes cair para um patamar abaixo de um quinto do eleitorado.
A tática de cada terço é a mesma: fidelizar o eleitorado que acredita ser seu. Não há empenho de ninguém em minar a base das outras forças ou em estender a sua própria para além de seu terço.Por paradoxal que possa parecer, é confortável para todas as demais forças políticas dar por certo, por exemplo, que a parcela do eleitorado que está com Bolsonaro não pode ser reconquistada para a democracia. A tática de cada um dos três terços reforça a dos demais.
Desapareceu do horizonte a lucidez do discurso de Mano Brown no último comício no Rio de Janeiro do então candidato Fernando Haddad, em 2018: “Não sou pessimista, sou realista. Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, me amavam, que serviam o café de manhã, que lavavam meu carro, que atendiam meu filho no hospital se transformaram em monstros. Eu não posso acreditar nisso. Não posso acreditar que… Essas pessoas não são tão más assim.”
Uma importante figura de referência do terço do meio, por exemplo, considera que não vale a pena perder tempo em solapar a base de apoio de Bolsonaro. Em entrevista a Igor Gielow publicada pela Folha em 24 de outubro, Jorge Bornhausen avaliou que o “centro deverá apoiar Luciano Huck na disputa com o PT para enfrentar Jair Bolsonaro no segundo turno em 2022, deixando João Doria de lado”. Para o ex-governador, ex-ministro e ex-senador, “Huck e um nome do PT irão disputar a vaga no segundo turno contra Bolsonaro (PSL). O presidente manterá seus 25%, 30% de apoio, apesar de tudo”. O político de 82 anos, que já pertenceu à Arena, ao PDS, ao PFL, ao DEM e ao PSD, deixou claro que não quer conversa com o terço à esquerda. Diz ter votado em Bolsonaro no segundo turno de 2018 “por exclusão, porque não voto no PT”. Bornhausen faz do partido de Lula, e não de Bolsonaro, o adversário a ser primeiramente batido em 2022.
Também Lula, já livre, aposta fundo na fidelização de seu terço do eleitorado. Em reunião da Executiva Nacional do PT em Salvador, em 14 de novembro, disse: “Vocês já viram alguém pedir para FHC fazer autocrítica? […] Quem quiser que o PT faça autocrítica, que faça a crítica você. Quem é oposição que critica, ela existe para isso. […] Na dúvida, a gente defende nosso companheiro.” É claro que exigir autocrítica de outra pessoa ou outra instituição é uma contradição em termos. Se é autocrítica, não cabe exigir que outra pessoa a faça. Lula tem razão, quem quer criticar, que critique.
Mas por que mirar em FHC quando é Bolsonaro o presidente? Lula fala de “oposição” como se ainda estivesse na Presidência da República e como se o PSDB ainda tivesse força para liderar a oposição a seu governo. Como se ainda estivéssemos na República do Real, encerrada definitivamente com a eleição de Bolsonaro. Como se o adversário a derrotar fosse o terço “nem nem” – que nem apoia nem rejeita Bolsonaro – e não o próprio Bolsonaro.
Sobretudo, Lula fala como se a tática do PT na eleição de 2018 tivesse sido sem mácula. Como se a total ausência de empenho efetivo em trazer o eleitorado “nem nem” para a candidatura Haddad não tivesse qualquer relação com o resultado. Em seu discurso na abertura do Congresso Nacional do PT em São Paulo, em 22 de novembro, Lula disse: “Não fomos nós os responsáveis, ativos ou omissos, pela eleição de um candidato que tem ojeriza à democracia.” O que mais se ouve na parte mais mobilizada do terço fiel ao PT é que quem não votou em Haddad não passa de canalha sem remissão. Trabalham com a convicção de que repetindo o mesmo erro de 2018 terão um resultado completamente diferente em 2022. Porque o PT já estará preparado para enfrentar as fake news. E porque não haverá a facada que garantiu Bolsonaro no segundo turno em 2018. Então tá.

Oque é necessário para que um acordo mínimo entre as forças que não apoiam Bolsonaro possa acontecer? O que é necessário para que uma agenda pública alternativa à lógica de campanha eleitoral mantida por Bolsonaro consiga se impor? Menos do que isso ainda: o que é necessário para dar o primeiro passo para evitar a catástrofe, para que forças políticas adversárias, mas dispostas a manter a democracia, aceitem simplesmente sentar para conversar?
Há uma montanha de desconfianças acumuladas de lado a lado. Mas, se a convergência em torno de um acordo mínimo em defesa da democracia não começar a ser construída desde já, a democracia já perdeu. Porque a construção de um acordo desse tipo tem de elaborar anos de golpes duríssimos, de mágoas e de acusações graves. E isso leva tempo.
É justamente da continuidade dessa desconfiança generalizada no campo democrático que se alimenta Bolsonaro. O atual presidente conta com a divisão no interior do campo democrático, aposta que continuarão dinamitadas todas as pontes entre as forças desse campo. Bolsonaro ainda não dispõe de uma maioria de extrema direita para chamar de sua. Só tem chance de realizar seu projeto autoritário se as forças democráticas não forem capazes de chegar a um acordo para isolá-lo.
O eleitorado “nem nem” é uma realidade. Mas o “centro” de Jorge Bornhausen é uma abstração política. O que se costuma chamar de centro é um estacionamento composto por aquela parte do eleitorado que não quer ser obrigada a escolher previamente se votará mais à esquerda ou mais à direita na próxima eleição. Foi sempre o sonho de parte da direita e de parte da esquerda tornar o centro algo orgânico, uma força política com identidade própria. Funciona como recurso retórico. Mas só.
É enorme a responsabilidade de uma direita comprometida com a democracia. Mesmo que não exclusivamente, ela tem o papel de roubar votos de Bolsonaro, de minar sua base de apoio, de disputar a sério a representação à direita para isolar a extrema direita. Em setembro último, o Datafolha tentou medir o efetivo apoio a Bolsonaro e chegou ao resultado de que o “núcleo duro de entusiastas” do atual presidente é de cerca de 12% da população, sendo algo como 22% os “entusiastas médios” do bolsonarismo. Ou seja, há muito apoio a Bolsonaro a ser roubado se houver um esforço real nessa direção. Parte desse esforço terá de ser feito pela esquerda, mas a responsabilidade da centro-direita é ainda maior. O único que tentou isso até agora foi João Doria – o mesmo que Bornhausen achou por bem tirar do jogo sucessório. Foi atrás de Alexandre Frota e de Joice Hasselmann, por exemplo. Mas Doria continua restrito a São Paulo, não tem capacidade de articulação nacional.
Isolar Bolsonaro requer ainda outro passo: a centro-direita precisa parar de fazer o jogo “me engana que eu gosto”, como se estivesse “usando” o atual governo para passar as mudanças legislativas com que sonha há mais de duas décadas. Quem usa os outros é quem está no poder. E quem está no poder é a extrema direita.
Em suma, Rodrigo Maia não preside o país, preside a Câmara dos Deputados. E seu mandato acaba bem antes do de Bolsonaro, em fevereiro de 2021. Os candidatos a substituí-lo nada têm a ver com o projeto do “novo centro”. É bom começarem a pensar nisso desde já.

Por fim, para que o movimento de ataque à base de apoio de Bolsonaro seja bem-sucedido, é necessário um cessar-fogo de parte a parte entre a centro-direita e Lula. O “centro” precisa parar de tratar Lula e o PT como inimigos preferenciais e passar a considerá-los como adversários com os quais é necessário se entender sobre o que será a democracia brasileira. Porque, como se sabe, na democracia há apenas adversários, e não inimigos.
Por isso mesmo, o único inimigo de fato é Bolsonaro. Porque é inimigo da democracia. Diante da ameaça autoritária representada pelo atual presidente, é politicamente irresponsável agir como se a polarização ainda fosse entre PT e PSDB. Irresponsabilidade, aliás, que é um presente para Bolsonaro.
A centro-esquerda alternativa ao PT desejada por Ciro Gomes e pelo PSB é um espaço ainda mais imaginário do que o “centro” de Bornhausen. Ciro quer abrir um espaço onde espaço não há, quer fazer política entre Lula e Luciano Huck. Para isso, resolveu hostilizar Lula e o PT de maneira permanente. Mais um presente para Bolsonaro.
Se uma candidatura de esquerda chegar ao segundo turno contra Bolsonaro em 2022, é evidente que vai precisar do eleitorado “nem nem” para vencer a eleição. Ainda mais se for um candidato do PT, um partido que registra hoje taxa de rejeição por volta de 43% no eleitorado. A parcela “nem nem” não virá para uma candidatura de esquerda “por gravidade”, por “não ter para onde ir”, como muita gente insiste em fantasiar.
O eleitorado “nem nem” só poderá vir a apoiar um candidato da esquerda contra Bolsonaro se sentir que novas regras de disputa política foram acordadas, se acreditar que um novo solo democrático para o exercício da divergência foi construído entre os adversários de ontem. Não para apagar as diferenças, muito pelo contrário. Como escrevi no texto de dezembro de 2018 aqui na piauí: “Uma concertação democrática como essa teria ao mesmo tempo de defender instituições indefensáveis na sua forma atual e propor uma renovação radical dessas mesmas instituições. Cada força política de oposição teria de ter garantido o espaço de fazer oposição à sua maneira e como bem entender, ao mesmo tempo que se perfilaria ao lado de todas as outras forças de defesa das instituições democráticas e de sua reforma.” O eleitorado “nem nem” só poderá apoiar uma candidatura da esquerda contra Bolsonaro se tiver a segurança de que não será hostilizado, de que sua posição será respeitada. Hostilizar essa parcela do eleitorado por não ter votado em Haddad em 2018 é o mais vistoso dos presentes para Bolsonaro.
Ao sair da cadeia, em 1945, após nove anos de prisão, Luiz Carlos Prestes apoiou o ditador que tinha mandado prendê-lo. Elegeu-se senador e viu seu partido, o PCB, ser posto na clandestinidade dois anos depois. Independentemente da montanha de equívocos de sua posição, o que Prestes fez ao apoiar Getúlio Vargas em 1945 foi política. Mesmo perseguido, mesmo na clandestinidade, aquele PCB -stalinista fez mais pela frágil democracia da Constituição de 1946 do que muito autoproclamado democrata histórico.
Lula e o PT ocupam hoje um lugar histórico ainda mais importante do que ocuparam Prestes e o antigo PCB em 1946. O PT governou por treze dos 22 anos da República do Real, tem a maior bancada na Câmara dos Deputados. É enorme a responsabilidade política de Lula e do PT na sustentação da democracia em seu momento de maior fragilidade desde a redemocratização.

“Sistema” é o lugar que o vencedor da eleição presidencial de 2018 atribuiu a quem perdeu. Quem hoje defende a democracia faz parte do “sistema”. Bolsonaro conseguiu transformar em “sistema” até mesmo o próprio partido pelo qual se elegeu. Essa é a lógica da política atual. Mostra a hegemonia de Bolsonaro no debate público, mesmo sendo apoiado por apenas um terço da população.
Se as forças democráticas entrarem em concertação (explícita ou implícita, não importa) para tentar encontrar uma convergência mínima que permita salvar a democracia, com certeza receberão o carimbo de “sistema”, darão razão à tática antissistema de Bolsonaro. Mas a atual tática meramente defensiva dos grupos não bolsonaristas também não se mostrou até agora capaz de escapar dessa consequência. Pelo contrário, apenas reforçou a posição de Bolsonaro. Porque o impasse dos três terços mantém tudo como está sem apontar para nenhuma saída, sem apontar para nada além da permanência do atual estado de crise da democracia. Se alguma das forças políticas não bolsonaristas vier a vencer o atual presidente em 2022 mantendo sua tática de hoje, apenas adiará a crise. Apenas produzirá novos Bolsonaros.
É por isso também que uma convergência mínima das forças não bolsonaristas não pode se resumir a restaurar o que foi a democracia brasileira. Tem de ir além de seu importante primeiro passo de um cessar-fogo nos bombardeios mútuos e permanentes. Tem de ser uma concertação que aponte para o futuro, para a construção de um novo espaço comum de divergência democrática, para reformas significativas das instituições.
Pode ser pura miragem o encontro entre Lula e Rodrigo Maia anunciado pelo colunista do UOL Tales Faria, em 19 de novembro último. Mas, mesmo sendo uma luz ainda fraca demais para o tamanho do túnel em que nos metemos, seria já um sinal alentador. Vai no mesmo sentido a tese da corrente majoritária do PT apresentada no último congresso nacional do partido, em novembro: “Não há contradição entre consolidar a unidade dos progressistas e, ao mesmo tempo, buscar alianças mais amplas, até com personalidade e setores de centro, em prol do Estado de Direito.” Já o discurso de Lula na abertura do mesmo congresso do PT vai em sentido contrário, segue na mesma linha dos pronunciamentos em Curitiba e no Recife, feitos após a sua libertação.
Os canais de diálogo e de concertação política estão hoje entupidos e enferrujados. Uma verdadeira DR [discussão da relação] do campo democrático vai exigir disposição, paciência e tempo. Um tempo que parece curto para o tanto de conversa que ainda precisa acontecer. Na melhor das hipóteses, o campo democrático tem menos de três anos para encontrar um acordo mínimo, tem menos de três anos para evitar a catástrofe.
Se o projeto autoritário em curso ainda mantiver seu roteiro eleitoral, o imperativo categórico da política brasileira é derrotar Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Dar prioridade a qualquer outro objetivo em relação a esse significa arriscar tudo. Significa arriscar a pouca democracia que ainda temos.

por Marcos Nobre

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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

“Quero Que Você Entre Em Pânico”

“Onde está aquela garota?”, uma adolescente, ainda vestindo o uniforme da escola se pergunta em voz alta. “Que garota?” “Você sabe!” Suas amigas parecem intrigadas por um momento, depois se descontraem em reconhecimento. “É, é. Aquela garota.”

Alguns minutos depois, um grupo de meninos um pouco mais informados começam a entoar simulando um sotaque sueco: “Greta! Greta!”

Toda vez que a polícia nos empurra para a calçada, alguns de nós na multidão imaginam que estamos prestes a ver Greta Thunberg, a garota sueca de 16 anos que inspirou milhões de outras crianças ao redor do mundo a matar aula às sextas-feiras para protestar contra o fracasso dos seus governos em impedir o desastre climático.

A greve climática de 20/09, atraiu milhões de pessoas ao redor do mundo. A que ocorreu em Nova Iorque foi a maior do país até o momento, com 70.000 pessoas na rua. Grande parte do motivo foi a emoção de ter Greta Thunberg aqui na cidade. O sistema de ensino público nova-iorquino ter permitido que os alunos faltassem aula sem penalidade também ajudou, resultando no que talvez tenha sido a marcha climática da classe trabalhadora mais diversa que os Estados Unidos já viram. Mas os números também se devem ao impulso que Greta deu ao movimento.

Movimentos são coletivos, mas algumas pessoas têm a personalidade certa para liderar na hora certa. Quem acha que o socialismo seria tão popular nos Estados Unidos hoje se Bernie Sanders não tivesse concorrido à presidência em 2016? As condições históricas estão corretas, mas o povo também precisa de líderes. Greta é uma dessas pessoas. Não há dúvidas de que ela é grande parte do motivo pelo qual as pessoas estão indo às ruas e por que até os políticos e a mídia estão começando a levar essa questão mais a sério.

Greta é autista. Como Slavoj Žižek observou, isso é provavelmente parte do seu apelo. Ela se refere ao seu autismo como um “superpoder”, e pode ser que seja mesmo. Pessoas autistas muitas vezes têm dificuldades para entender comunicações sociais. Isso não deve ser idealizado; torna a vida deles mais difícil, e a sociedade nem sempre é tolerante com essas diferenças. Para uma porta-voz climática como Greta, no entanto, não é difícil ver como o autismo pode ajudar.

A maioria das pessoas, especialmente as meninas, é socializada para fazer com que os outros sintam-se bem, para serem gentis e não serem chatas. É impossível chamar atenção para uma ameaça à civilização humana sob tais restrições sociais. A possível extinção da nossa espécie não faz ninguém se sentir bem. Além disso, a maior parte das pessoas é socializada para dizer às outras que elas estão fazendo um ótimo trabalho, ou pelo menos para encontrar maneiras de enfatizar o que é positivo. Mas, novamente, é impossível dizer a verdade sobre o clima dessa maneira. Na semana de 15 a 21 de setembro de 2019, Greta disse sem rodeios, na cara dos membros do Congresso americano, para pararem de puxar seu saco. “Por favor, guardem seus elogios”, disse ela. “Nós não os queremos. Não nos chamem aqui só para nos dizer como somos inspiradores, porque isso não leva a nada.” Ela disse: “eu sei que vocês estão tentando, mas não o suficiente. Sinto muito.”

Pessoas autistas muitas vezes conseguem concentrar-se fenomenalmente em um único assunto. Isso pode torná-los trabalhadores extraordinariamente produtivos, como descobriram alguns empregadores. Greta é incomum para uma ativista contemporânea, pois ela raramente menciona outras questões. O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é a metáfora neurológica da nossa era da internet; há muitos problemas atraindo nossa atenção, enquanto nossas formas contemporâneas de consumir mídia — notificações constantes em nossos celulares, tweets — nos desencorajam a dar a qualquer um deles a atenção constante que necessitam. Talvez uma dose de autismo seja o antídoto certo para o nosso TDAH coletivo.

omo qualquer pessoa com um impacto tão grande na cultura política, Greta tem seus críticos. Não é de surpreender que a maioria deles esteja à direita, exatamente onde esperamos encontrar negadores climáticos que odeiam crianças excepcionais. Mas também houve uma reação contra ela na esquerda.

Algumas vêm daqueles esquisitões para os quais nenhum ser humano é abnegado o suficiente. Greta, sendo uma ativista climática de princípios e levando a sério seu papel de exemplo para os outros, não usa aviões; as viagens aéreas são a forma de transporte que mais emitem carbono. Para vir a Nova Iorque para a Cúpula do Clima da ONU (e a Greve Climática) neste mês de setembro, ela viajou de barco. Alguns dos críticos mais rígidos de Greta ficaram indignados com o fato de os adultos que pilotavam o barco planejarem voltar de avião à Europa. Outros ficaram aborrecidos com fotos de plástico descartável a bordo do barco. Isso é o ambientalismo como uma neurose punitiva, e não política.

Outros críticos de Greta, com uma perspectiva política bastante diferente, estão igualmente equivocados: estão chateados devido ao barco de carbono zero ser tão caro, enfatizando, com um ressentimento populista idiota, que é um “iate”. Para esses críticos de esquerda, Greta é o rosto de um movimento ambiental de “elite”. Eles suspeitam que ela seja muito institucionalmente amigável e amada pela mídia para fazer algo bom. Eles estão seguros de que ela não pode ser verdadeira, que se trata de um fenômeno fabricado. Essas críticas parecem fugir do cerne da questão tanto quanto as feitas pelos obcecados pelo plástico.

Não tenho dúvidas de que a embarcação de carbono zero é cara. Na verdade, espero mesmo que seja; que pais deixariam um filho atravessar o Atlântico em um barco a remo barato? Além do mais, certamente não parecia uma viagem luxuosa. Quanto à idéia de que Greta é abraçada pelas elites e pela mídia, qual é a insinuação aqui? Que ela estaria tentando nos distrair participando do movimento ambiental mais radical e popular ao invés de bombardear a sede da ExxonMobil e raptar os irmãos Koch? Essa é uma fantasia sombria e risível para quem assiste de perto o movimento ambiental dominante se aconchegando junto às piores empresas e políticos, arrecadando fundos para o drama de bichinhos fofos ameaçados de extinção, enquanto ecossistemas inteiros estão em perigo.

Greta Thunberg continua dizendo aos adultos — francamente, implacavelmente, não facilitando — que ela não pode nos salvar. Ela está certa. Precisamos refazer toda a nossa sociedade. Mas ela chamou nossa atenção e nos deu um exemplo, e precisávamos disso. Na Greve Climática houveram muitos bons sinais. Alguns fariam qualquer pessoas que já foi criança rir, como “Mantenha a Terra Limpa, Não É Seu (C)Urano”. Outros, como “Compostem os Ricos”, propunham soluções sagazes. Alguns foram de partir o coração: “Estou Estudando Para Um Futuro Que Foi Destruído”. Um dos melhores levou uma citação de Greta Thunberg: “Quero Que Você Entre Em Pânico”. Isso provavelmente não é algo que uma pessoa “normal” diria.

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jacobin



quarta-feira, 4 de setembro de 2019

BACURAU

Assim como Aquarius, a recepção de Bacurau parece comprometida pela expectativa, compartilhada por apoiadores e críticos, de que o filme seja uma análise da conjuntura presente. No caso de Bacurau, a confusão começa já na questão sobre o registro em que devemos lê-lo. A suposta influência de Tarantino é enganosa: não se trata de uma película ao estilo do diretor americano, mas que explora um gênero cultivado por ele e Robert Rodriguez –– algo que poderíamos descrever como filme B de fantasia de vingança coletiva. Bacurau não seria, assim, uma tentativa de copiar, mas de fazer a mesma coisa por outros meios, com referências predominantemente não-hollywoodianas: Punishment Park (Peter Watkins), The Wicker Man (Robin Hardy) e Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr.), para arriscar algumas. É quando o lemos como filme de gênero que vários traços do filme, como sua violência estilizada, começam a fazer sentido.

O que Tarantino descobriu a partir de Death Proof é que aderir às convenções do filme B lhe permitia ser maniqueísta e didático ao falar de política. Há, claro, uma grande ironia aí: em tempos em que o próprio fim do mundo pode ser assistido com distanciamento irônico, é como se só o distanciamento propiciado pelo artifício e o absurdo nos desse o direito de ir direto ao ponto. Dito de outro modo, é como se a condição necessária para dizer a verdade sem rodeios –– e nada é mais verdadeiro que uma fantasia de vingança –– fosse a inverossimilhança. Porque a verdade, no fim, está menos na caracterização dos personagens ou na plausibilidade da trama que na catarse que o filme provoca ao realizar na tela uma fantasia de vingança –– de mulheres, em Death Proof; judeus, em Bastardos Inglórios; negros, em Django Livre e Os Oito Odiados; e latinos, em Machete.

Sob este aspecto, acusar de didatismo uma cena como aquela em que os estrangeiros humilham os paulistas que os levam à Bacurau é não entender a piada. O esquematismo e a falta de sutileza não estão ali a serviço da mensagem, mas do efeito catártico que a cena proporciona: a vingança é um prato que se come lambuzando-se. Não por acaso, a cena parece ter incomodado especialmente os críticos do sudeste –– o que sem dúvida só faz aumentar o prazer que o público nordestino pode extrair dela.

Mas se Bacurau é uma fantasia de vingança, quem são os vingados? Reduzir o filme a uma revanche do #elenão é a leitura mais superficial que se pode fazer, seja contra ou a favor. Tampouco podemos dizer que trata apenas dos nordestinos ou sertanejos. Basta projetar sobre o filme um pouco de economia política, porém, e ele se torna bem menos metafórico e bem mais literal. A violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico. É a violência que ronda os “involuntários da pátria”, na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia. É a violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação primitiva e na gestão das populações “excedentes” (leia-se: desprovidas de funcionalidade econômica). Esta violência não é uma metáfora; ela está acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, periferia ou fronteira que, de um ponto mais central das redes que dela se alimentam, nós não vemos ou preferimos não ver.

A transformação de Bacurau numa zona de caça para turistas, mediada pela elite local (o prefeito) e nacional (os paulistas), não é, assim, uma alegoria do imperialismo tirada de alguma cartilha dos anos 60, mas outra coisa. O que o filme faz é tomar um traço do presente e estendê-lo até o futuro –– que é, afinal, onde ele se passa. O resultado é a projeção bastante lúcida de um cenário cada vez mais possível, em que as fronteiras e a violência que as acompanha proliferam e podem aparecer em (quase) qualquer lugar a qualquer hora. Em que há cada vez mais bolsões de pessoas deixadas às margens, sem acesso aos benefícios do desenvolvimento, mas sempre sujeitas a terem uma última gota de rentabilidade extraída de si (o abastecimento de água cortado, o safári humano como serviço de luxo). Em que as populações “excedentes” se tornaram tão numerosas que seu manejo é feito ao ar livre, em execuções em massa exibidas pela televisão. Em que extrativismo e exterminismo finalmente tornaram-se inteiramente reversíveis.

Quem viu os discursos de Donald Trump e Jair Bolsonaro na ONU reconhecerá este cenário. O negacionismo climático não é burrice, mas a aposta de setores que já assumiram que a manutenção de suas condições atuais de vida tornou-se incompatível com a sobrevivência da grande maioria. O antiglobalismo não é um desvario, mas a justificativa ideológica de quem já percebeu que, sem uma correção radical de rumo –– justamente o que eles querem evitar ––, o capitalismo não dá mais para todo mundo. O resultado disso só pode ser, de um lado, o caos crescente causado pela crise ambiental, pela extinção de qualquer rede de proteção social, pela automação do trabalho e pelo empreendedorismo predatório; e, de outro, a formação de enclaves fortemente protegidos. Morador da Barra da Tijuca, Bolsonaro pode, pelo menos nesse sentido, dizer que vem do futuro.

Famosamente, Michel Foucault chamou de “biopolítica” um acordo tácito entre governantes e governados estabelecido a partir do século XVIII. Em troca de potencializar a utilidade econômica dos governados, os governantes assumiam o dever de fazer viver (através de políticas de saúde, seguridade, legislação trabalhista...), reservando para ocasiões extraordinárias o direito de deixar ou fazer morrer. Esta biopolítica sempre foi inseparável, nas suas fronteiras, de uma violência letal: para que algumas populações vivessem dentro de certos parâmetros, era preciso que outras fossem exploradas até à morte. O nazismo apenas levou esta lógica às últimas consequências.

O cenário que Bacurau e a extrema direita mundial projetam aponta para a dissolução deste pacto e uma virada abertamente necropolítica do capitalismo. Num mundo de concentração de renda astronômica, degradação ambiental crescente, recursos cada vez mais escassos e aumento das populações excedentes –– desempregados estruturais, refugiados climáticos, população carceral ––, o Estado tende a eximir-se da responsabilidade de fazer viver e a privatizar –– para empresas de segurança, “empreendedores” e “cidadãos de bem” –– o direito soberano de fazer morrer. Vista assim, a combinação de ultraliberalismo e culto da violência de Trump e Bolsonaro faz perfeito sentido.

Se Bacurau pretendia ser uma previsão do futuro próximo, aliás, aí está seu maior deslize. Na figura de Tony Jr., o típico político moderno filho do latifundiário local, Bacurau parecia apostar que quem se beneficiaria da crise econômica e política seria a direita liberal que historicamente cumpre no Brasil a função de ser o lado civilizado da família dos coronéis e senhores de escravos. Como muita gente, Kleber Mendonça não foi capaz de imaginar que, não achando um candidato viável entre o quadro de sócios do Country Club, a elite brasileira optaria por botar o capataz da fazenda na presidência.

Em Bastardos Inglórios, Tarantino inclui uma cena (o assassinato de Hitler) cuja função é lembrar-nos que aquilo é só uma fantasia. A droga que os moradores tomam em Bacurau talvez também deva ser interpretada assim. A catarse é um poderoso psicotrópico e cria um sentimento de comunhão inclusive com gente com quem há pouco em comum: muitos daqueles que se identificaram com Bacurau talvez defendessem em outras oportunidades a necessidade de uma aliança com Tony Jr. Passados os efeitos da droga, porém, continuamos no mesmo lugar. Como sair? É neste ponto que o filme foi mais criticado, a violência dos personagens sendo entendida como um apelo à radicalização num momento em que seria preciso desarmar a polarização política. Mas enquanto a questão se resumir a “é preciso radicalizar ou deve-se dialogar com o centro?”, o problema estará mal colocado.

Primeiro, porque carece de conteúdo concreto. Radicalizar como? Em relação a quê? Dialogar sobre o quê? Em quais bases? Com qual centro? É isto que falta responder. Segundo, porque parece supor que sair da polarização envolveria tirar a média aritmética dos extremos existentes. Mas quando os extremos são o reformismo fraco do PT e a terraplanagem bolsonarista, o meio-termo fatalmente estará bem aquém do necessário. O erro implícito aí é, terceiro, tratar centro e extremos como coordenadas que estão dadas, quando o objetivo da política é justamente transformar as coordenadas –– ou, como entendeu o ideólogo conservador Joseph Overton, fazer com que o centro se desloque em nossa direção. É exatamente isso que a extrema direita tem sabido fazer, e não foi com “bom senso” que eles ocuparam esse lugar.

Quarto, porque supõe que bom senso era o centro do debate político tal como este existia até alguns anos atrás, e que é a este centro que deveríamos voltar, contra extremos irreais. O que este realismo não entende é que as condições materiais e políticas para aquele consenso deixaram de existir: não há retorno possível. O único caminho possível hoje é na direção de redefinir o centro, criar um novo consenso –– e, novamente, foi a extrema direita quem entendeu isso primeiro, mas para propor um projeto que é sustentável apenas para os muito poucos. Por último, o problema é mal posto porque, como a menina Greta Thunberg tem mostrado, diante de questões como o aquecimento global ou o futuro que a extrema direita prepara, não há mais tempo ou espaço para soluções de compromisso: ou diz-se um não definitivo à barbárie, ou não se está dizendo rigorosamente nada. A este não ainda é preciso, sem dúvida, dar a forma concreta de programas, propostas, ações. Mas ou se faz isso ou não se faz nada: fingir que tudo pode continuar como está é a posição menos realista a essa altura.

por Rodrigo Guimarães Nunes


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sexta-feira, 28 de junho de 2019

Brizola, que falta faz ...

Leonel Brizola deixou a vida para entrar para história em 21 de junho de 2004, quinze anos atrás. Seu nome é o sino de bronze da luta anti-imperialista que a partir do Brasil abalou o século anterior – o punho erguido de uma Pátria que diz para História: “eis-me aqui”.

Nascido em 22 de janeiro de 1922 em uma família de pobres camponeses em Cruzinha, distrito de Carazinho no Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola era o caçula de uma tradição guerreira. Seu pai, José Brizola lutou ao lado do caudilho Leonel Rocha nos conflitos entre maragatos e chimangos que ensoparam a campanha gaúcha com o sangue da peonada. Ao regressar da guerra, José foi sequestrado e assassinado por soldados inimigos em ato criminoso, praticado depois da assinatura do tratado de paz. Conta Moniz Bandeira que o filho mais jovem de José ganhou seu nome quando, aos dois anos de idade, brandindo uma espada de madeira, disse “eu sou Leonel Rocha!”

Com muita dificuldade, Brizola ingressa em um curso de engenharia em Porto Alegre, trabalhando para se manter na capital gaúcha. É no ocaso do Estado Novo que inicia sua atuação política, no meio da campanha do queremismo, quando Brizola se vê requisitado por vários dos nascentes partidos. Na época ainda sem uma clara definição política, Brizola conta que simpatizava com Getúlio Vargas e Luís Carlos Prestes. Mas não conseguiu se identificar com a petulância dos militantes do PCB, que em suas palavras se “achavam os donos da verdade” e eram extremamente sectários. Igualmente, o PSD, organizado pelos interventores do Estado Novo e representante dos interesses da oligarquia rural e urbana, não o atraiu devido a seu “instinto de classe”.

Na estrutura do PSD, criou-se um Departamento Trabalhista, que deveria acomodar o movimento sindical. No entanto, com aval do ministro do Trabalho Marcondes Filho e do próprio Vargas, os sindicalistas se rebelaram contra essa tentativa e fundaram seu próprio partido, o PTB. Com o PTB em oposição ao governo Dutra do PSD, Brizola a duras penas organizou o partido no Rio Grande do Sul, chegando a conciliar um mandato como deputado estadual com os estudos em engenharia.

O suicídio de Vargas é o episódio-chave na formação de Brizola. O líder trabalhista dizia que seu norte político era a Carta-Testamento de Getúlio, denunciando o íntima ligação da penúria do povo brasileiro com a espoliação internacional do país.

Como governador do Rio Grande do Sul, Brizola enfrentou os monopólio norte-americano da Bond & Share, que controlava o fornecimento de energia elétrica em seu estado. A transnacional se recusava a fazer a expansão que a rede elétrica, imprescindível para o desenvolvimento do estado. Brizola então encampou o serviço público, pagando um cruzeiro pela empresa – valor que correspondia exatamente ao seu valor uma vez computado seu passivo. Também enfrentou a toda poderosa ITT na luta infraestrutura gaúcha, empresa notória por seu patrocínio ao golpe no Chile em 1973. Devido a esses episódios, ficou conhecido “Castro brasileiro” pela mídia estadunidense, atemorizada pela possibilidade do levante de um titã como o Brasil em seu hemisfério.

Ainda como governador, Brizola protagonizou a Campanha da Legalidade em 1961, quando alguns militares tentaram impedir a posse de João Goulart, que se encontrava em missão oficial a China quando Jânio Quadros renuncia. Por meio de apaixonadas transmissões pela Rádio Guaíba, organiza o povo gaúcho, inclusive com a distribuição de armas no que foi a maior e mais intensa mobilização popular da história brasileira. Assim, o povo organizado debela o golpe que se desenhava, embora o Congresso aprove uma emenda instituindo o parlamentarismo, somente para esvaziar a presidência de seus poderes.

Brizola fica até o final de seu mandato em 1963 como governador em vez de se candidatar para algum cargo pelo Rio Grande do Sul, como senador ou deputado federal. Se se candidatasse, seria obrigado a renunciar para se descompatibilizar, como mandava a legislação da época. Permaneceu no cargo para oferecer sustentação ao governo Goulart e à campanha para voltar ao presidencialismo. A organização popular mais uma vez rende frutos e o Congresso Nacional se vê forçado a convocar um plebiscito em janeiro de 1963 a respeito da emenda do parlamentarismo, prontamente derrotada. Neste mesmo ano, Brizola é eleito deputado federal pelo estado da Guanabara – seu último mandato antes do golpe de 1964.

No segundo semestre de 1963, os Estados Unidos apertam o cerco imperialista ao Brasil. O presidente Kennedy restringe o acesso do Brasil a linhas de crédito e adotas outras medidas agressivas para obrigar o país a derrubar a Lei de Remessa de Lucros – projeto de lei do próprio Vargas promulgado por Goulart. Mas a balança de pagamentos brasileira naquela época estava extremamente comprometida pela escassez de dólares, principalmente pela remessa de lucros, que consumia as divisas estrangeiras em posse do Brasil. Por essa razão, o fantasma da inflação assolava o país. Goulart via-se entre a cruz e a espada: ou lutava pelo Brasil ou capitulava para os estadunidenses. Sua opção marca a história brasileira.

Progressivamente isolado ao longo dos primeiros meses de 64 – principalmente depois de propor e em seguida retirar um pedido de estado de sítio em função de uma entrevista de Lacerda para um jornal norte-americano – Goulart faz o famoso comício da Central do Brasil em março daquele ano. O discurso precipita a ala conservadora das Forças Armadas e das montanhas das Minas Gerais desce a tropa de Olympio Mourão Filho para tomar o Rio de Janeiro e depor o governo democrático e popular dos trabalhistas.

Brizola permanece no Rio Grande do Sul para assegurar a posse do general Ladário Pereira Teles como comandante do III Exército. Quando o Presidente da República chega ao estado sulista depois de uma passagem infrutífera por Brasília, o general chega a oferecer o Exército para a defesa do país e da constituição. Não querendo manchar o Brasil com o sangue de tantos filhos em uma luta quase sem chances de vitória, Goulart declina a oferta. Ele e Brizola então fogem para o Uruguai. No exílio, as articulações de resistência de Goulart e Brizola acabam fracassando e os dois ficam por anos sem se falar.

Temido pelas forças antinacionais que haviam se apossado do país em 1964, Brizola ficou 15 anos exilado, um dos maiores períodos de afastamento compulsório registrados. Com o início da abertura “lenta, gradual e segura” do Regime Militar em 1979, os trabalhistas no exílio e no Brasil se encontram em Lisboa, onde assinam uma Carta objetivando a reconstrução do PTB.

Mesmo após tantos anos de exílio, a ditadura não deu trégua a Brizola – o regime moribundo fez de tudo para obstaculizar a campanha de Brizola ao governo do Rio de Janeiro em 1982. Golbery em conluio com o TSE entrega a sigla PTB para Ivete Vargas, somente para atrapalhar a reorganização dos trabalhistas. Aos prantos na Associação Brasileira dos Jornalistas, Brizola rasga um pedaço de papel escrito PTB e rascunha em outro a nova sigla para o velho partido, herdeiro da tradição patriótica de Vargas: PDT.

Ainda na campanha de 1982, Brizola enfrenta a Globo no famoso escândalo da Proconsult, quando a emissora foi cúmplice de uma tentativa de fraude eleitoral para entregar o governo do Rio de Janeiro para Moreira Franco. Os mandatos de Brizola como governador do Rio de Janeiro serão marcados por um forte cunho popular. Junto com Darcy Ribeiro, promove uma revolução na educação do estado com os CIEPs, até hoje referência em política educacional no Terceiro Mundo. Como governador, Brizola teria um papel destacada na campanha pelas Diretas Já em 1984.

A relação com entre o PT e o PDT foi de distância desde as primeiras tentativas de aproximação ainda em 1979. Orientados pelo uspianismo que condenava a tradição varguista e por uma visão pós-moderna da classe trabalhadora, as lideranças do Novo Sindicalismo jamais se aproximaram dos trabalhistas. Mesmo assim, num gesto de grandeza patriótica, Brizola apoia Lula no segundo turno das eleições de 1989, para tentar evitar o desastre que seria o governo Collor – gesto que o próprio Lula foi incapaz de repetir 29 anos depois em 2018, quando sacrificou o país sabotando a campanha de Ciro Gomes para manter a hegemonia petista sobre a esquerda.

O veterano Brizola ainda disputou eleições presidenciais ao longo dos anos 90, depois de um segundo mandato como governador do Rio de Janeiro, sempre condenando o neoliberalismo. Na última eleição, apoiou Ciro Gomes e ao longo do primeiro mandato de Lula, denunciou o caráter neoliberal da gestão petista. Faleceu em 2004, deixando, junto de Vargas, o legado do patriotismo popular brasileiro.

Em todas as suas falas, Brizola denunciava a contradição central do Brasil, que determina o país como um todo: a dependência. Assim como está escrito na Carta-Testamento de Getúlio Vargas, a condição de precariedade do povo brasileiro não pode ser separada da espoliação pelos monopólios internacionais. Brizola era herdeiro da luta de Vargas pela siderurgia em Volta Redonda, a criação da Vale, da Eletrobras, da Petrobras, da Justiça do Trabalho e a estrutura sindical que permitiria a organização de nosso povo.

Em uma fala na UNE em 1961, Brizola disse que “se nada temos com a União Soviética, devemos ter coragem de dizer que nada temos com os Estados Unidos”. O então governador do Rio Grande do Sul se posiciona contra a importação de modelos estrangeiros para o país, tanto a esquerda como a direita. Buscava uma solução brasileira para os problemas brasileiros – ainda que tal solução não prescindisse de um socialismo, mas um socialismo com caráter brasileiro. Neste mesmo discurso, mesmo dizendo que não era inimigo dos Estados Unidos, não deixou de reconhecer que as reformas que o Brasil tanto necessitava obrigatoriamente implicaria em uma modificação nas relações com os EUA.

Ao longo de sua vida, Brizola fez jus a seu sangue guerreiro. Até seu último suspiro, batalhou contra o caráter colonial do Brasil e lutou por sua emancipação. Deixará em todos os brasileiros a eterna dúvida do que poderia ter sido o país se o herdeiro de Vargas tivesse chegado à presidência. Chegou a colocar medo nas grandes corporações estadunidenses, que sabem a ameaça estratégica que o Brasil representa como uma superpotência no hemisfério ocidental. Brizola foi o punho erguido do Brasil ameaçando o domínio dos EUA sobre as Américas.

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quarta-feira, 12 de junho de 2019

70 Anos de Mil novecentos e oitenta e quatro

Embora seja um long-seller continuamente republicado, recentemente as vendas de Mil novecentos e oitenta e quatro - intitulado assim no original, embora geralmente citado em números -, a distopia de Orwell publicada pela primeira vez há 70 anos, dispararam nos Estados Unidos, onde, segundo o The New York Times, a editora Penguin enviou várias centenas de milhares de exemplares pouco depois de Kellyanne Conway, conselheira do Gabinete do presidente Donald Trump, ter repreendido a imprensa por insistir que a Administração reconhecesse que o número de participantes da cerimônia de posse de Trump era uma informação falsa que sua equipe tinha feito circular. Afinal, disse Conway, não se tratava nem de uma mentira nem de um erro, mas do que definiu como “fatos alternativos”. Ao ouvir suas palavras, muitos cidadãos relembraram algumas previsões do romance de Orwell: a “novilíngua”, um vocabulário sintético e reduzido, cuja pobreza visa também reduzir a capacidade de pensar; e o “Ministério da Verdade”, no qual funcionários no livro se aplicam a corrigir os testemunhos do passado recente e a reescrever a história para que ela se encaixe perfeitamente no discurso oficial. Ou seja, o que muitos viram em Conway era uma implantação sem complexos da mentira institucionalizada, presente em maior ou menor medida não só em Trump, mas em geral nos discursos da política, do comércio, da religião... do jornalismo...

Caminhamos mansamente em direção a uma sociedade de vigilância em massa na qual a informação é manipulada para manter as pessoas sob controle, como o romance reflete? Orwell imaginou um mundo pós-revolucionário onde tudo o que aconteceu antes da Revolução fundadora de1984 (valores humanísticos, formas de relacionamento, debate público, liberdade de expressão, cultura...) foi abolido e esquecido. A nova sociedade materialista que o romance descreve é dividida em três classes: os membros do partido, os “proles” e os “escravos”. O aparato de repressão, onipotente e implacável, vigia cada movimento dos súditos por meio de um sistema de telas instaladas no espaço público e no doméstico. Não existe privacidade. O poder é encarnado em um tirano inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o slogan “O Grande Irmão zela por ti”.

Em uma Londres sinistra, o protagonista, Winston Smith, modesto mas inquieto funcionário do departamento de História do Ministério da Verdade, conhece Julia, empregada do departamento de Ficção do mesmo ministério. Ela opera uma “máquina de escrever romances”: histórias com argumentos simples e personagens estereotipados, semelhantes àquelas que em nosso mundo real hoje são escritas por computadores que usam inteligência artificial. Winston e Julia se apaixonam e tentam se juntar a uma fantasmagórica organização clandestina de dissidentes que, no fundo, sabem estar condenada ao fracasso, porque o poder é invencível. Essa tensão entre o poder esmagador, por um lado, e, por outro, o amor e a liberdade, é a substância do romance.

Deixando de lado notáveis exceções, como o controle exercido pelo Governo chinês sobre sua população e satrapias várias, o onipresente Estado policial todo-poderoso e controlador que Orwell fabulou... não existe. Paradoxalmente, um dos maiores problemas em grande parte do mundo é a fraqueza ou a falência dos Estados. Mas os monopólios todo-poderosos da tecnologia, com seu controle da verdade e sua avidez vampírica por informação, podem ser um substituto plausível para esse Estado fictício. Nesse sentido, também na realidade, O Grande Irmão está te vigiando e te espionando – sim, com uma interface agradável e com a aquiescência e a entusiástica cooperação da massa – por meio das telas, do telefone celular que cada um carrega no bolso, do indelével rastro digital deixado por cada usuário.

Na sociedade ocidental de hoje, o sexo tampouco é reprimido e severamente controlado como em 1984, mas encorajado e exposto. E, no entanto, sua prática na juventude é substancialmente atrasada e reduzida, de acordo com estatísticas oficiais de uma dezena de países do primeiro mundo citadas pela revista cultural norte-americana The Atlantic. Essa demora pode ser a primeira indicação da recessão sexual, sinal de “uma retirada mais ampla da intimidade física que se estende até a entrada na maturidade”. (As causas dessa queda da libido podem ser pressões econômicas, ansiedade, fragilidade psicológica, uso generalizado de antidepressivos, televisão em streaming, estrógenos dispersados pelo plástico no meio ambiente, smartphones, falta de sono, obesidade, excesso de informação... ou o que ocorrer a qualquer analista).

No inferno cartografado por Orwell em seu livro, escrito no pós-guerra, a miséria é generalizada, as pessoas caminham cabisbaixas e tolhidas, os bens de consumo são escassos, a aparência das coisas é cinza, o trabalho é embrutecedor e os horários abusivos. Hoje o mundo real não é assim, pensam os membros do partido. Mas proles e os escravos certamente reconhecem essas paisagens.

Em um dos mais famosos, tétricos e patéticos cenários de 1984, os chamados “dois minutos de ódio”, as massas se reúnem diante de uma grande tela para vaiar e execrar o inimigo em um paroxismo demente. Ao lê-lo, é inevitável lembrar das redes sociais, onde hoje qualquer um que coloque o focinho fora do bando se expõe a ser linchado virtualmente.

Outros artefatos e termos usados para descrever o mundo de 1984 foram incorporados à paisagem e à linguagem comum. Orwell concebeu suas profecias como uma admoestação, uma advertência contra um futuro totalitário, seja soviético, seja fascista, e contra o cultivo sistemático da mentira que observou pela primeira vez na Espanha, em Barcelona, durante a Guerra Civil, que lhe deixou surpreso e pensativo ao constatar “com que facilidade a propaganda totalitária pode controlar a opinião das pessoas cultas nos países democráticos”.

O estilo de Orwell é direto e tem uma formidável capacidade de criar empatia com o leitor, que ao lê-lo ouve a voz de um personagem simpático, honesto, próximo, bom. Essa proximidade, é claro, é uma grande virtude literária. Como Camus, escrevia impulsionado por uma obrigação moral. Tinha que expiar seu trabalho como oficial de polícia do império na Birmânia, onde passou cinco anos depois de ter estudado em Eton, e de onde voltou com uma forte consciência política anti-imperialista.

Escreveu com o máximo verismo reportagens sobre os londrinos pobres e se reduziu voluntariamente à condição de vagabundo. Frequentou mendigos em pé de igualdade por um longo tempo. Daí surgiu seu primeiro livro, Na Pior em Paris e em Londres.

Com o mesmo espírito de coerência e sacrifício, quando Franco se levantou contra a República espanhola foi para Barcelona e imediatamente se apresentou como voluntário para lutar na frente. Desta aventura ficou o testemunho de sua Homenagem à Catalunha e o rastro de uma experiência e conhecimentos sobre a lógica do totalitarismo que se refletiria em sua famosa fábula Revolução dos Bichos, e que cristalizou em 1984.

Este romance foi seu legado: ele o escreveu tendo em mente Nós, de Yevgeny Zamyatin, com muito trabalho, dúvidas e correções em uma ilha escocesa ventosa e fria, onde se retirou com esse objetivo, logo depois de ter ficado viúvo de uma esposa muito querida, sozinho, doente de tuberculose – na época muitas vezes letal –, como um longo testamento político. De fato, morreu no ano seguinte à publicação.

O escritor britânico John Lanchester aponta que o mundo de hoje é mais parecido com a distopia daquele que foi professor de Orwell, Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo (1932). Esse livro descreve uma sociedade marcada pela ciência e pela tecnologia e entregue a uma “narcotizante promiscuidade sexual”, tranquilizada pelo prazer e pelas drogas (o soma milagroso) e imersa em uma infantilização geral; e coerentemente com isso, narrado em um tom mais leve do que 1984. Para entender o presente, Lanchester propõe uma síntese entre Admirável Mundo Novo e 1984.

Nessa síntese talvez se devam incluir algumas das tendências e inovações que inundam o nosso mundo. Como as chamadas “capacidades aumentadas”– drogas, próteses, implantes cerebrais–, os novos órgãos obtidos com impressoras 3D; os robôs que controlam nossas casas, aprendem e transmitem nossos dados; a realidade virtual que entretém e anestesia...

Orwell não se estendeu em descrições de novas tecnologias e máquinas: colocou o foco em um estado mental e social. É por isso que seus augúrios conectam com os leitores. Como Dorian Lynskey afirma em uma recente biografia de Orwell – In the Shadow of Big Brother (Na Sombra do Big Brother) –, o britânico “estava muito mais interessado na psicologia do que nos sistemas”. Aí reside a chave do poder e dos mecanismos de controle da massa através da mentira e do medo. Isso dificilmente muda.

por

El País