Leonel Brizola deixou a vida para entrar para
história em 21 de junho de 2004, quinze anos atrás. Seu nome é o sino de
bronze da luta anti-imperialista que a partir do Brasil abalou o século
anterior – o punho erguido de uma Pátria que diz para História: “eis-me
aqui”.
Nascido em 22 de janeiro de 1922 em uma família de pobres camponeses
em Cruzinha, distrito de Carazinho no Rio Grande do Sul, Leonel de Moura
Brizola era o caçula de uma tradição guerreira. Seu pai, José Brizola
lutou ao lado do caudilho Leonel Rocha nos conflitos entre maragatos e
chimangos que ensoparam a campanha gaúcha com o sangue da peonada. Ao
regressar da guerra, José foi sequestrado e assassinado por soldados
inimigos em ato criminoso, praticado depois da assinatura do tratado de
paz. Conta Moniz Bandeira que o filho mais jovem de José ganhou seu nome
quando, aos dois anos de idade, brandindo uma espada de madeira, disse
“eu sou Leonel Rocha!”
Com muita dificuldade, Brizola ingressa em um curso de engenharia em
Porto Alegre, trabalhando para se manter na capital gaúcha. É no ocaso
do Estado Novo que inicia sua atuação política, no meio da campanha do
queremismo, quando Brizola se vê requisitado por vários dos nascentes
partidos. Na época ainda sem uma clara definição política, Brizola conta
que simpatizava com Getúlio Vargas e Luís Carlos Prestes. Mas não
conseguiu se identificar com a petulância dos militantes do PCB, que em
suas palavras se “achavam os donos da verdade” e eram extremamente
sectários. Igualmente, o PSD, organizado pelos interventores do Estado
Novo e representante dos interesses da oligarquia rural e urbana, não o
atraiu devido a seu “instinto de classe”.
Na estrutura do PSD, criou-se um Departamento Trabalhista, que
deveria acomodar o movimento sindical. No entanto, com aval do ministro
do Trabalho Marcondes Filho e do próprio Vargas, os sindicalistas se
rebelaram contra essa tentativa e fundaram seu próprio partido, o PTB.
Com o PTB em oposição ao governo Dutra do PSD, Brizola a duras penas
organizou o partido no Rio Grande do Sul, chegando a conciliar um
mandato como deputado estadual com os estudos em engenharia.
O suicídio de Vargas é o episódio-chave na formação de Brizola. O
líder trabalhista dizia que seu norte político era a Carta-Testamento de
Getúlio, denunciando o íntima ligação da penúria do povo brasileiro com
a espoliação internacional do país.
Como governador do Rio Grande do Sul, Brizola enfrentou os monopólio
norte-americano da Bond & Share, que controlava o fornecimento de
energia elétrica em seu estado. A transnacional se recusava a fazer a
expansão que a rede elétrica, imprescindível para o desenvolvimento do
estado. Brizola então encampou o serviço público, pagando um cruzeiro
pela empresa – valor que correspondia exatamente ao seu valor uma vez
computado seu passivo. Também enfrentou a toda poderosa ITT na luta
infraestrutura gaúcha, empresa notória por seu patrocínio ao golpe no
Chile em 1973. Devido a esses episódios, ficou conhecido “Castro
brasileiro” pela mídia estadunidense, atemorizada pela possibilidade do
levante de um titã como o Brasil em seu hemisfério.
Ainda como governador, Brizola protagonizou a Campanha da Legalidade
em 1961, quando alguns militares tentaram impedir a posse de João
Goulart, que se encontrava em missão oficial a China quando Jânio
Quadros renuncia. Por meio de apaixonadas transmissões pela Rádio
Guaíba, organiza o povo gaúcho, inclusive com a distribuição de armas no
que foi a maior e mais intensa mobilização popular da história
brasileira. Assim, o povo organizado debela o golpe que se desenhava,
embora o Congresso aprove uma emenda instituindo o parlamentarismo,
somente para esvaziar a presidência de seus poderes.
Brizola fica até o final de seu mandato em 1963 como governador em
vez de se candidatar para algum cargo pelo Rio Grande do Sul, como
senador ou deputado federal. Se se candidatasse, seria obrigado a
renunciar para se descompatibilizar, como mandava a legislação da época.
Permaneceu no cargo para oferecer sustentação ao governo Goulart e à
campanha para voltar ao presidencialismo. A organização popular mais uma
vez rende frutos e o Congresso Nacional se vê forçado a convocar um
plebiscito em janeiro de 1963 a respeito da emenda do parlamentarismo,
prontamente derrotada. Neste mesmo ano, Brizola é eleito deputado
federal pelo estado da Guanabara – seu último mandato antes do golpe de
1964.
No segundo semestre de 1963, os Estados Unidos apertam o cerco
imperialista ao Brasil. O presidente Kennedy restringe o acesso do
Brasil a linhas de crédito e adotas outras medidas agressivas para
obrigar o país a derrubar a Lei de Remessa de Lucros – projeto de lei do
próprio Vargas promulgado por Goulart. Mas a balança de pagamentos
brasileira naquela época estava extremamente comprometida pela escassez
de dólares, principalmente pela remessa de lucros, que consumia as
divisas estrangeiras em posse do Brasil. Por essa razão, o fantasma da
inflação assolava o país. Goulart via-se entre a cruz e a espada: ou
lutava pelo Brasil ou capitulava para os estadunidenses. Sua opção marca
a história brasileira.
Progressivamente isolado ao longo dos primeiros meses de 64 –
principalmente depois de propor e em seguida retirar um pedido de estado
de sítio em função de uma entrevista de Lacerda para um jornal
norte-americano – Goulart faz o famoso comício da Central do Brasil em
março daquele ano. O discurso precipita a ala conservadora das Forças
Armadas e das montanhas das Minas Gerais desce a tropa de Olympio Mourão
Filho para tomar o Rio de Janeiro e depor o governo democrático e
popular dos trabalhistas.
Brizola permanece no Rio Grande do Sul para assegurar a posse do
general Ladário Pereira Teles como comandante do III Exército. Quando o
Presidente da República chega ao estado sulista depois de uma passagem
infrutífera por Brasília, o general chega a oferecer o Exército para a
defesa do país e da constituição. Não querendo manchar o Brasil com o
sangue de tantos filhos em uma luta quase sem chances de vitória,
Goulart declina a oferta. Ele e Brizola então fogem para o Uruguai. No
exílio, as articulações de resistência de Goulart e Brizola acabam
fracassando e os dois ficam por anos sem se falar.
Temido pelas forças antinacionais que haviam se apossado do país em
1964, Brizola ficou 15 anos exilado, um dos maiores períodos de
afastamento compulsório registrados. Com o início da abertura “lenta,
gradual e segura” do Regime Militar em 1979, os trabalhistas no exílio e
no Brasil se encontram em Lisboa, onde assinam uma Carta objetivando a
reconstrução do PTB.
Mesmo após tantos anos de exílio, a ditadura não deu trégua a Brizola
– o regime moribundo fez de tudo para obstaculizar a campanha de
Brizola ao governo do Rio de Janeiro em 1982. Golbery em conluio com o
TSE entrega a sigla PTB para Ivete Vargas, somente para atrapalhar a
reorganização dos trabalhistas. Aos prantos na Associação Brasileira dos
Jornalistas, Brizola rasga um pedaço de papel escrito PTB e rascunha em
outro a nova sigla para o velho partido, herdeiro da tradição
patriótica de Vargas: PDT.
Ainda na campanha de 1982, Brizola enfrenta a Globo no famoso
escândalo da Proconsult, quando a emissora foi cúmplice de uma tentativa
de fraude eleitoral para entregar o governo do Rio de Janeiro para
Moreira Franco. Os mandatos de Brizola como governador do Rio de Janeiro
serão marcados por um forte cunho popular. Junto com Darcy Ribeiro,
promove uma revolução na educação do estado com os CIEPs, até hoje
referência em política educacional no Terceiro Mundo. Como governador,
Brizola teria um papel destacada na campanha pelas Diretas Já em 1984.
A relação com entre o PT e o PDT foi de distância desde as primeiras
tentativas de aproximação ainda em 1979. Orientados pelo uspianismo que
condenava a tradição varguista e por uma visão pós-moderna da classe
trabalhadora, as lideranças do Novo Sindicalismo jamais se aproximaram
dos trabalhistas. Mesmo assim, num gesto de grandeza patriótica, Brizola
apoia Lula no segundo turno das eleições de 1989, para tentar evitar o
desastre que seria o governo Collor – gesto que o próprio Lula foi
incapaz de repetir 29 anos depois em 2018, quando sacrificou o país
sabotando a campanha de Ciro Gomes para manter a hegemonia petista sobre
a esquerda.
O veterano Brizola ainda disputou eleições presidenciais ao longo dos
anos 90, depois de um segundo mandato como governador do Rio de
Janeiro, sempre condenando o neoliberalismo. Na última eleição, apoiou
Ciro Gomes e ao longo do primeiro mandato de Lula, denunciou o caráter
neoliberal da gestão petista. Faleceu em 2004, deixando, junto de
Vargas, o legado do patriotismo popular brasileiro.
Em todas as suas falas, Brizola denunciava a contradição central do
Brasil, que determina o país como um todo: a dependência. Assim como
está escrito na Carta-Testamento de Getúlio Vargas, a condição de
precariedade do povo brasileiro não pode ser separada da espoliação
pelos monopólios internacionais. Brizola era herdeiro da luta de Vargas
pela siderurgia em Volta Redonda, a criação da Vale, da Eletrobras, da
Petrobras, da Justiça do Trabalho e a estrutura sindical que permitiria a
organização de nosso povo.
Em uma fala na UNE em 1961, Brizola disse que “se nada temos com a
União Soviética, devemos ter coragem de dizer que nada temos com os
Estados Unidos”. O então governador do Rio Grande do Sul se posiciona
contra a importação de modelos estrangeiros para o país, tanto a
esquerda como a direita. Buscava uma solução brasileira para os
problemas brasileiros – ainda que tal solução não prescindisse de um
socialismo, mas um socialismo com caráter brasileiro. Neste mesmo
discurso, mesmo dizendo que não era inimigo dos Estados Unidos, não
deixou de reconhecer que as reformas que o Brasil tanto necessitava
obrigatoriamente implicaria em uma modificação nas relações com os EUA.
Ao longo de sua vida, Brizola fez jus a seu sangue guerreiro. Até seu
último suspiro, batalhou contra o caráter colonial do Brasil e lutou
por sua emancipação. Deixará em todos os brasileiros a eterna dúvida do
que poderia ter sido o país se o herdeiro de Vargas tivesse chegado à
presidência. Chegou a colocar medo nas grandes corporações
estadunidenses, que sabem a ameaça estratégica que o Brasil representa
como uma superpotência no hemisfério ocidental. Brizola foi o punho
erguido do Brasil ameaçando o domínio dos EUA sobre as Américas.
por
sexta-feira, 28 de junho de 2019
quarta-feira, 12 de junho de 2019
70 Anos de Mil novecentos e oitenta e quatro
Embora seja um long-seller continuamente republicado, recentemente as vendas de Mil novecentos e oitenta e quatro - intitulado assim no original, embora geralmente citado em números -, a distopia de Orwell publicada pela primeira vez há 70 anos, dispararam nos Estados Unidos, onde, segundo o The New York Times,
a editora Penguin enviou várias centenas de milhares de exemplares
pouco depois de Kellyanne Conway, conselheira do Gabinete do presidente Donald Trump,
ter repreendido a imprensa por insistir que a Administração
reconhecesse que o número de participantes da cerimônia de posse de
Trump era uma informação falsa que sua equipe tinha feito circular.
Afinal, disse Conway, não se tratava nem de uma mentira nem de um erro,
mas do que definiu como “fatos alternativos”. Ao ouvir suas palavras,
muitos cidadãos relembraram algumas previsões do romance de Orwell: a
“novilíngua”, um vocabulário sintético e reduzido, cuja pobreza visa
também reduzir a capacidade de pensar; e o “Ministério da Verdade”, no
qual funcionários no livro se aplicam a corrigir os testemunhos do
passado recente e a reescrever a história para que ela se encaixe
perfeitamente no discurso oficial. Ou seja, o que muitos viram em Conway
era uma implantação sem complexos da mentira institucionalizada,
presente em maior ou menor medida não só em Trump, mas em geral nos
discursos da política, do comércio, da religião... do jornalismo...
Caminhamos mansamente em direção a uma sociedade de vigilância em massa na qual a informação é manipulada para manter as pessoas sob controle, como o romance reflete? Orwell imaginou um mundo pós-revolucionário onde tudo o que aconteceu antes da Revolução fundadora de1984 (valores humanísticos, formas de relacionamento, debate público, liberdade de expressão, cultura...) foi abolido e esquecido. A nova sociedade materialista que o romance descreve é dividida em três classes: os membros do partido, os “proles” e os “escravos”. O aparato de repressão, onipotente e implacável, vigia cada movimento dos súditos por meio de um sistema de telas instaladas no espaço público e no doméstico. Não existe privacidade. O poder é encarnado em um tirano inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o slogan “O Grande Irmão zela por ti”.
Em uma Londres sinistra, o protagonista, Winston Smith, modesto mas inquieto funcionário do departamento de História do Ministério da Verdade, conhece Julia, empregada do departamento de Ficção do mesmo ministério. Ela opera uma “máquina de escrever romances”: histórias com argumentos simples e personagens estereotipados, semelhantes àquelas que em nosso mundo real hoje são escritas por computadores que usam inteligência artificial. Winston e Julia se apaixonam e tentam se juntar a uma fantasmagórica organização clandestina de dissidentes que, no fundo, sabem estar condenada ao fracasso, porque o poder é invencível. Essa tensão entre o poder esmagador, por um lado, e, por outro, o amor e a liberdade, é a substância do romance.
Deixando de lado notáveis exceções, como o controle exercido pelo Governo chinês sobre sua população e satrapias várias, o onipresente Estado policial todo-poderoso e controlador que Orwell fabulou... não existe. Paradoxalmente, um dos maiores problemas em grande parte do mundo é a fraqueza ou a falência dos Estados. Mas os monopólios todo-poderosos da tecnologia, com seu controle da verdade e sua avidez vampírica por informação, podem ser um substituto plausível para esse Estado fictício. Nesse sentido, também na realidade, O Grande Irmão está te vigiando e te espionando – sim, com uma interface agradável e com a aquiescência e a entusiástica cooperação da massa – por meio das telas, do telefone celular que cada um carrega no bolso, do indelével rastro digital deixado por cada usuário.
Na sociedade ocidental de hoje, o sexo tampouco é reprimido e severamente controlado como em 1984, mas encorajado e exposto. E, no entanto, sua prática na juventude é substancialmente atrasada e reduzida, de acordo com estatísticas oficiais de uma dezena de países do primeiro mundo citadas pela revista cultural norte-americana The Atlantic. Essa demora pode ser a primeira indicação da recessão sexual, sinal de “uma retirada mais ampla da intimidade física que se estende até a entrada na maturidade”. (As causas dessa queda da libido podem ser pressões econômicas, ansiedade, fragilidade psicológica, uso generalizado de antidepressivos, televisão em streaming, estrógenos dispersados pelo plástico no meio ambiente, smartphones, falta de sono, obesidade, excesso de informação... ou o que ocorrer a qualquer analista).
No inferno cartografado por Orwell em seu livro, escrito no pós-guerra, a miséria é generalizada, as pessoas caminham cabisbaixas e tolhidas, os bens de consumo são escassos, a aparência das coisas é cinza, o trabalho é embrutecedor e os horários abusivos. Hoje o mundo real não é assim, pensam os membros do partido. Mas proles e os escravos certamente reconhecem essas paisagens.
Em um dos mais famosos, tétricos e patéticos cenários de 1984, os chamados “dois minutos de ódio”, as massas se reúnem diante de uma grande tela para vaiar e execrar o inimigo em um paroxismo demente. Ao lê-lo, é inevitável lembrar das redes sociais, onde hoje qualquer um que coloque o focinho fora do bando se expõe a ser linchado virtualmente.
Outros artefatos e termos usados para descrever o mundo de 1984 foram incorporados à paisagem e à linguagem comum. Orwell concebeu suas profecias como uma admoestação, uma advertência contra um futuro totalitário, seja soviético, seja fascista, e contra o cultivo sistemático da mentira que observou pela primeira vez na Espanha, em Barcelona, durante a Guerra Civil, que lhe deixou surpreso e pensativo ao constatar “com que facilidade a propaganda totalitária pode controlar a opinião das pessoas cultas nos países democráticos”.
O estilo de Orwell é direto e tem uma formidável capacidade de criar empatia com o leitor, que ao lê-lo ouve a voz de um personagem simpático, honesto, próximo, bom. Essa proximidade, é claro, é uma grande virtude literária. Como Camus, escrevia impulsionado por uma obrigação moral. Tinha que expiar seu trabalho como oficial de polícia do império na Birmânia, onde passou cinco anos depois de ter estudado em Eton, e de onde voltou com uma forte consciência política anti-imperialista.
Escreveu com o máximo verismo reportagens sobre os londrinos pobres e se reduziu voluntariamente à condição de vagabundo. Frequentou mendigos em pé de igualdade por um longo tempo. Daí surgiu seu primeiro livro, Na Pior em Paris e em Londres.
Com o mesmo espírito de coerência e sacrifício, quando Franco se levantou contra a República espanhola foi para Barcelona e imediatamente se apresentou como voluntário para lutar na frente. Desta aventura ficou o testemunho de sua Homenagem à Catalunha e o rastro de uma experiência e conhecimentos sobre a lógica do totalitarismo que se refletiria em sua famosa fábula Revolução dos Bichos, e que cristalizou em 1984.
Este romance foi seu legado: ele o escreveu tendo em mente Nós, de Yevgeny Zamyatin, com muito trabalho, dúvidas e correções em uma ilha escocesa ventosa e fria, onde se retirou com esse objetivo, logo depois de ter ficado viúvo de uma esposa muito querida, sozinho, doente de tuberculose – na época muitas vezes letal –, como um longo testamento político. De fato, morreu no ano seguinte à publicação.
O escritor britânico John Lanchester aponta que o mundo de hoje é mais parecido com a distopia daquele que foi professor de Orwell, Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo (1932). Esse livro descreve uma sociedade marcada pela ciência e pela tecnologia e entregue a uma “narcotizante promiscuidade sexual”, tranquilizada pelo prazer e pelas drogas (o soma milagroso) e imersa em uma infantilização geral; e coerentemente com isso, narrado em um tom mais leve do que 1984. Para entender o presente, Lanchester propõe uma síntese entre Admirável Mundo Novo e 1984.
Nessa síntese talvez se devam incluir algumas das tendências e inovações que inundam o nosso mundo. Como as chamadas “capacidades aumentadas”– drogas, próteses, implantes cerebrais–, os novos órgãos obtidos com impressoras 3D; os robôs que controlam nossas casas, aprendem e transmitem nossos dados; a realidade virtual que entretém e anestesia...
Orwell não se estendeu em descrições de novas tecnologias e máquinas: colocou o foco em um estado mental e social. É por isso que seus augúrios conectam com os leitores. Como Dorian Lynskey afirma em uma recente biografia de Orwell – In the Shadow of Big Brother (Na Sombra do Big Brother) –, o britânico “estava muito mais interessado na psicologia do que nos sistemas”. Aí reside a chave do poder e dos mecanismos de controle da massa através da mentira e do medo. Isso dificilmente muda.
por Ignacio Vidal-Folch
El País
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Caminhamos mansamente em direção a uma sociedade de vigilância em massa na qual a informação é manipulada para manter as pessoas sob controle, como o romance reflete? Orwell imaginou um mundo pós-revolucionário onde tudo o que aconteceu antes da Revolução fundadora de1984 (valores humanísticos, formas de relacionamento, debate público, liberdade de expressão, cultura...) foi abolido e esquecido. A nova sociedade materialista que o romance descreve é dividida em três classes: os membros do partido, os “proles” e os “escravos”. O aparato de repressão, onipotente e implacável, vigia cada movimento dos súditos por meio de um sistema de telas instaladas no espaço público e no doméstico. Não existe privacidade. O poder é encarnado em um tirano inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o slogan “O Grande Irmão zela por ti”.
Em uma Londres sinistra, o protagonista, Winston Smith, modesto mas inquieto funcionário do departamento de História do Ministério da Verdade, conhece Julia, empregada do departamento de Ficção do mesmo ministério. Ela opera uma “máquina de escrever romances”: histórias com argumentos simples e personagens estereotipados, semelhantes àquelas que em nosso mundo real hoje são escritas por computadores que usam inteligência artificial. Winston e Julia se apaixonam e tentam se juntar a uma fantasmagórica organização clandestina de dissidentes que, no fundo, sabem estar condenada ao fracasso, porque o poder é invencível. Essa tensão entre o poder esmagador, por um lado, e, por outro, o amor e a liberdade, é a substância do romance.
Deixando de lado notáveis exceções, como o controle exercido pelo Governo chinês sobre sua população e satrapias várias, o onipresente Estado policial todo-poderoso e controlador que Orwell fabulou... não existe. Paradoxalmente, um dos maiores problemas em grande parte do mundo é a fraqueza ou a falência dos Estados. Mas os monopólios todo-poderosos da tecnologia, com seu controle da verdade e sua avidez vampírica por informação, podem ser um substituto plausível para esse Estado fictício. Nesse sentido, também na realidade, O Grande Irmão está te vigiando e te espionando – sim, com uma interface agradável e com a aquiescência e a entusiástica cooperação da massa – por meio das telas, do telefone celular que cada um carrega no bolso, do indelével rastro digital deixado por cada usuário.
Na sociedade ocidental de hoje, o sexo tampouco é reprimido e severamente controlado como em 1984, mas encorajado e exposto. E, no entanto, sua prática na juventude é substancialmente atrasada e reduzida, de acordo com estatísticas oficiais de uma dezena de países do primeiro mundo citadas pela revista cultural norte-americana The Atlantic. Essa demora pode ser a primeira indicação da recessão sexual, sinal de “uma retirada mais ampla da intimidade física que se estende até a entrada na maturidade”. (As causas dessa queda da libido podem ser pressões econômicas, ansiedade, fragilidade psicológica, uso generalizado de antidepressivos, televisão em streaming, estrógenos dispersados pelo plástico no meio ambiente, smartphones, falta de sono, obesidade, excesso de informação... ou o que ocorrer a qualquer analista).
No inferno cartografado por Orwell em seu livro, escrito no pós-guerra, a miséria é generalizada, as pessoas caminham cabisbaixas e tolhidas, os bens de consumo são escassos, a aparência das coisas é cinza, o trabalho é embrutecedor e os horários abusivos. Hoje o mundo real não é assim, pensam os membros do partido. Mas proles e os escravos certamente reconhecem essas paisagens.
Em um dos mais famosos, tétricos e patéticos cenários de 1984, os chamados “dois minutos de ódio”, as massas se reúnem diante de uma grande tela para vaiar e execrar o inimigo em um paroxismo demente. Ao lê-lo, é inevitável lembrar das redes sociais, onde hoje qualquer um que coloque o focinho fora do bando se expõe a ser linchado virtualmente.
Outros artefatos e termos usados para descrever o mundo de 1984 foram incorporados à paisagem e à linguagem comum. Orwell concebeu suas profecias como uma admoestação, uma advertência contra um futuro totalitário, seja soviético, seja fascista, e contra o cultivo sistemático da mentira que observou pela primeira vez na Espanha, em Barcelona, durante a Guerra Civil, que lhe deixou surpreso e pensativo ao constatar “com que facilidade a propaganda totalitária pode controlar a opinião das pessoas cultas nos países democráticos”.
O estilo de Orwell é direto e tem uma formidável capacidade de criar empatia com o leitor, que ao lê-lo ouve a voz de um personagem simpático, honesto, próximo, bom. Essa proximidade, é claro, é uma grande virtude literária. Como Camus, escrevia impulsionado por uma obrigação moral. Tinha que expiar seu trabalho como oficial de polícia do império na Birmânia, onde passou cinco anos depois de ter estudado em Eton, e de onde voltou com uma forte consciência política anti-imperialista.
Escreveu com o máximo verismo reportagens sobre os londrinos pobres e se reduziu voluntariamente à condição de vagabundo. Frequentou mendigos em pé de igualdade por um longo tempo. Daí surgiu seu primeiro livro, Na Pior em Paris e em Londres.
Com o mesmo espírito de coerência e sacrifício, quando Franco se levantou contra a República espanhola foi para Barcelona e imediatamente se apresentou como voluntário para lutar na frente. Desta aventura ficou o testemunho de sua Homenagem à Catalunha e o rastro de uma experiência e conhecimentos sobre a lógica do totalitarismo que se refletiria em sua famosa fábula Revolução dos Bichos, e que cristalizou em 1984.
Este romance foi seu legado: ele o escreveu tendo em mente Nós, de Yevgeny Zamyatin, com muito trabalho, dúvidas e correções em uma ilha escocesa ventosa e fria, onde se retirou com esse objetivo, logo depois de ter ficado viúvo de uma esposa muito querida, sozinho, doente de tuberculose – na época muitas vezes letal –, como um longo testamento político. De fato, morreu no ano seguinte à publicação.
O escritor britânico John Lanchester aponta que o mundo de hoje é mais parecido com a distopia daquele que foi professor de Orwell, Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo (1932). Esse livro descreve uma sociedade marcada pela ciência e pela tecnologia e entregue a uma “narcotizante promiscuidade sexual”, tranquilizada pelo prazer e pelas drogas (o soma milagroso) e imersa em uma infantilização geral; e coerentemente com isso, narrado em um tom mais leve do que 1984. Para entender o presente, Lanchester propõe uma síntese entre Admirável Mundo Novo e 1984.
Nessa síntese talvez se devam incluir algumas das tendências e inovações que inundam o nosso mundo. Como as chamadas “capacidades aumentadas”– drogas, próteses, implantes cerebrais–, os novos órgãos obtidos com impressoras 3D; os robôs que controlam nossas casas, aprendem e transmitem nossos dados; a realidade virtual que entretém e anestesia...
Orwell não se estendeu em descrições de novas tecnologias e máquinas: colocou o foco em um estado mental e social. É por isso que seus augúrios conectam com os leitores. Como Dorian Lynskey afirma em uma recente biografia de Orwell – In the Shadow of Big Brother (Na Sombra do Big Brother) –, o britânico “estava muito mais interessado na psicologia do que nos sistemas”. Aí reside a chave do poder e dos mecanismos de controle da massa através da mentira e do medo. Isso dificilmente muda.
por Ignacio Vidal-Folch
El País
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