Estréia dia 04 de dezembro, em todo o Brasil ( o que inclui Aracaju, definitivamente), o filme "Atividade Paranormal", um verdadeiro fenômeno de bilheterias mundo afora, que já foi exibido por aqui na última Virada Cinematográfica (leia resenha e crítica alguns posts abaixo). O Programa de rock, em associação com a Playarte, estará oferecendo 10 pares de ingresso para os responsáveis pelas 10 melhores respostas para a pergunta: "Qual é o seu maior pesadelo?". As respostas podem ser postadas, com e-mail para contato, aqui mesmo no blog, ou enviadas para programaderock@hotmail.com. Promoção válida de 24/11/2009 a 04/12/2009.
Boas Sorte a todos !
http://www.atividadeparanormal.com.br/
www.playarte.com.br
ATIVIDADE PARANORMAL
Sinopse: Um casal é perseguido por um espírito demoníaco dentro de sua própria casa. Dispostos a desvendar o mistério que assombra suas noites de sono, eles compram uma câmera e passam a filmar tudo o que acontece. Acabam captando estranhas atividades paranormais que os atormentam e podem ser muito mais perigosas do que imaginam ...
Estréia: 4/12/2009
Gênero: Suspense
Duração: 87 minutos
Classificação: 16 anos
País: EUA
Ano: 2009
Distribuidora: PlayArte
Diretor: Oren Peli
Elenco: Katie Featherston , Micah Sloat
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
NEEEEGROOOO !!!! (Bonitinha mas ordinária)
por Rian " Calango Doido "
Fonte: Spleen & Charutos
O perfume de minha pele sob o sol do meio-dia – evidência inequívoca do sangue e do sêmen negro, estrume fecundo de nossa cultura.
Nos últimos dias, o noticiário local foi assaltado por uma grande surpresa. O pré-conceito racial persiste entre a gente. A médica Ana Flávia Pinto Silva quebrou as correntes que governavam os seus demônios, e abriu nossas narinas, empurrando o sexo do sinhozinho pelas fendas da criada. Sentimos o odor repulsivo da natureza, obrigados a nos reconhecer no fruto indesejado da violência. Somos, sim, filhos bastardos de uma satisfação culpada – A roupa alva da Casa Grande, o couro do chicote, a carne nua e lasciva da negrada no chão escuro da senzala…
Não foi no canavial assombrado pelo silvo da chibata e o banzo choroso dos africanos. Ocorreu em nossos dias, entre prédios gigantescos, em uma Aracaju asfaltada. Ana Flávia – bonitinha, mas ordinária – justificou a atuação de Lucélia Santos na adaptação do clássico de Nelson Rodrigues para o cinema, e, cheia de bestialidade, gritou: Negro! Parecia até que a moça estava sendo currada.
Ficamos todos indignados, mas repetimos a acusação da médica, cuspimos cheios de luxúria, como a personagem de Lucélia Santos, todos os dias. Sob o mito da democracia racial, a maioria da população suporta a pancada.
Recentemente, a ONU apresentou um relatório sobre o desenvolvimento humano no Brasil. Segundo o documento, entre outros dados apresentados, o número absoluto de pobres com renda per capita inferior a R$ 75,00 no ano de 2000 diminuiu em 5 milhões, entre os anos de 1992 e 2001. O número de negros pobres, entretanto, ao contrário da tendência, aumentou em 500 mil.
Alguém já disse que todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Incontestável, o olor desprendido pela realidade continuará a nos incomodar até que a súplica de Castro Alves finalmente adquira algum sentido. “Colombo, fecha a porte de teus mares!”
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
+ 1 Virada Cinematográfica em Aracaju
por Adelvan Kenobi
Fotos: Divulgação
Ocorreu no último sábado, dia 14 de novembro de 2009, mais uma edição da Virada Cinematográfica de Aracaju, no Cinemark do Shopping Jardins. Desta vez foi uma edição temática, “Filmes extremos” – Uma verdadeira “tour de force” de horror - psicológico, escatológico, sugerido e explicito.
Coroada com uma boa presença de publico, a sessão começou com a mais nova e polêmica produção de Lars Von Trier, “Anticristo”. O filme, que segundo o diretor foi feito para expiar uma crise depressiva pela qual passava, é um verdadeiro delírio plástico e conceitual. Começa com uma longa e belíssima cena em câmera lenta onde ficamos a par do acontecimento que se torna o estopim de toda a trama – a morte de uma criança, vítima da negligencia dos pais. Logo de cara já diz a que veio, já que a referida cena, que serve também como prólogo (é dividido em capítulos), não se furta em estampar na telona uma cena de penetração explícita, em câmera lenta – algo inusitado e surpreendentemente belíssimo de se ver, para além do choque (ou apenas surpresa, para os menos carolas) inicial.
A partir daí somos lançados numa espiral de dor e sofrimento, quando o casal tenta superar o trauma com base nos conhecimentos do marido, interpretado por Willem Dafoe. A mulher, que é vivida por uma esquálida Charlotte Gainsbourgh, cai numa depressão profunda e é convencida por seu companheiro a tentar superar a situação sem recorrer a drogas. Seus temores e mágoas são então expostos de maneira crua e direta e confrontados com a racionalidade dos métodos científicos. Num dado momento o marido (que também é psicanalista) resolve que a situação tem que ser encarada em sua raiz e passa a invstigar qual seria seu maior temor, o que os leva a uma cabana isolada no meio da floresta, cabana esta (não por acaso batizada de Éden) que havia sido usada por ela pouco tempo atrás para se isolar com seu filho e tentar terminar uma tese de mestrado. Aos pouco as mágoas e problemas de relação mal resolvidos ou simplesmente "empurrados com a barriga" vão finalmente aflorando e ele se dá conta de que não se conhecem tão bem quanto pensavam. É então atraído para seu mundo de delírios angustiados (“se você olhar demais para o abismo, o abismo passará a olhar para você”, já dizia Nietsche). Metáforas se sucedem em cenas bizarras e não recomendadas a estômagos fracos, estampadas de forma pra lá de explícita na tela. Mas mais bizarro ainda foi o comportamento de certa parcela do público, que parecia não conhecer o significado dessa palavra, a tal da metáfora, e enxergava o que via no filme de forma literal, chegando muitas vezes a cair em gargalhadas diante de cenas especialmente inusitadas. Uma turma de energúmenos sentada atrás de mim, por exemplo, passou todo o tempo de projeção comentando cada frame do filme apontando seus supostos absurdos. Insistiam, por exemplo, que a perna do personagem, presa a uma roda de moinho, numa evidente referência ao peso da relação desgastada, já deveria estar infectada e ele ardendo em febre e portanto incapaz de estar se movimentando, como fazia. Tive vontade de me levantar e perguntar se algum deles era formado em medicina, e caso fosse e confirmasse a veracidade da afirmação, se o mesmo já havia ouvido falar em liberdade artística. Me contive e fiquei apenas resmungando de indignação em minha cadeira, o que por si só começou a incomodar a pessoa que estava ao meu lado, que passou a se incomodar mais com meu incômodo do que com o incômodo da situação em si, numa espécie de efeito dominó.
A sessão seguinte, não sei se por conta de uma chamada à atenção quanto á educação e ao simples fato de que haviam pessoas no recinto que vieram para ver os filmes, sem necessariamente ter que ouvir comentários em voz alta durante toda a projeção, feita pelo produtor Roberto Nunes, foi bem mais tranqüila. O que pode ter acontecido também é que o público se viu de tal modo envolvido pelo clima de suspense e tensão crescente que esqueceu de comer pipoca e falar besteira com a pessoa ao lado. O filme foi “Atividade Paranormal”, um verdadeiro fenômeno de publico mundo afora, ainda inédito nos cinemas brasileiros. Pelo trailer que havia visto na internet não tinha colocado muita fé, mas me surpreendi, e muito, positivamente. O enredo é bem batido, a velha historia de espíritos (ou demônios) assombrando um casal. O namorado resolve instalar uma câmera no quarto para registrar os acontecimentos e, a partir daí, a trama vai se desenrolando de forma brilhante, liberando as assustadoras imagens da assombração a conta-gotas, num timing perfeito. Uma verdadeira aula de edição e desenvolvimento de uma idéia simples, que culmina com um final de tirar o fôlego. Nota 10, nunca mais tinha me divertido tanto numa sessão de suspense e horror – no caso também muito mais psicológico e sugerido, mas nem por isso menos aterrorizante.
O terceiro e último filme exibido na noite foi o clássico “Massacre da Serra Elétrica”, de Tobe Hooper , lançado em 1974. Foi bom ver essa verdadeira pérola do cinema “trash” em tela grande. O publico mais uma vez caiu em gargalhadas, mas desta vez fez sentido, dado o conteúdo sarcástico e carregado de humor negro da película. Eu mesmo lembro de ter rido muito com a cena bizarra do avô da família de canibais tentando reviver os “velhos tempos” e o exagero de gritos da “mocinha” na longa cena de perseguição final.
Ao final de tudo, um farto e delicioso café da manhã.
Que venha a próxima.
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Abaixo, conteúdo extraido do "Press Book" de "Anticristo".
Agradeço a Roberto Nunes por ter me enviado o material.
“Gostaria de convidá-los para uma espiada por trás das cortinas, uma espiada dentro do sombrio mundo da minha imaginação: na natureza dos meus medos, na natureza de Anticristo.”
Lars von Trier
Um casal em luto se isola no ‘Éden’, isolada cabana na floresta, onde esperam se recuperar de uma perda e do casamento em crise. Porém, a natureza assume o curso e as coisas vão de mal a pior...
CONFISSÃO DO DIRETOR:
Há dois anos, sofri de depressão. Foi uma nova experiência para mim. Tudo, sem exceção, parecia sem importância, trivial. Não conseguia trabalhar. Seis meses depois, apenas como um exercício, escrevi um roteiro. Foi um tipo de terapia, mas também uma procura, um teste para ver se eu ainda faria algum filme.
O roteiro foi finalizado e filmado sem muito entusiasmo, feito como se eu estivesse utilizando apenas metade da minha capacidade física e intelectual. O trabalho no roteiro não seguiu o meu modus operandi habitual. Cenas foram acrescentadas sem razão. Imagens foram compostas sem lógica ou função dramática. No geral, elas vieram de sonhos que eu tinha no período, ou sonhos que eu tive anteriormente.
Mais uma vez, o assunto foi a “natureza”, mas de uma forma diferente e mais direta do que antes: de uma maneira mais pessoal.
O filme não contém nenhum código moral específico e apenas possui o que alguns chamariam de “necessidades básicas” de um enredo.
Eu li Strindberg quando eu era jovem. Li com entusiasmo as coisas que ele escreveu antes de ir a Paris e tornar-se um alquimista e durante esse período dele lá... o período depois chamado de “crise infernal” – foi o Anticristo minha “crise infernal”? Minha afinidade com Strindberg?
De qualquer forma, não posso oferecer nenhuma desculpa por Anticristo. Além claro, da minha crença absoluta no filme – o mais importante de toda minha carreira!
Lars von Trier, Copenhagen, 25/03/09.
SINOPSE:
Um casal (interpretado Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg) devastado pela morte de seu único filho se muda para uma cabana isolada na floresta Éden, onde coisas estranhas e obscuras começam a acontecer.
A mulher é uma intelectual escritora que não consegue se livrar do sentimento de culpa pela morte do filho, e ele, um psicanalista, tenta exercer seu meio de trabalho para ajudar a esposa.
Anticristo é divido em partes: Prólogo e Epilogo e ainda capítulos que se passam na floresta do Éden: Dor, Luto, Desespero e Os três Mendigos
Site Oficial:
http://www.antichristthemovie.com
Site California Filmes:
Http://www.californiafilmes.com.br
FICHA TÉCNICA:
Título: Anticristo (Antichrist)
Direção: Lars Von Tries
Elenco: Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg
Duração: 104 min
Câmera: Digital Cameras RED + Phantom
Ratio: 1:2,35
Formato: 35 mm color / DCP
Som: Dolby Digital 5.1.
Língua: Inglês
Ano de Produção: 2009
Classificação: 18 anos
ELENCO:
WILLEM DAFOE
Willem Dafoe tem características físicas nada convencionais, com isso, manteve a conduta de seguir com personagens, que são geralmente figuras marginais e/ou excêntricas. Com formação no teatro, fez sua estréia cinematográfica no obscuro O Portal do Paraíso (1980). Mas foi notado pela primeira vez em Viver e Morrer em Los Angeles (1985), no papel de um vilão sádico.
A partir desse ponto sua carreira tomou a direção ascendente. Oliver Stone o chamou para interpretar o sargento Elias de Platoon (1986) e Martin Scorsese o dirigiu em A Última Tentação de Cristo (1988) onde interpretou Jesus Cristo. Esses dois filmes lhe renderam indicações ao Oscar de Melhor Ator.
Um ator versátil e muito requisitado, já foi dirigido por grandes cineastas como Abel Ferrara em Go Go Tales (2007) e Sam Raimi em Homem-Aranha (2007). Dafoe havia travalhado com von Trier anteriormente em Manderley (2005).
Filmografia selecionada:
• Um Segredo entre Nós (2008), dirigido por Dennis Lee
• Go Go Tales (2007), dirigido por Abel Ferrara
• A Férias do Mr. Bean (2007), dirigido por Steve Bendelack
• O Plano Perfeito (2006), dirigido por Spike Lee
• Manderlay (2005), dirigido por Lars von Trier
• o Aviador (2004), dirigido por Martin Scorsese
• A vida marinha com Steve Zissou (2004), dirigido por Wes Anderson
• Era uma vez no México (2003), dirigido por Robert Rodriguez
• Auto Focus (2002), dirigido por Paul Schrader
Melhor Ator Coadjuvante - Chicago Film Critics Association Awards
• Homem Aranha (2002), dirigido por Sam Raimi
• A Sombra do Vampiro (2000), dirigido por E. Elias Merhige
Indicadao como Melhor Ator Coadjuvante
• Psicopata Americano (2000), dirigido por Mary Harron
• eXistenZ (1999), dirigido por David Cronenberg
• O Paciente Inglês (1996), dirigido por Anthony Minghella
• O Dono da Noite (1992), dirigido por Paul Schrader
• Coração Selvagem (1990), dirigido por David Lynch
• Mississippi em Chamas (1988), dirigido por Alan Parker
• A Última Tentação de Cristo (1988), dirigido por Martin Scorsese
• Platoon (1986), dirigido por Oliver Stone
Indicadao como Melhor Ator Coadjuvante
• Viver e Morrer em Los Angeles (1985), dirigido por William Friedkin
CHARLOTTE GAINSBOURG
Ganhadora do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 2009, a tímida Charlotte Gainsbourg é atriz e cantora.
Nascida na Inglaterra, Charlotte é filha do poeta e cantor francês Serge Gainsbourg e da atriz Jane Birkin. Dessa forma, cresceu em uma família ligada ao teatro e à música, atuando em o seu primeiro filme em 1984, Paroles et musique. Em 1986 ganhou o César (o Oscar francês) de atriz mais promissora, pela sua participação no filme L'éffrontée e, em 2000, voltou a ganhá-lo, desta vez de melhor atriz coadjuvante no filme La Bûche.
Recentemente atuou em 21 Gramas (2004) ao lado de Sean Penn, e ainda esteve nos filmes Sonhando Acordado (2006) de Michel Gondry e em Não Estou lá (2007) onde foi dirigida por Todd Haynes.
Para além da sua carreira como atriz, gravou dois álbuns e cantou a canção-título de um dos seus filmes. Como curiosidade, é de Charlotte a voz que abre a canção “What it Feels Like for a Girl”, do álbum “Music” (2001) de Madonna.
A Revista americana “Vanity Fair” em 2007 elegeu Charlotte a mulher mais elegante do planeta, e hoje ela é musa da grife de roupas Gérard Darel, sobe o título de: “uma nova elegância sem artifício”.
Atualmente Charlotte Gainsbourg vive e trabalha em França, onde é casada com o ator e realizador Yvan Attal, pai dos seus dois filhos.
Filmografia selecionada:
• Persecution (2008), dirigido por Patrice Chéreau
• Eu Não Estou Lá (2007), dirigido por Todd Haynes
• Novo Mundo (2006) dirigido por Emanuele Crialese
• A Noiva Perfeita (2006) dirigido por Eric Lartigau
• Sonhando Acordado (2006), dirigido por Michel Gondry
• Lemming - Instinto animal (2005) dirigido por Dominik Moll
• 21 Gramas (2004), dirigido por Alejandro González Iñárritu
• La bûche (1999), dirigido por Danièle Thompson
Cesar Award melhor atriz coadjuvante
• Jane Eyre - Encontro com o amor (1996), dirigido por Franco Zeffirelli
• La petite voleuse (1988), dirigido por Claude Miller
• L’effrontée (1985), dirigido por Claude Miller
Cesar Award Atriz Promissora
DIREÇÃO E ROTEIRO: LARS VON TRIER
O cineasta dinamarquês Lars von Trier nasceu em Copenhague em 30 de abril de 1956. A partícula "von" foi adotada por Lars von Trier durante o período em que esteve no Danish Film School. O motivo para sua inclusão no sobrenome foi o apelido que seus amigos da época lhe deram.
Ficou conhecido mundialmente após fundar, junto com Thomas Vinterberg, o manifesto Dogma 95, no qual há 10 regras para a produção de filmes, como: não usar cenários, não usar trilha sonora, usar apenas câmera de ombro... Seu único filme que segue essas regras é: Os Idiotas.
Lars von Trier tem sempre seus filmes exibidos no Festival Cannes. Com Europa (1991), ganhou três prêmios, entre eles, o do Juri, em 1996 ganhou a Palma de Ouro com Ondas do Destino, prêmio que se repetiu em 2000 com o filme Dançando no Escuro que ainda concorreu ao Oscar de Melhor Canção. Os dois filmes da trilogia "América - País das Possibilidades", Dogville e Manderley concorreram também a Palma de Ouro.
No Festival de Cannes, desse ano (2009), Lars von Trier foi o grande polêmico da edição, com Anticristo. O filme dividiu opinião no festival, alguns críticos amaram, outros odiaram e as sessões de imprensa foram marcadas por aplausos e vaias. Durante a coletiva de imprensa, um jornalista britânico exigiu que o diretor explicasse Anticristo. Lars von Trier respondeu que não deveria explicar nada, e que eles (os jornalistas e público) eram seus convidados, e não ao contrário.
Para o futuro Lars Von Trier trabalha em um projeto pessoal que roda 3 minutos de filme todos dias, em diferentes locações da Europa. Sua intenção é realizar este trabalho durante 33 anos e, como teve início em 1991, a previsão é que o filme seja lançado apenas em 2024.
Ainda para terminar a trilogia “América – País das Possibilidades” o diretor já anunciou o começo da pré produção do filme Wasington, previsto para 2010 e o romance Caroline Mathildes år.
Filmografia:
• O Grande Chefe (2006)
Golden Shell nomination - San Sebastián International Film Festival
• Manderlay (2005)
Cannes Film Festival (official selection)
Toronto International Film Festival (official selection)
• As Cinco Obstruções (The Five Obstructions, 2003)
Toronto International Film Festival (official selection)
Sundance Film Festival (official selection)
• Dogville (2003)
Cannes Film Festival (official selection)
Toronto International Film Festival (official selection)
• Dançando no Escuro (2000)
Palme d’Or - Cannes Film Festival
• Os Idiotas (1998)
Cannes Film Festival (official selection)
• Riget II (The Kingdom II, TV, 1997)
Venice Film Festival (official selection)
• Ondas do Destino (1996)
Grand Prix - Cannes Film Festival
Toronto International Film Festival (official selection)
• Riget I (The Kingdom, TV, 1994)
Best Director - Karlovy Vary
International Film Festival
• Europa (1991)
Jury Prize - Cannes Film Festival
• Medea (TV, 1988)
• Epidemic (1987)
Cannes Film Festival (official selection)
• Forbrydelsens Element (Element of Crime, 1984)
Grand Prix - Cannes Film Festival
• Befrielsesbilleder (Pictures of Liberation Images of Relief, 1982)
Berlin International Film Festival (official selection)
ANTHONY DOD MANTLE - Diretor de Fotografia (selecionada)
• Quem quer ser um Milhonário? (2008), dirigido por Danny Boyle
• En mand kommer hjem (When a Man Comes Home, 2007) dirigido por Thomas Vinterberg
• O Último Reid a Escócia (2006), dirigido por Kevin Macdonald
• Manderlay (2005), dirigido por Lars von Trier
• Querida Wendy (2005), dirigido por Thomas Vinterberg
• Trainspotting (2004), dirigido por Danny Boyle
• Dogville (2003), dirigido por Lars von Trier
• Amor é Tudo (2003), dirigido por Thomas Vinterberg
• Extermínio (2002), dirigido por Danny Boyle
• Julien Donkey Boy (1999), dirigido por Harmony Korine
• Mifune (Mifune’s Last Song, 1999) dirigido por Søren Kragh-Jacobsen
• Festa de Família (The Celebration, 1998), dirigido por Thomas Vinterberg
REVIEWS:
“Anticristo não é um filme que deve ser explicado... Deve ser atravessado e enfrentado. Deslindá-lo, principalmente à luz do elemento inesperado que Von Trier introduz no desfecho, ao recapitular aquele lindíssimo prólogo, é tarefa para os dias ou semanas seguintes... A única certeza que se pode ter, aqui, é a de estar diante de algo raro, se não único – um artista de coragem absoluta, e de despudor irrestrito.” Isabela Boscov – Revista VEJA – 26 de agosto de 2009
**** “Não há respostas fáceis nesta hipnótica sessão de análise que traz enigmas e simbologias a ser decifrados pelo espectador – e eis aí um dos maiores méritos desde belíssimo trabalho de significados plurais.” Miguel Barbieri Jr. – Revista VEJA São Paulo / Rio – 26 de agosto de 2009
“Mais uma vez o enfat terrible Trier cumpriu a meta de chocar... Ela (Charlotte Gainsbourg) realmente salvou Anticristo do fracasso. No meio do caos imposto pelo diretor, a atriz francesa achou forças para compor uma personagem perigosa, imprevisível e comovente. Eva em estado puro.” Luís Antônio Giron – Revista Época – 24 de agosto de 2009
“É Lars von Trier, de Dogville, fazendo seu terror cabeça” Revista Época São Paulo – Agosto / 09
“Gritos, violência, sangue, sexo... Para fazer ANTICRISTO, o novo filme de Lars Von trier, a atriz francesa Charlotte Gainsbourg ultrapassou todos os seus limites e ajudou a compor um filme difícil e sem meios-termos. Para amar ou odiar.” Florecen Trédez – Revista ELLE – Agosto / 09
“... Promete gerar muitas discussões.” Roberto Larroude – Revista Sexy – Agosto / 09
“É difícil saber com certeza o que se passou logo depois de assistir a essa produção de terror. O prólogo, com cenas de sexo explícito, é das coisas mais belas vistas no cinema nos últimos tempos. São imagens que ficam, algo bem difícil nos dias de hoje.” Mariane Morisawa – Revista Preview – Agosto / 09
“As cenas vão do sublime (o prólogo em preto-e-branco) ao trash...” Thiago Stivaletti – Revista BRAVO – Agosto / 09
“O dom de exorcizar – No terror sexual ANTICRISTO, o diretor Lars Von Trier arrasta uma vez mais a mulher ao mundo mau.” Sean O’Hagan de Copenhague para Revista CARTA CAPITAL – 22 de julho de 2009
“Haneke vence em Cannes, mas ANTICRISTO não será esquecido” Manchete da Agencia REUTERS por Mike Collet-White e James Mackenzie 25/05/2009
“ANTICRISTO, de Lars von Trier, leva gelo à espinha do público de Cannes” Portal G1 – Diego Assim em Cannes 17/05/2009
“Tão perturbador quanto o filme é saber que temos todos uma violência latente que pode ser desencadeada em situações-limite. Cabe controlá-la, o que no cinema de Lars Von Trier significaria uma concessão ,algo que definitivamente, não seria compatível com o cineasta que já declarou que “gostaria de tentar reinventar o cinema” Tuna Dwek – Magic Bus e Site Rubens Ewald Filho
O Polêmico filme do Festival de Cannes 2009:
Depois das duas exibições do filme ANTICRISTO para imprensa durante o festival de Cannes, muito se falou a respeito de respostas polêmicas que o diretor teria dado, como: “Eu sou o melhor diretor do mundo”.
O site do festival disponibiliza o vídeo da coletiva de imprensa. No vídeo é possível ver que respostas como essas, foram dadas de forma irônica devido a uma pergunta extremamente agressiva de um jornalista britânico, Baz Bamigboye, do tablóide Main Online. http://bazblog.dailymail.co.uk/2009/05/index.html
Para ver o vídeo na integra acesse:
http://www.festival-cannes.com/en/mediaPlayer/9902.html
Agradecimento: João Marcelo F. de Mattos
UM CAIXÃO A CAMINHO DE CASA - ENTREVISTA
Entrevista da FILM #66
publicada pelo Instituto de Cinema Dinamarquês Maio 2009
Knud Romer, que participou de Os Idiotas de Lars von Trier, em 1998, conversou com o diretor em abril, quando ele tinha acabado de dar os últimos toques em seu mais recente filme, Anticristo.
“Você está parecendo um padre” von Trier disse quando nos cumprimentamos fora da sala de exibição no Filmbyen, onde eu veria seu último trabalho, Anticristo. O filme está tão envolto em segredos e precauções de segurança que eu me sinto como num cofre cheio de ouro. “Bom, estou aqui para salvar sua alma imortal”, ironizo.
Noventa minutos depois eu me levanto do meu lugar, profundamente abalado. Dirigindo de volta para casa, o medo e a paranóia voltam com tudo quando um carro funerário passa por mim na estrada.
A tarefa de entrevistar von Trier é um pouco intimidante. Um mestre da ironia e do sarcasmo, ele consegue dominar qualquer conversa e transformar você e suas piores feridas no assunto principal. Eu espero por ele no Filmbyen e a equipe me avisa que ele vai se atrasar. Acima das portas de seu escritório está escrito, em vermelho-sangue: “O caos reina”. Uma hora depois eles me avisam que Von trier quer fazer a entrevista em sua casa, vinte quilômetros ao norte dali. Estou tão nervoso que tenho medo de sair da estrada. Aproximando da pequena estrada que leva à casa dele, ao olhar para um pequeno riacho, bato meu carro numa cerca e em algumas pedras no estacionamento de uma outra casa, antes de ouvir, finalmente, uma voz gritando de uma porta aberta: “Knud, aqui”!
Von Trier está graciosamente personificado. Sua esposa, Bente, fez waffles e chá de ervas – as duas coisas mais relaxantes do mundo. Eu aceito as duas coisas quando percebo que a entrevista vai ser no porão, em dois pufes, e que von Trier está vestindo apenas meias pretas, uma cueca preta folgada e uma camiseta preta. De repente, já não sei mais o que vai acontecer – ainda mais porque eu pretendo discutir como, da mesma maneira que outros grandes diretores, ele continua fazendo sempre o mesmo filme, com variações diferentes e cada vez mais radicais. Isso, no caso dele, é um filme sobre um cara passivo e paranóico, megalomaníaco, que está acamado (como em Ondas do Destino) ou enterrado vivo (como em Anticristo), que abusa sexualmente de uma mulher enferma, ou mentalmente doente, até a morte, com o intuito de produzir imagens de um desejo sado masoquista e satisfazer sexualmente sua condição de voyeur. Minha paranóia está fora de controle – francamente, tenho medo der o próximo!
Eu não fui, claro. Não foi o Anticristo que eu encontrei lá no porão, mas o diretor, em seu estado mais simpático e aberto – ao ponto mesmo da quase nudez – que vive à beira do abismo, com uma consciência aguda da morte, para criar o rico visual apocalíptico que faz de o Anticristo uma obra-prima. Uma hora e meia depois, eu me arrependo de não ser um entrevistador melhor. É minha primeira vez, na verdade, e falo demais. Na saída, faço algo que não se faz – bem cuidadosamente – abraço von Trier para demonstrar meu agradecimento. De volta ao carro, meu nervosismo e medo e minha paranóia desaparecem e dessa vez – é verdade, eu juro – ultrapasso um carro funerário no meu caminho de volta para casa.
Lars von Trier: Estou muito ansioso para ouvir sua primeira pergunta. Lembre-se que tem que ser uma longa!
Knud Romer: Você fez vários filmes conceituais, nos quais, você se “escondeu”. Agora, Von Trier, o produtor de imagens apocalípticas está de volta. Por que você fez a primeira coisa e por que está de volta?
LvT: É tudo imagem para mim – mesmo que haja linhas feitas à giz no chão. Mas eu (hesita), eu estava me sentindo pra baixo, deprimido – eu cheguei ao fundo do poço – e duvidei que eu fosse capaz de fazer outro filme. Porém, retornei a alguns materiais da minha juventude. Eu era muito interessado em Strindberg*, especialmente na pessoa dele. Ele era incrível. Então tentei fazer um filme – nunca falei sobre isso antes e é difícil colocar em palavras – então tentei fazer um filme no qual eu tivesse que jogar a razão para longe por um momento.
KR: “O caos reina”.
LvT: Sim (ri). Produzi várias imagens que tentei juntar. Também, foi muito interessante fazer um filme com apenas dois personagens.
KR: Cenas de um Casamento (de Ingmar Bergman – 1973)…
LvT: Sim, Cenas de um Casamento, mas de uma maneira um pouco diferente. Eu gostei de Cenas de um Casamento. Achava um grande filme.
KR: Mas esse casamento está mais para Strindberg do que para Bergman.
LvT: Sim, eles se levam por caminhos mais próximos a Strindberg.
KR: A visão da mulher no seu filme é provavelmente mais ligada a Strindberg do que a Bergman?
LvT: Sim, e é provável que eu seja questionado sobre isso novamente, minha visão da mulher. Sempre tive uma visão romântica acerca da batalha dos sexos, sobre a qual Strindberg escrevia sempre. Continuamos a descrever as relações entre os sexos. Não sei se uma verdade inequívoca existe.
FILMES DE GÊNERO – ENTRE ASPAS
KR: Agora, você faz “filmes de gênero” – entre muitas aspas. Você continua contando a mesma história, a sua história, de formas diferentes, sob diferentes ângulos, como muitos outros cineastas e autores. Qual a sua relação com os gêneros cinematográficos? Ondas do Destino é um melodrama e Dançando no Escuro um musical. Anticristo é um suspense ou até mesmo um terror. Você descreveria sua relação com os gêneros de forma romântica ou como uma brincadeira?
LvT: O gênero é uma inspiração. A minha história é praticamente a mesma sempre. Estou bem ciente disso agora. Mas “gêneros” – acho que nunca seguirei um a risca, pois acredito que é necessário acrescentas algo a eles. Se eu fosse um chef, essa seria a minha versão de um porco assado clássico.
KR: Você parece se servir das expressões convencionais para depois vira-las de cabeça para baixo.
LvT: Eu cheguei a estudar Cinema na universidade e era muito fã de filmes de gênero. O Segredo das Jóias! Filme noir, sabe, isso tudo era fantástico.
KR: Uma pessoa preguiçosa que só assistir a seus filmes, terá conhecido todos os gêneros que existem.
LvT: Sim, todos no mesmo filme (ri). Mas eu não sou exatamente fiel aos diferentes gêneros. Não diria isso. Eu gosto quando as coisas ultrapassam as fronteiras.
KR: Alguns poderiam dizer que você – com um espírito cada vez mais transgressor – se aproxima de um dos gêneros mais tabus, a pornografia.
LvT: Bem, posso dizer que flertei com a pornografia, especialmente em Os Idiotas. De alguma forma, sexualidade e o gênero terror estão ligados. Mas pornografia? Não sei. É pornografia? Talvez. Mas a pornografia sempre me incomodou. Filmes pornôs são feitos com uma função. Geralmente, são muito crus.
LvT: Você faz perguntas difíceis. Mas, claro, o assunto é interessante. Eu realmente tento fazer com que meus filmes afetem as emoções do público. Porém, faço isso tentando criar uma imagem com a maior expressividade que eu conseguir para mim mesmo. Então eu posso dizer que, mesmo que seja um pouco de mentira, não penso no público quando faço meus filmes. Basicamente, satisfaço a mim mesmo com as imagens que eu crio. Ao mesmo tempo, não posso negar que elas são criadas com o objetivo de causar um efeito.
KR: O filme me causou muito medo. Não lido bem com o medo, ele me assombra. Se eu tivesse que criar aquelas imagens na minha mente primeiro e depois ter que enfrentar suas expressões emocionais profundas, eu teria um ataque nervoso.
LvT: Um filme é um reflexo pálido da realidade. Se você está numa sala de cinema e chora, é uma pálida imitação de uma emoção similar que você teve na vida real. Dessa forma, um filme é sempre algo de segunda mão, uma emoção emprestada da vida real. Se alguém se assusta é porque, provavelmente, tem algum medo que pode ser tirado dentro e ser usado durante uma experiência cinematográfica. Mas o cinema tem outras qualidades além de provocar emoções. ‘O Grito’, de Munch, por exemplo, que meu filho acabou de copiar num desenho. ‘O Grito’ é uma expressão magnífica de uma emoção, mas as pessoas não saem correndo e gritando de dentro dos museus por causa disso.
KR: Seus filmes são ‘gritos’?
LvT: Humm. Anticristo é o que mais se aproxima de um ‘grito’. Ele surgiu na minha vida em um momento em que eu me sentia muito mal. A inspiração pode ser encontrada em seu próprio medo, em suas próprias emoções. É daí que surgem as coisas, mas a partir disso, elas se transformam em outros elementos. Não é como se acontecesse uma telepatia entre o diretor e o público, como com Presto, essa é a chave que te coloca no estado em que eu estava. Não é assim. A razão pela qual o gênero terror – e eu nem estou certo de que o filme seja de terror – é interessante para mim, é porque eu gosto de fazer muitas coisas diferentes.
PARANÓIA PASSIVA
KR: Para mim é um alívio ver você retornar a algo 100% romântico, simbólico e universal com reminiscências católicas, e todo esse papo – é quase pré-romântico, gótico de alguma forma, Conde Drácula.
LvT: Sim, é mesmo. Eu não consigo analisá-lo, mas visualmente, estamos no gênero romântico, sem dúvida.
KR: Você diz que um filme não é uma cópia fiel de um pedaço da vida. A realidade de um filme de terror – uma experiência passiva e paranóica da realidade, aquela da megalomania, quando tudo gira em torno de você – indica um espectador passivo. É como medo do escuro: um estado passivo de paranóia que vemos sempre nos seus filmes, com o protagonista completamente paralisado, acamado, enterrado vivo!
LvT (ri): Sim. Não esqueça, eu li Edgar Allan Poe. Ele mesmo era uma figura romântica.
KR: É algo bonito os seus filmes expressarem medo do escuro, considerando que eles são feitos para a sala escura, onde o espectador está completamente vulnerável.
LvT: Uma vez pensei em fazer teatro porque pensei que era possível ficar mais assustado no teatro do que no cinema. Eu estava planejando fazer uma versão de O Exorcista no teatro. Eu me sinto mal no cinema com facilidade, mas no teatro, com mais facilidade ainda, porque é ao vivo. Ver uma peça é algo terrível para mim. Agora que estamos falando sobre públicos, parece que apenas uma parte muito pequena passa bem pela experiência. Mas estou muito feliz em relação a esse filme e às imagens nele. Elas vieram de uma inspiração que é real para mim. Demonstrei honestidade nesse trabalho. Acho que fiz isso em Os Idiotas e em outros filmes também. Mas nesse filme, essas imagens são o brilho de uma época bem anterior da minha vida.
KR: Você parece lidar com a “cena primária”, o primeiro encontro de uma criança com a sexualidade dos pais e a incapacidade de lidar com isso, que é um mistério mesmo. A criança não sabe o que está acontecendo, mas a experiência transporta-nos para um poderoso estado de medo e desejo. Segundo Freud, essa é a mãe de todas as cenas primárias, o medo que acaba com todos os outros.
LvT: Estou ouvindo…
KR: Certo, péssima pergunta… De certa maneira o filme é uma terapia, mas o terapeuta no filme não tem muito o jeito de terapeuta não. Ele é praticamente um sádico, certo?
LvT: Eu tive algumas experiências com terapia cognitiva, que parece ser baseada na forma como terapeutas fazem você superar o medo de cair num abismo, por exemplo, e esse é o fim do medo. Aparentemente, é uma forma bem sucedida de terapia. Claro, depende da altura do abismo. Eles se saem muito bem com pequenos declives. Ah, eu gosto de brincar e provocar, essas coisas. Os meus protagonistas masculinos são basicamente idiotas, que não entendem nada. Em Anticristo também. Então, é claro que as coisas dão errado! E como o medo é uma coisa e a realidade é outra, já podíamos esperar por isso. O medo pode mudar o mundo? Eu acho que sim – ele pode.
EXORCISMO
KR: Os personagens desse filme parecem estar completamente paralisados. Presos em uma cabana, as possibilidades de interferência e mudança são limitadas. Tudo que eles têm é uma chave de fenda e palavras para lutar contra uma realidade extremamente assustadora. Como o Catolicismo entrou na história? Filmes de terror antigos têm alho e crucifixo – assim como o Catolicismo. Parece haver muita bagagem católica nesse filme.
LvT: Certo. Mas eu não posso responder, porque sou um péssimo católico. Na verdade, eu nem sou religioso. Estou cada vez mais ateu.
KR: Ainda assim, o Catolicismo é a religião favorita dos que não acreditam, porque possui muitas expressões: rituais, ornamentos e por aí vai. Isso nos leva de volta ao que conversamos sobre subverter e brincar com os gêneros cinematográficos. O Catolicismo também oferece essa possibilidade.
LvT: Sim, ele pode fascinar e atrair – pelo menos eu fui. Eu vejo muita liberdade nessa possibilidade. Para mim, o Protestantismo sempre foi a grande besta. Mas a religião em geral é uma droga. Isso eu sei bem.
KR: Mas todo esse sistema de possibilidades está presente, tanto em Ondas do Destino quanto em Anticristo.
LvT: Eu deixo o livro do Nietzsche, O Anticristo, na meu criado-mudo desde os 12 anos de idade. É o grande estudo dele que desnuda o Cristianismo.
KR: Engraçado você mencionar sua idéia de transformar O Exorcista em peça de teatro, porque o exorcismo é algo muito católico. Você está exorcizando seus próprios demônios ou demônios da vida real? A psicanálise não é uma forma de exorcismo também?
LvT: Mas esses demônios são meus amigos. Talvez seja essa a vantagem de fazer filmes: os demônios, que podem causar dor quando você os conhece, têm outros papéis. Eles se tornam seus amigos quando você os coloca em um filme. Eles se tornam parceiros, cúmplices. Talvez, Munch tenha se sentido muito bem com ‘O Grito’. Munch, em certo momento, veio para a Dinamarca ser curado por um Dr. Jacobsen, que tratou dois grandes artistas, Strindberg e Munch. Ambos ressurgiram totalmente transformados. Munch, definitivamente, para o pior. Munch era bem mais interessante antes de vir para a Dinamarca e passar pelo que passou. A coisa pode ir bem longe, mas pelo menos é interessante, se o que dizem for verdade: quando a loucura retrocede, a qualidade do trabalho também cai. Pode ser…
KR: E vale o preço?
LvT: Nunca vale o preço! Eu não quero ser repetitivo, mas eu tenho me sentido muito mal!
KR: Deixe-me voltar para o tema da paranóia. O oposto da sensação de ser perseguido e ter medo é estar no topo de tudo e ter controle. Ao invés de ser perseguido por alguém que intimide, você se coloca na posição de dominador e controla os outros? É por isso que fica calmo e feliz quando está dirigindo um filme? LvT: Eu geralmente me sinto assim, mas não dessa vez. Eu não tenho medo de fazer filmes, nem de fazer uma declaração e ser julgado depois. Dessa vez, eu senti medo até de estar lá. Há uma certa claustrofobia envolvida na produção de algo grande assim e em ser o centro – e dessa vez, eu fui um centro muito fraco, mais do que nos meus outros filmes. Eu me senti, de fato, sem alegria nenhuma. Agora, que acabamos de fazer a mixagem do filme, eu estou me sentindo bem feliz. Tem sido muito bom, mas por outro lado, não houve êxtase. Alguns dos meus outros filmes eram como jogos, nos quais o diretor decidia o que e como jogar.
KR: Pode ser então que, com tanta coisa acontecendo, você tenha feito uma obra-prima como resultado? A força e a transgressão das imagens do filme são como uma luz que se apaga!
LvT: Uau! A diferença é que eu retornei a coisas da minha juventude, um material que tinha algo a dizer, incluindo coisas embaraçosas que evitei usar antes. É somente isso, em uma fase em que não estou me sentindo muito feliz.
KR: E isso tem alguma coisa a ver com envelhecer?
LvT: Acho muito que sim!
KR: Com quantos anos você está?
LvT: Farei 53, merda.
ATORES E O PÚBLICO
KR: Gostaria de conversar sobre seus atores. Como foi trabalhar com eles? Afinal você exigiu muito deles.
LvT: Trabalhei com Willem antes, em Manderlay. Ele é um cara ótimo. Perguntou se eu tinha trabalho para ele, então escrevi dizendo que tinha esse filme, mas que minha esposa não achava que ele toparia. Acho que isso o provocou. Mas ele não tem constrangimento em mostrar seu corpo e eu nem acho que ele deveria ter. Entramos em contato com algumas atrizes que realmente não tinham coragem para o papel. Charlotte se prontificou e leu o roteiro. Ela não teve dúvidas. Isso é a melhor coisa que pode acontecer: dois atores que estão de fato interessados em fazer o filme. E muito foi cobrado deles, então eles tinham que estar a fim. Os dois fizeram um ótimo trabalho! Nunca vi alguém trabalhar tão intensamente quanto Charlotte. O roteiro dela está cheio de notas que, ainda bem, ela não quis mostrar para ninguém. Muito, muito dedicada.
KR: Como você se sente em relação à reação que pode obter em Cannes?
LvT: A platéia de Cannes é geralmente muito aberta. O que não pode ser mostrado? Sexo?
KR: Há um certo pudor em relação aos órgãos genitais.
LvT: Eu prefiro pensar que ainda tenho um público que aprecia quando as coisas são mostradas.
KR: Você acredita que as crueldades nesse filme, a manifestação extremada, terão algum efeito sobre quem assistir ao filme – ou seja, interferir na recepção?
LvT: Não faço idéia. Eu quero que as pessoas vejam o filme, claro. Uma carreira é como uma série de perguntas para um certo grupo. Se eles acompanham toda a jornada, eles são “minha” gente. Mas acima de tudo, eu quero que o filme encontre seu público.
KR: Isso é um fetichismo, não é, ser cultuado? Acaba que você também é uma figura de fetiche …
LvT: É!
KR: Por exemplo, você usa uma câmera especial que é capaz de filmar em velocidade extremamente lenta. Ao invés de algo “pá-pum, muito obrigado, moça”, você segue na direção oposta: sofrimento estático, medo estático, paranóia estática – tudo ressaltado por imagens em câmera tão lenta, quase fixas.
LvT: Há muito tempo eu tive a idéia de fazer uma cena longa apenas ao som de uma ópera. E mergulhando de volta na caixa de brinquedos da minha memória, lá estava a câmera lenta, que se tornou uma coisa muito simples de fazer e tem sua beleza particular. No fundo, não sou muito fã de fazer coisas utilizando técnicas antigas. Mas fiz vista grossa para isso, porque esse é um filme urgente, praticamente um salva-vidas. Eu tinha que fazer alguma coisa, ou iria voltar para a cama e ficar olhando para a parede. Muitas das imagens do filme vieram de viagens imaginárias que fiz durante minha vida. Aprendi algumas técnicas do xamanismo e encontrei muitas imagens nessas viagens. Tem essa batida de tambor que te coloca num estado de transe e te leva para um mundo paralelo. É muito interessante e muito divertido também. Nunca experimentei LSD, mas é para ser como uma viagem de ácido, sem o ácido.
KR: É engraçado como continuamos falando as mesmas coisas, de maneiras diferentes. Há sempre uma atitude passiva em relação ao que se ama, imagens estáticas, imagens extasiadas, paranóia passiva, medo e voyeurismo – tudo para satisfazer um desejo sado masoquista.
LvT: (sorri) Claro, os rótulos ajudam!
KR: Não negue! Uma certa dose de inclinações perversas faz parte de qualquer vida minimamente natural e saudável.
LvT: Sim, vamos acreditar nisso, nós dois, ou seríamos execrados! Minhas perversões, que estão refletidas nesse filme, não são novidade. Apenas o como é diferente aqui. E porque uma parte do material tem origem na minha juventude, pode ser, sem razão evidente, arrebatador. As emoções e o medo tiveram que ser perseguidos até a última gota de nosso sangue. Esse é um filme mais infantil, eu diria.
KR: Alguns poderiam chamá-lo de pesquisa sobre a sexualidade infantil.
LvT: Sério? É, pode ser! Sem dúvidas. Explica bem!
KR: Na verdade, isso nos leva de volta ao começo, sua visão romântica de Strindberg.
MULHERES
KR: Nicole Kidman chegou a perguntar em algum momento porque “você é tão mau com as mulheres”? Acima de qualquer coisa, Strindberg era conhecido por sua misoginia. Eu sei que você não detesta as mulheres. Mas você não tem medo de ser cobrado ao levar a misoginia ao extreme? A sexualidade feminina como o mal. Como a serpente no Paraíso, que merece ser punida. Isso é tudo uma brincadeira romântica?
LvT: Acabei de ver um documentário sobre caça às bruxas. Diga o que quiser, mas essa história é incrível. É um material excelente. Eu não acredito em bruxas. Não acredito que mulheres ou sua sexualidade seja o mal, mas é assustador. É importante ter liberdade quando está fazendo um filme. Quem se importa com o que eu penso? Algumas imagens e conceitos são interessantes em diferentes maneiras de combinação. Eles mostram partes da alma humana e das ações humanas. Isso é interessante. Eu também me provoco, você sabe. Minha mãe era uma defensora ferrenha dos direitos da mulher. Eu sou muito aberto em relação à igualdade entre os sexos. Eu só não acredito que isso vá de fato acontecer um dia. Os sexos são muito diferentes, ou também não teria graça. Não acho que mulheres devam ser subjugadas, ainda mais com violência. É claro que sou contra isso. A caça às bruxas era algo realmente horrível. Mas a imagem da bruxa tem tantos pontos de fascínio que – porque eu deixei esse filme surgir para mim, ao invés de pensá-lo – o que acabou indo parar no filme tende mais ao caricato. É como pendurar uma rede cata-mosquito: pensamentos e imagens podem ficar presos e entram para o filme. Porém, me chamar de misógino é equivocado.
Knud Romer, nasceu em 1960, atuou em Os Idiotas, de Lars von Trier, e é co-roteirista de Offscreen, filme de Christoffer Boe. Romer estudou Literatura Comparada na Universidade de Copenhagen e trabalhou muitos anos com propaganda. Seu romance autobiográfico, Den som blinker er bange for døden (He Who Blinks Is Afraid of Death) de 2006, foi um bestseller na Dinamarca e foi vendido para mais de 12 países. O livro recebeu um prêmio de vendas na França, Le Prix Initiales d’automne, e o prêmio espanhol Calamo de literatura. Uma tradução para o inglês está prevista para 2010, pela editora Serpent’s Tail.
*August Strindberg - Fonte: Wikipédia
August Strindberg (22 de janeiro de 1849 - 14 de maio de 1912), pintor, escritor e dramaturgo sueco, é autor, entre outros, de O Pelicano. Figura ao lado de Henrik Ibsen, Søren Kierkegaard e Hans Christian Andersen como o maior escritor escandinavo. É um dos pais do teatro moderno. Seus trabalhos são classificados como pertencentes os movimentos literários Naturalismo e Expressionismo.
Frequentou a Universidade de Uppsala, tendo-a abandonado para trabalhar como jornalista e actor, até que ingressou na Biblioteca Real (1874) o que lhe permitiu assegurar o seu futuro econômico. As suas primeiras peças teatrais denotam influências de Ibsen e Kierkegaard e aí transparece uma personalidade amarga e torturada: O Livre Pensador (1869), Hermion (1869), O Professor Olof (1872), A Viagem de Pedro Afortunado (1882) e A Mulher do Cavaleiro Bent (1882).
O fracasso do seu primeiro matrimônio com Siri von Essen (1877-1891) deu à sua obra um tom misógino, que está patente, em especial nos contos de Esposos (1884) e nos dramas de carácter naturalista Camaradas (1897), O Pai (1887) e A Menina Júlia (1888), a sua obra mais importante.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
The Exploited Ao Vivo em Natal - Rio Grande do Norte
FESTIVAL DOSOL 2009
Uma resenha vagabunda por Adelvan Kenobi, que viajou ao todo (ida e volta) + de 1500 km de Aracaju a Natal de carro com quatro amigos por uma BR 101 cheia de insuportáveis obras de duplicação inacabadas para ver, basicamente, 1 hora de show (ok, com um monte de bandas excelentes de bônus, mas a verdade é que o grande motivo da viagem foi mesmo ver o Exploited ) e voltou achando que valeu MUITO a pena.
Fonte: Portal Revoluta e Jornal do Dia
Foto: Reinaldo Rodrigues
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Foi fácil chegar ao local do evento (Deus abençoe a internet e o Google Maps). Se não fosse teríamos chegado pelo cheiro – fica próximo ao porto, do lado de um galpão de armazenamento de pescados que fedia muito. Devido a um imprevisto não pudemos sair na sexta, como combinado, e por conta disso já chegamos com o festival em andamento, mas ainda a tempo, felizmente, de assistir a uma das atrações que eu mais queria ver, o Sick Sick Sinners. E foi uma recepção em grande estilo. Vlad e Cox, respectivamente guitarra e vocal e baixo (acústico, daqueles grandões) e vocal, são duas lendas do psychobilly brasileiro, tendo participado (e participando) de pelo menos duas outras formações seminais, Os Cervejas e Os Catalépticos. Tocaram no Centro Cultural DoSol, um dos dois locais onde ocorriam as apresentações - e o mais apertado. Sem frescuras, passaram o som e partiram para o ataque, conquistando logo de cara a audiência com sua pegada vigorosa e nervosa. O Sick Sick Sinners é um pouco menos punk que o Catalépticos, seguem uma linha mais tradicional, apesar de terem uma proposta mais despojada, descompromissada. Isso talvez explique a energia positiva que emana de seu show, sempre muito participativo, não se deixando abalar nem mesmo pelas insistentes falhas no microfone que inviabilizaram os vocais de Vlad em boa parte das primeiras musicas. Para mim foi especialmente gratificando vê-los, pois praticamente não existe uma movimentação psycho/rockabilly pelos lados do nordeste, o que torna praticamente inviável uma turnê de bandas do estilo por aqui. Mesmo em festivais é bastante raro, portanto parabéns à produção do DoSol pela escolha na escalação.
Terminada a primeira pedrada já nos dirigimos ao galpão maior, ao lado, onde ocorriam os shows dos “headliners”. Retrofoguetes no palco, que dizer ? Muita diversão e musica instrumental de primeiríssima qualidade executada por 3 excelentes músicos com um excelente humor e uma perfomance arrebatadora. Além de várias composições próprias, que vão da surf music tradicional (a base do som da banda) a ritmos os mais diversos, como bolero e “ cha cha cha “ (não por acaso o título de seu segundo disco), divertidíssimos covers, com especial destaque para aquela musiquinha escrota com a qual Silvio Santos apresentava os jurados de seu show de calouros, que sempre levanta a audiência. O mesmo excelente show que já tive o prazer de ver 3 vezes este ano, com a única diferença de que trocaram os macacões vermelhos por um figurino branco. Morotó Slim é Deus, Rex e CH são seus profetas.
Os Baggios foram a segunda banda sergipana a se apresentar na noite, que contou também com a Plástico Lunar. Já os havíamos encontrado, plásticos e Baggios, de rolê pela Rua Chile, felizes da vida pelo excelente show, pela vibrante receptividade e hospitalidade (estavam “de cara” com o hotel onde estavam hospedados). Preocupante o fato de que Perninha, o baterista, não estava presente, mas o mesmo foi substituído satisfatoriamente pelo cabeludo baterista Fabinho, da Elisa, também conhecido como “urso do cabelo duro”. Fizeram um bom show, mas devo dizer que já vi melhores. O entrosamento de Julico com Perninha vinha sendo lapidado à perfeição nos últimos tempos e ele pareceu sentir um pouco a falta de seu companheiro de jornada, mas nada que degringolasse para um fim trágico – muito pelo contrário, fizeram uma apresentação pra lá de decente, embora não o suficiente para manter o publico em peso no recinto, já que aos poucos o local foi se esvaziando, algo que eu credito mais à falta de informação da molecada em si do que à apresentação da banda. Aquele povo ali não parece estar acostumado a sentir o gosto das raízes do rock, a chafurdar na lama do blues, mas os que entraram no espírito da coisa (e não foram assim tão poucos) pareciam se divertir muito. Inclusive algumas garotinhas que dançaram e cantaram junto o tempo inteiro, e afinal foi pra isso mesmo que o rock and roll foi inventado, segundo as palavras do próprio Chuck Berry no palco de umas de suas ultimas apresentações no Brasil, ao se ver rodeado de deliciosas deusas remexendo as cadeiras e se enroscando em sua guitarra.
O rock não para e entra no palco maior o Danko Jones, do Canadá. Grande show, muito energético. É um performer e tanto, o senhor Jones, com sua língua nervosa e muito bate-papo com a platéia, que respondia a contento apesar da barreira da língua. Entre um e outro discurso sobre sexo, rock e mais sexo (especialmente sexo oral, o cara parece mesmo obcecado com a coisa), riffs certeiros num som de guitarra cristalino. Ressaltando que, segundo o próprio informou no palco, era a primeira vez que ele tocava não apenas no Brasil, mas na America do Sul, não perdendo a oportunidade de desdenhar dos argentinos, para o delírio da galera (Senhor Jones, o senhor é um fanfarrão).
E deu pra nós. Queria muito ver o Eddie, que não vejo ao vivo desde antes do lançamento do “ Original Olinda Style “, mas seriam a última banda a se apresentar, a noite já avançava rumo à sua metade e ainda faltavam três shows de grupos totalmente desconhecidos por mim – lembrando que tínhamos chegado por volta das 20:00 e estávamos, evidentemente, cansados da viagem. Um baile muito chato que tava rolando na Rua Chile também contribuiu para a decisão de pegar o rumo da praia em busca de um hotel bom e barato, ou que fosse barato e não fosse extremamente deprimente, algo que conseguimos facinho e na orla de Ponta Negra, supostamente uma das mais valorizadas da cidade.
Um delicioso churrasquinho na orla antes de dormir, uma boa noite de sono (sentindo a falta de um certo alguém, mas nem tudo é perfeito), um café da manhã satisfatório, um rolê até o Morro do Careca e um rango reforçado na Via costeira depois, eis-nos de volta à Rua Chile para a grande noite. Esperávamos dar de cara com uma turba de punks e carecas alucinados se digladiando na porta do evento, mas não foi nada disso, o publico era basicamente o mesmo “leitinho com Nescau” da noite anterior – o que não é, necessariamente, ruim, especialmente no quesito “fêmeas bem vestidas”, mas para uma primeira apresentação do Exploited em terras nordestinas, foi inusitado. Realmente tínhamos a expectativa de uma platéia mais “das antigas” e “casca-grossa”.
Entramos a tempo de ver os veteranos do Nervochaos, uma banda que toca “sem a presença de Deus”, nas palavras de Marcos Bragatto, jornalista carioca de grandes serviços prestados ao rock presente na noite. No outro palco Deadly Fate, local – metal tradicional, com aqueles vocais afetados insuportáveis. Não curti. Não vi a Distro, pois o Centro Cultural DoSol estava lotado e eu não tava com saco de entrar naquele calor infernal. Vi um pouco de uma banda norueguesa chamada Pulverhund. Ruinzinha, e destoando totalmente, com um som mais pra Coldplay que pra Extreme Noise Terror. Bragatto achou o vocalista parecido (fisicamente) com Josh Homme do Queens Of The Stone Age e deu a entender que isso é um mérito, o que eu acho questionável. O DoSol continuava lotado mas eu resolvi encarar por curiosidade pra ver o Comando Etílico e não me arrependi. Excelente banda, emulando totalmente o metal que era feito no Brasil nos anos 80, a la Dorsal Atlântica, Taurus, Overdose e afins, com direito a letras épicas e coreografias ensaiadas no frontline. Muito legal, excelente para lembrar de como aquilo pode ser divertido (e eu não estou falando no sentido pejorativo).
O Confronto, do Rio de Janeiro, foi a banda seguinte, no galpão principal. E foi monstruoso. Foi muito, mas muito, muito pesado mesmo. O guitarrista é muito bom, conduzindo o combo com riffs matadores na linha do que de melhor é feito nas searas do metal extremo para servir de camada para um ritmo cadenciado e vocais vociferados com mensagens de revolta social autentica. O publico curtiu muito, creio inclusive que foi a banda mais aclamada pela galera presente, mais até que o Exploited, como veremos adiante. Excelente show. Realmente MUITO pesado, fiquei impressionado.
Calistoga no DoSol. Meio emo, com uma presença de palco meio exagerada, meio Mars Volta. Curti não. Curti o Devotos, nunca mais tinha visto ao vivo. Só estranhei o péssimo som de guitarra, um contraste total com o que tinha ouvido antes, no Confronto.
E eis que chega o grande momento em que veríamos finalmente ao vivo, e relativamente (bem relativamente, diga-se de passagem) perto de nossa casa (na verdade o nordeste é nossa grande casa, há uma identificação cultural muito forte entre todos os estados nordestinos que nos faz sentir em casa em qualquer um deles), uma das maiores e mais influentes bandas da historia do punk rock, o Exploited. Ainda iria rolar uma tal de Mugo no palco menor, mas dispensamos completamente e fincamos o pé por ali mesmo, a tempo de ver a lenda viva em pessoa, Wattie, passar por nós com seu pra lá de icônico visual de moicano cor de rosa e camiseta preta com a clássica caveira desenhada por Pushead em vermelho. O pano de fundo da banda foi erguido por cima da imagem do festival e logo ele estava lá, no palco, do alto de seus 53 anos muito bem vividos, com aquele velho olhar psicótico, batendo o microfone na cabeça e saudando a todos antes de anunciar a primeira musica que foi, puta que pariu, “let´s start a war” !!! Melhor impossível. O caos se instaurou – na verdade nem tanto, esperava muito mais. Esperava mais gente e um publico muito mais ensandecido, mais fã da banda. A impressão que tive é de que 80% dos que estavam lá só tinham ouvido falar deles por alto, no máximo baixado um ou dois discos e ouvido sem muita atenção antes de deletar de seus eternamente abarrotados HDs. Foram muito menos aclamados do que mereciam entre uma musica e outra, e o pogo foi aquela cirandinha punk que já costumo ver sempre nos Abril pro rock da vida – acho meio ridículo, prefiro o pogo mais caótico e desarticulado que rola mais por aqui (Aracaju), talvez por influencia de Salvador, onde o bicho pega pra valer (nunca consegui permanecer por muito tempo numa roda de pogo por lá, é uma carnificina incrível, nas poucas vezes que me arrisquei – em shows do Ratos e do Destruction – saí todo arrebentado). Isso, no entanto, é apenas uma observação meio tola, pois o que realmente importa aconteceu: a banda fez um apresentação devastadora, recheada de clássicos e com um pique incrível. Wattie segue sendo um grande frontman, com a potencia vocal intacta, e foi muito simpático e carismático, ao contrario do que seu olhar carrancudo dá a entender. O volume foi ensurdecedor, reverberou em meus ouvidos zunindo pelo resto da noite. O show foi curto mas pra lá de satisfatório, com direito a um bis iniciado com “sex and violence” cantada por uma garotada (garotada mesmo, tudo novinho) que foi convidada ao palco. Da parte da platéia ( e a platéia é sempre importante em shows de punk rock ) vai ficar em minha memória o surf de Camilo Maia, dos Subversivos de Recife, nos braços do povo.
Memorável.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
"Nós"
Há um episodio que eu sempre uso pra exemplificar o alcance da internet e as conexões muitas vezes improváveis que ela pode nos proporcionar. Tempos atrás, estava pesquisando no Google sobre um escritor russo que havia publicado um livro nos anos 20 que teria sido plagiado ou, no mínimo, servido como grande fonte de inspiração para George Orwell na concepção de sua obra-prima, “1984”. O livro se chamava “Nós” e era de autoria de Evgeni Zamiátin, de quem eu nunca tinha ouvido falar até ler uma matéria sobre o mesmo na revista Caros Amigos que, por seu eu um apaixonado pela distopia de Orwell, muito me chamou a atenção. Desde então saí à caça do tal livro, dificílimo de se achar até pouco tempo, pois sua edição brasileira estava há muito fora de catálogo. E foi numa destas incursões pela internet à sua procura que me deparei com uma referência ao mesmo no blog de um conhecido dos tempos de fanzine, Digão, que editava o zine “Papakapika” em Curitiba nos anos 90. Já foi uma surpresa e uma felicidade ter retomado o contato, por absoluta obra do acaso, com um amigo distante com o qual não falava há tempos, quando pesquisando em sua coluna de blogs preferidos e correlatos , me deparo com o “Viva La Brasa”, do fanzineiro baiano (radicado em Sergipe) de longa data Adolfo Sá, que editou aquele que é provavelmente o melhor e mais célebre fanzine parido nas terras de Sergipe Del Rey, o “Cabrunco”. Só assim pude saber que Adolfo, sumido do cenário e recluso já há algum tempo, vivia ali do lado, no município de Barra dos Coqueiros, Grande Aracaju, e continuava escrevendo. E muito bem. Ou seja, a partir do meu interesse por um escritor russo do inicio do século, cheguei a informações sobre um amigo que vivia na Barra dos Coqueiros, via um outro amigo do Paraná. Esse mundo é, realmente, pequeno.
Pois bem, não foi daquela vez que consegui o livro, objetivo inicial de minha pesquisa, afinal. Digão falou que tinha e ia me mandar uma copia, mas não mandou. Só recentemente fiquei sabendo que a obra tinha sido, finalmente, relançada no Brasil, pela editora ALFA—OMEGA. Comprei (pela internet, claro, afinal eu sou um cara moderno e as livrarias daqui de Aracaju não têm capacidade de suprir meus interesses rebuscados e intelectualmente refinados) e li – aproximadamente 10 anos após ter lido a respeito pela primeira vez, na citada reportagem da Caros Amigos.
A primeira coisa que chama a atenção é a escrita de Zamiátin, elegante e rebuscada porém relativamente acessível. Salta aos olhos, no entanto, que "Nós" tem várias idéias em comum com "1984", o que dá realmente margem para as acusações de plágio. A inspiração, no mínimo, é inegável, pois ambos tratam, em sua narrativa, de uma incursão pela mente de um cidadão de um futuro distópico, habitante de uma sociedade totalitária, que começa a questionar sua realidade a partir da paixão por uma subversiva. Em ambos os livros, também, o texto é assombrado pela presença opressiva de um líder onisciente e paternalista, o “Benfeitor” em “Nós”, o “Grande Irmão” em “1984”.
O grande mérito de Zamiátin foi o de ter sido um visionário, já que escreveu sua obra-prima quando os regimes totalitários que tomaram conta da Europa e de boa parte do mundo nos anos 30 ainda se encontravam em fase embrionária. Ele parece ter captado o perigo por trás da idéia de que o todo deveria se sobrepor sobre o único, o bem comum esmagando a liberdade individual. No mundo de Zamiátin não há espaço para o indivíduo, e isso fica bem claro nas reflexões mentais de seu personagem principal, D-503 (não existem nomes próprios nesse mundo, apenas números), sempre tentando convencer a si mesmo da correção da Filosofia baseada na matemática do Estado Unificado no qual vive e ao qual serve como construtor do Integral, o foguete que levará a Boa Nova do Benfeitor aos mundos que, supostamente, existem espalhados pelo escuridão do espaço sideral, e encarando seus próprios questionamentos como fruto de uma estranha doença que, ele descobre depois, começa a se espalhar perigosamente ao ponto de se tornar uma epidemia. Para ilustrar suas idéias, Zamiátin constrói todo um universo onde as pessoas (na verdade, os números) vivem absolutamente sem privacidade em casas de vidro e protegidos da natureza selvagem (essa sim, opressora, aos olhos dos cidadãos do Estado Unificado) por uma grande Muralha Verde (não por acaso esse é o nome do livro em algumas traduções mundo afora).
A meu ver, o que Orwell fez foi se apossar das idéias centrais do livro de Zamiátin e desenvolvê-las ao seu estilo, um tanto quanto mais romanceado e didático, se beneficiando da própria passagem do tempo, já que o mundo havia recém-saido da Grande Experiência totalitária da década de 30 que culminou no choque de civilizações materializado nos horrores sem precedentes da Segunda Guerra Mundial. É evidente que suas preocupações e reflexões estavam intimamente conectadas àquela realidade quando ele escreveu 1984, no final dos da década de 40 (o titulo do livro é uma simples inversão de números do ano em que foi lançado, 1948), e especialmente direcionadas ao fato de que, a despeito da derrocada do Nazi-Fascismo na Europa, ainda existia de pé, e vitoriosa, pois aliada às chamadas “democracias ocidentais”, uma sociedade totalitária, a URSS, comandada pelo “grande irmão” Josef Stálin, saudado à época pela propaganda oficial como o “guia genial dos povos”, e cujos tentáculos já começavam a se estender por toda a Europa oriental, o que levaria á construção da imaginária porém absolutamente palpável “cortina de ferro” e à guerra fria que se estenderia até meados dos anos 90. Talvez por conta disto, do fator conjuntural em que a obra foi escrita, o personagem do Grande Irmão de Orwell é muito melhor acabado e rico do que o do Benfeitor de Zamiátin – o que não tira dele o mérito da criação da idéia, já que Orwell tinha um exemplo vivo e atuante no qual se inspirar, Stalin (ou mesmo Hitler e Mussolini), uma realidade que na época em que foi publicado “Nós” apenas começava a se vislumbrar.
Não creio que estes fatos tirem de Orwell o brilhantismo de sua escrita e, sobretudo, sua importância, pois ele meio que ampliou a ideia original de Zamiátin e desenvolveu novos conceitos, como a da "novilingua". Contudo, se faz necessário que a obra pioneira deste brilhante e semi-obscuro escritor russo seja melhor difundida, para que a justiça histórica seja feita.
ATUALIZAÇÃO EM 25/04/2017: A Editora Aleph acaba de relançar "Nós" em uma belíssima edição de capa dura que você pode comprar aqui.
Por Adelvan Kenobi
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Nós, de Evgueny Zamiatin
A Anti-utopia de Eugene Zamiatin
Por Celso Gomes
Recomendo a leitura do romance Nós, de Eugene Zamiatin, em uma edição da Editora Anima, tradução do inglês de Lya Alverga Wyler de 1983. Desconheço se há alguma tradução diretamente do russo. Eugene Zamiatin publicou o romance Nós em 1920. O resumo é simples: pessoas vivendo em um tempo futuro no qual um o governo autoritário controla a vida de todos, ao mesmo tempo em que uma revolução está próxima de ser deflagrada. Esse foi um tema recorrente no século passado, tanto assim que podemos encontrar alguns elementos de Nós em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e em 1984 de George Orwell. Alguns críticos chegam a acusar Orwell de plágio, tal a semelhança entre os dois romances. Os personagens têm horas marcadas para seus encontros íntimos e seus contatos são impessoais. Em 1984, todos são controlados pelo Grande Irmão. No romance de Zamiatin há um Benfeitor, sempre presente. Em Nós, os prédios são transparentes e os moradores têm permissão de fechar cortinas apenas durante os encontros íntimos. Em 1984, existem as telas de vídeo. Em Nós, as pessoas não recebem nomes, mas números. Apesar de um tanto envelhecido, vale a leitura do livro, até para encontrar elementos básicos de vários outros romances escritos no século passado. Tecnicamente, o romance consiste em anotações do personagem D-503, que acredita nos princípios da sociedade totalitária em que vive. Para D-503, sua falta de privacidade é uma garantia de fidelidade do cidadão ao Estado. Esta total transparência da vida do cidadão é condição sine quae non para existência do governo totalitário sob o qual ele vive.
Mais do que uma obra política, Nós surgiu como um corajoso ataque ao totalitarismo soviético, que usurpou a liberdade humana e terminou por destruir a criatividade, violentando a arte. O romance é um libelo em defesa da liberdade do homem em uma narrativa surrealista, permeada pela ironia, em linguagem contida, propositalmente disciplinada. Em Nós, o herói D-503 - um matemático que trabalha na construção de um equipamento de tecnologia muito avançada - vive em constante conflito por ter como ideal subjugar suas emoções, embasando seus pensamentos nos argumentos inculcados em sua mente pelo Estado Uno. Ao longo do tempo, contrariamente ao seu discurso padronizado, ele se descobre possuidor de uma identidade individual, quando se vê apaixonado de forma avassaladora por uma mulher. Nesse momento, desejos não programados pelo sistema invadem seu arcabouço emocional levando-o a seguir impulsos que considerava irracionais. Procurando um médico, após uma de suas crises, o mesmo diagnostica que lhe nasceu uma alma e D-503 passa a se ver como terrivelmente doente, pois ter uma alma, ter imaginação era ter uma doença incurável no Estado Uno. Apesar de o médico decretar que esta doença seria incurável, outro médico defende a tese de que uma operação de remoção de um centro de imaginação no cérebro tornaria o indivíduo alheio à sua individualidade, o que tornaria D-503 completamente alienado do processo político em que vivia e alheio à revolução em curso.
Nós foi proibido pelo regime soviético e só foi publicado nos países do Ocidente. Zamiatin, que além de escritor era matemático e engenheiro naval, sobreviveu por milagre aos expurgos estalinistas. Em 1931, ele escreveu a Stalin pedindo permissão para emigrar: "O autor desta carta, um homem condenado à pena capital, solicita-lhe a comutação desta pena. Você provavelmente conhece meu nome. Para mim, como escritor, ser privado da possibilidade de escrever equivale a uma condenação à morte". Milagrosamente, Stálin concedeu e Zamiatin viveu algum tempo em Praga, vindo a morrer em 1937, praticamente esquecido em Paris, pois em seu período de exílio, jamais se juntou aos exilados russos.
Celso Gomes é advogado e escritor
contato@algoadizer.com.br
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Nós (romance)
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Nós (Мы/Mii) é um romance distópico escrito entre 1920 e 1921 pelo escritor russo Yevgeny Zamyatin. A história narra as impressões de um cientista sobre o mundo em que vive, uma sociedade aparentemente perfeita mas opressora, e seus conflitos ao perceber as imperfeições dele, ao travar contato com um grupo opositor que luta contra o "Benfeitor", regente supremo da nação.
Parte dela é baseada nas experiências do autor com as revoluções russas de 1905 e 1917 e no período em que trabalhou em 1916 supervisionando a construção de navios na Inglaterra.
Embora escrito no início da década de 20, Nós só publicado pela primeira vez em 1924, e em inglês e em Nova Iorque, por estar proibido na então União Soviética devido à censura imperante no país. A primeira edição no idioma russo só foi lida em 1927/1928, quando publicada em um jornal de emigrados. O livro só adentrou legalmente a pátria-mãe do autor em 1988, com as políticas de abertura do regime soviético.
Significado literário e influência
Nós é uma sátira futurista distópica, geralmente considerada o berço do gênero (mas há outras, como A Nova Utopia, de Jerome K. Jerome, de 1891, e O Tacão de Ferro de Jack London, de 1900; leia mais sobre isso adiante). O livro leva a extremos os aspectos mais totalitários e o conformismo da sociedade industrial moderna, descrevendo um Estado que acredita que o livre-arbítrio é a causa da infelicidade e que a vida dos cidadãos deve ser controlada com precisão matemática baseada nos sistemas de precisão industrial criados por Frederick Winslow Taylor.
Entre outras inovações literárias, a visão de Zamyatin inclui um ambiente de casas --e quase tudo mais-- de vidro e outros materiais transparentes, onde todos estão visíveis e um cidadão é o vigia do outro. Por suas críticas ao socialismo russo, esta e outras obras do autor eram freqüentemente banidas.
Há discussões sobre as influências do trabalho se Zamyatin no trabalho mais conhecido do gênero: 1984 de George Orwell, que começou a escrevê-lo alguns meses após ler uma tradução francesa de Nós e ter escrito uma resenha da obra. Há registros de Orwell ter dito que "iria tomá-la como modelo para seu próximo romance". [1] Na introdução à tradução em inglês de 1993, o tradutor Clarence Brown diz que, para Orwell e outros autores, Nós "parece ser 'a' experiência literária crucial". O biógrafo Alex Shane diz que "(...) não há como discutir a influência de Zamyatin em Orwell". [2] Já o crítico Robert Russell, no livro Zamiatin's We, conclui que "'1984' partilha tantas características com 'Nós' que não pode haver dúvidas quanto à sua dívida geral com esta", embora haja uma minoria de críticos que vejam as similaridades como "totalmente superficiais". Mais adiante, Russell aponta que "o livro de Orwell é mais sombrio, esquemático e temático que o de Zamyatin, faltando o humor irônico que permeia a obra russa".
Orwell diz, em um ensaio de 1946, que acreditava que Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932) "deve ser parcialmente derivado" de Nós. Contudo, Huxley, segundo o livro de Russell, escreveu em uma carta de 1962 que escreveu sua obra muito antes de ter ouvido falar na do russo.
É digno de nota que o referido Jerome K. Jerome foi citado como uma influência no romance de Zamyatin. [3] Em 1891 Jerome publicou o conto-ensaio A Nova Utopia [4] descreve uma cidade --quiçá um mundo-- abarcada por um pesadelo igualitarismo, onde os habitantes são quase indistintos em seus uniformes cinza (como as "unifas" de Nós) e todos têm cabelos pretos e curtos, naturais ou tingidos. Ninguém recebe nomes, apenas números costurados nas túnicas: pares para as mulheres, ímpares para os homens, o mesmo esquema da obra russa. A igualdade é levada a extremos tantos que pessoas com físico bem-desenvolvido sofrem cirurgias para redução de membros (em Zamyatin a cirurgia de nivelamento de nariz é sugerida). Na obra de Jerome, aqueles com uma imaginação superativa são submetidos a uma cirurgia que também a reduz, e uma operação semelhante tem importância central em Nós. Ainda mais significativa é a apreciação da parte de ambos os autores do amor familiar, e por extensão do individual, como uma força disruptiva e humanizante.
É provável que o autor russo o tivesse lido: as obras de Jerome foram traduzidas na Rússia três vezes antes de 1917 e a maioria das pessoas educadas as conhecia.
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Yevgeny Zamyatin
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Yevgeny Ivanovich Zamyatin (Евге́ний Ива́нович Замя́тин por vezes traduzido para português como Eugene Zamyatin ou Eugene Zamiatine) (Lebedian, 1 de Fevereiro de 1884 - 10 de Março de 1937) foi um escritor russo, famoso pelo seu romance Nós, uma história de um futuro distópico que influenciou os romances Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell e Anthem, de Ayn Rand.
Zamyatin também escreveu vários contos, na forma de contos de fadas, que constituíram uma crítica satírica do regime comunista russo. Um exemplo é uma história na qual o presidente de câmara decide que para fazer toda a gente feliz terá de fazer toda a gente igual. Começa por forçar toda a gente, ele próprio incluído, a viver num grande quartel, depois a rapar os cabelos para ser iguais aos calvos, e finalmente a tornar-se mentalmente deficientes para igualizar os níveis de inteligência com os deficientes mentais.
O pai de Zamyatin era um sacerdote ortodoxo russo e professor e a mão era música. Ele estudou engenharia naval em São Petersburgo de 1902 a 1908, período em que aderiu aos bolcheviques. Foi preso durante a revolução russa de 1905 e exilado, mas regressou a São Petersburgo onde viveu clandestinamente até partir para a Finlândia em 1906 para concluir os estudos.
Depois de concluir o curso e se tornar engenheiro naval, Zamyatin começou a escrever ficção como passatempo. Foi preso e exilado pela segunda vez em 1911, mas foi amnistiado em 1913. Em 1916 foi para Inglaterra supervisionar a construção de quebra-gelos nos estaleiros de Newcastle-upon-Tyne e escreveu mais tarde The Islanders, satirizando o modo de vida inglês.
Ao regressar à Rússia, Zamyatin escreveu Ujezdnoje (Coisas de Província) em 1913, que satiriza a vida numa pequena cidade russa e lhe trouxe alguma fama. No ano seguinte, foi julgado por maltratar os militares na sua história Na Kulichkakh. Continuou a contribuir para vários jornais socialistas. Depois da revolução russa, editou várias revistas, deu palestras sobre a escrita e editou traduções russas de trabalhos de Jack London, O Henry, H. G. Wells e outros.
Zamyatin apoiou a Revolução de Outubro, mas tornou-se crítico da censura praticada pelos bolcheviques. Os seus trabalhos foram-se tornando cada vez mais críticos do regime e cada vez mais suprimidos à medida que a década de 1920 ia avançando. Por fim, os seus trabalhos foram banidos e ele foi proibido de publicar, em especial depois da publicação de Nós num jornal de emigrados russos, em 1927.
Acabou por obter a autorização de Estaline para abandonar a Rússia em 1931, depois de Gorki ter intercedido por ele, e instalou-se em Paris com a sua mulher, onde morreu na pobreza em 1937.
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11/02/2000 - Zamiatin e a Casa Idiota
Fonte: http://www.baguete.com.br/colunasDetalhes.php?id=86
Abençoados dias, estes que correm, os de Internet. Quando escrevia em Porto Alegre, em papel jornal, a crônica sequer atravessava o rio Uruguai. Nestes tempos de Web, a discussão ultrapassa o Equador. Dos EUA, reclama um interlocutor: "Quando eu jurava que ele iria dizer alguma coisa sobre a modelo que está vivendo numa casa de vidro em Santiago do Chile, e da celeuma que isto está causando na cidade, da falsa moral da América Latina, etc., ele me veio com uma dessas". A "uma dessas" foram minhas considerações sobre a lenta e merencória domesticação dos homossexuais. Mas pouco importa. Ocorre que a dose de estupidez que os jornais nos trazem é diária. E a coluna, semanal.
Não me parece que a celeuma em Santiago seja fruto de falsa moral, nem que falsa moral seja atributo exclusivo da América Latina. Jamais ocorreria a um latino, sem ir mais longe, pedir o impeachment do supremo mandatário da nação por felações de rotina. No Chile, a questão transcende a moral. Se a exibição da intimidade alheia em alguns causa repulsa, para outros pode ser fonte de prazer. Antes da casa de vidro de Santiago, a WEB já oferecia dezenas, talvez centenas de webcams, pelas quais os navegantes podiam espiar o cotidiano entre quatro paredes de moças em outras longitudes. Um site americano, o de Jennifer, foi pioneiro neste voyeurismo eletrônico. Com a diferença de que a intimidade de Jennifer, se estava à distância de um clique de mouse, não era imposta a transeuntes que nada querem com a vida alheia.
Esta idéia de transparência nada tem de novo. Em 1920, no seu romance de antecipação, Nós, o escritor russo Eugene Zamiatin já propunha este tipo de arquitetura. Não como modelo a ser imitado, mas como sátira a um Estado onipresente, que exige de seus cidadãos total transparência. Mais recentemente, em 1949, Orwell retomou a idéia em 1984, através do olho sempre vigilante do Big Brother.
Nós foi proibido pela censura soviética e só foi publicado nos países do Ocidente. Zamiatin, que além de escritor era matemático e engenheiro naval, sobreviveu por milagre às purgas stalinistas. Em função de seu ofício, foi testemunha de importantes momentos históricos. Estava em Odessa por ocasião da rebelião da tripulação do Potemkin e em Helsinki - então Helsingfors - durante a do Sveaborg. Em 31, ousou escrever a Stalin pedindo permissão para emigrar: "O autor desta carta, um homem condenado à pena capital, solicita-lhe a comutação desta pena. Você provavelmente conhece meu nome. Para mim, como escritor, ser privado da possibilidade de escrever eqüivale a uma condenação à morte". Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, que devia ter acordado de bom humor no dia em que recebeu a carta, deixou-o partir.
Zamiatin viveu algum tempo em Praga e morreu em 1937, praticamente esquecido, em Paris. Nós é narrado pelo cidadão D-503, homem dos séculos futuros, que acredita nos princípios da sociedade totalitária em que vive. As casas são transparentes. Nos dias previstos para atividades sexuais, o morador pode cerrar as cortinas. "Em nossas paredes transparentes e como que tecidas de ar resplandecente, nós vivemos sempre abertamente, lavados de luz, pois nada temos a esconder, e este modo de vida facilita a difícil tarefa do Benfeitor". Orwell conhecia a obra de Zamiatine. O Benfeitor é uma antecipação do Grande Irmão. Para D-503, "o vidro, nosso admirável vidro, transparente e eterno", é garantia de fidelidade do cidadão ao Estado. Esta total transparência da vida do cidadão é o sonho de todo poder totalitário. Não espanta que o livro de Zamiatin tenha sido proibido na finada URSS. O que espanta é ver, em um regime democrático, alguém se propondo como cobaia de uma condição sonhada por todo ditador. A casa transparente de Santiago do Chile é decididamente idiota. Fosse erigida nos dias de Pinochet, a imprensa internacional estaria denunciando a invasão da privacidade do indivíduo pela prepotência do tirano.
Não sei se a moça de Santiago pretende baixar alguma cortina na hora sexual. Mas há momentos indubitavelmente mais íntimos que o sexual, e para isso a humanidade concebeu a privada cercada de quadro paredes. Vejo na primeira página dos jornais a moça baixando, não as cortinas, mas as calças, ao sentar em um vaso sanitário. Ora, este é um dos momentos íntimos do ser humano que a ninguém agrada assistir, muito menos ser compelido a assisti-lo quando passa pela rua.
O problema não é de falsa moral, mas de graus de civilização. Nem mesmo entre bugres do paleolítico - que ainda existem no Brasil, para alegria e sustento dos antropólogos - este momento é público. Para isso existe o mato. Ou talvez a modelo, em sua ânsia de transparência, queira transformar a esplendorosa Santiago numa espécie de São Paulo, onde baixar as calças na rua, na ótica dos defensores dos tais de Direitos Humanos, é garantia consagrada na Constituição de 88, a dita Cidadã.
A exposição da moça é superficial. Como expediente para gerar manchetes, nestes dias em que a mídia dá o mesmo destaque às aventuras de cama de uma piranha de sangue real que ao pronunciamento de um estadista, é método eficaz. Mas a transparência mais grave é outra. É aquela à qual o Estado tem acesso quando nos confere números. Diante do número pessoal, usado em todos os atos contratuais do cidadão - método de identificação já rotineiro em diversos países - a casa de vidro de Zamiatin vira inocente metáfora do passado.
Isso sem falar na transparência informática, preço a ser pago nestes dias, como dizia, abençoados. Do fundo desta telinha, leitor, 40 mil cookies te contemplam. Em verdade, nossa privacidade está muito mais devassada que a da moça de Santiago. Só que já nem ligamos.
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ENTREVISTA COM EVGUENY ZAMIATIN
POR FREDERIC LEFEVRE
Interviu dlia Frederika Lefevra
Abril de 1932
In: Antologuia Satiri i iumora Rossii XX veka — Evguenii Zamiatin, Tom 28, Izdvo Eksmo, 2004, Moskva, str. 20—24
Entrevista para Frederic Lefevre
in: Antologia de Sátira e Humor da Rússia do século XX — Evgueni Zamiatin, Volume 28, Editora Eksmo, 2004, Moscou, pg. 20—24.
Traduzido do russo por Clarice Lima Averina
— Se eu lhe respondo que nasci na Rússia, isto é pouco. Eu nasci e passei a infância bem no centro da Rússia em seu ventre de terras negras. Lá, na província de Tambov, há uma cidadezinha — Lebedian — outrora famosa por suas feiras, ciganos, trapaceiros e sua linguagem solidamente russa, perfumada como maçãs antonovkas. Não foi por acaso que Turguenev e Tolstoi escreveram a respeito desta cidade.
Eu até hoje me lembro dos excêntricos incomparáveis, que esta terra negra produziu: um coronel — Rafael culinário que preparava pratos geniais; um sacerdote que escreveu um tratado sobre a vida doméstica do diabo; um funcionário dos correios que ensinava a todos o idioma esperanto e que tinha a certeza de que em Vênus — Les habitants enériques — também falam em esperanto... Estes excêntricos dos anos 90 estão vivos até hoje. Não se espante, eles vivem em meu romance Provinciano.
Desde o início dos anos 900 eu vivi em Peterburgo. Parece que que sempre tive este traço de carácter, escolher la ligne de la plus resistance. Pode ser que, justamente por isto eu escolhi a faculdade mais difícil na École Polytechnique de Pétersbourg — a de construção naval. Em 1909 (1) eu terminei esta faculdade e fiquei como agrégé na cátedra de construção naval e a partir deste ano começou minha vida anfíbia...
—Acha estranha esta comparação?
Os anfíbios, como se sabe, têm vida dupla, respiração dupla: no ar e na água. Em 1909 eu fiz simultaneamente meu projeto de navio para o diploma e escrevi meu primeiro conto. Desde então eu vivo simultaneamente nestes dois elementos. Aliás, eu me diferencio dos anfíbios por nunca ter rastejado perante ninguém, e não ter vergonha de escrever o que me parece verdade. Para curar me deste mau-hábito o governo tsarista deteve-me como revolucionário na prisão de Peterburgo em 1906; nesta mesma prisão de Peterburgo foi-me prescrito o mesmo tratamento também em 1922. Mas eu temo que minha doença — heresia — é incurável. Um dos surtos desta doença foi meu romance Nous autres, que vejo na sua mesa. Críticos míopes viram neste livro nada mais do que um panfleto político. Isto, é claro, é incorreto: este romance é um sinal do perigo, que parte do poder hipertrofiado das máquinas e do poder do Estado — seja ele qual for e que ameaça o homem, a humanidade. Os americanos, que há alguns anos escreveram muito sobre a edição novaiorquina de meu romance, não sem razão, viram neste espelho também o seu fordismo. É muito curioso que em seu último romance o conhecido escritor inglês Huxley (2) desenvolve quase as mesmas idéias e situações de enredo que
foram dadas em Nous autres. Drieu de la Rochelle contou-me nestes dias que num encontro com Huxley ele perguntou se Huxley tinha lido Nous autres. A coincidência, é claro, foi casual. Mas tal coincidência indica que estas idéias estão em torno de nós, neste ar pré-tempestuoso que respiramos.
—Outros trabalhos meus? Ei-los: mais seis livros de prosa, seis peças de teatro e seis... quebra-gelos.
— Nomes? Do que — dos livros ou dos quebra-gelos? Comecemos pelos quebra-gelos. Eu construí quebra-gelos na Inglaterra durante a guerra. Minha construção melhor e preferida é o quebra-gelos "Lênin" de 1916-1917, no estaleiro Armstrong. Naquela época eu não suspeitava de que construía um navio com nome tão altissonante: então o quebra-gelos chamava-se "Santo Alexander Nevsky", e somente depois da revolução ele se arrependeu e mudou de nome. É um dos nossos maiores quebra-gelos, um pouco menor do que o "Krassin", porém tem construção mais aperfeiçoada. Recentemente diferentes jornais alemães, americanos e tchecos atribuíram-me o título de construtor do "Krassin". Isto não é bem assim. Eu fui apenas consultor na construção do "Krassin"— que foi construído também na Inglaterra simultaneamente com o "Lênin".
Uma conseqüência desagradável de minha estada de dois anos na Inglaterra foi minha novela Ilhéus — desagradável para os ingleses: eles se ofenderam tanto com esta novela que na Inglaterra foi impossível traduzi-la e publicá-la. Outro meu romance — Au bout du monde publicado na Rússia durante a guerra, pareceu ofensivo para a censura tsarista: a revista que publicou este romance foi confiscada e o livro só saiu depois da revolução. Como vê a profissão de herege é muito difícil, sobretudo em nossa época, em que se exige que o herege não apenas renuncie a seus equívocos, mas também prove imediatamente na pratica que estava errado. Imagine a situação de Galileu que teria de provar que estava errado, isto é, que a Terra não gira! O velho agora estaria numa situação sem saída.
— Não, não esqueci de minhas peças: simplesmente em nossa conversa imiscuiu-se uma terceira pessoa — Galileu. É sobretudo difícil para mim esquecer das peças, por que nos últimos anos eu me dediquei mais ao teatro. E depois, se pelos menos uma vez vimos o público no teatro emocionado com nossa peça, nunca mais esquecemos disto. Sobretudo se isto ocorre agora na Rússia onde ao teatro vai não o público, mas o povo, para o qual só agora abriram-se as portas do teatro, e que tem uma percepção especialmente nova e viva.
De minhas peças duas foram concluídas recentemente e não tive tempo de montá-las antes de viajar ao exterior, uma peça tem problemas com a censura (3) e três peças foram apresentadas nos maiores teatros de Moscou, Leningrado e província. As comédias Sociedade dos tocadores de carrilhão honorários e A Pulga foram as melhores, na minha opinião. "Os tocadores de carrilhão é uma sátira à sociedade inglesa contemporânea, e, como dizem, uma sátira muito mordaz. Pela primeira vez esta peça foi apresentada no palco do antigo teatro Mikhailovsky de Peterburgo, mas, acho que ela foi-melhor representada no Teatro Dramático Russo de Riga, onde esteve por várias temporadas seguidas. A Pulga é uma peça no estilo de comédia popular — ou se quiserem — da commedia dell'arte italiana. Esta peça foi apresentada em 1926 pelo Teatro Artístico de Moscou e desde então está lá pela sexta temporada já. Ambas estas peças foram traduzidas para o francês, e estou em conversações sobre sua apresentação em teatros parisienses (4). Está sendo traduzida para o francês uma de minhas peças Le delegue d'Afrique — uma farsa em três atos sobre a vida soviética.
Quais são agora os grupos literários mais influentes na Rússia? Depende de que influência falar. A maior influência — isto é poder — está em mãos dos chamados "escritores proletários, que seguem a ideologia oficial do partido comunista e, por isso, praticamente têm o direito ao monopólio da crítica literária — uma arma séria. Além dos talentos militares, alguns dos membros desse grupo têm, sem dúvida nenhuma, talentos civil e literário. Se quiser nomes eu posso citar-lhe o dramaturgo Afinoguenov, os romancistas Cholokhv, Lavrukhin e Fadeev. Mas, a maioria dos membros deste grupo trabalha ainda segundo os métodos do naturalismo de antes da revolução. No campo da forma literária avançaram muito mais os autores dentre os chamados "simpatizantes" — "les compagnons" e no sentido literário, naturalmente, eles exercem influência sobre seus vizinhos proletários. Entre os "simpatizantes"o grupo mais interessante e vivo é "Os irmão de Serapião" (V. Ivanov, Fedin, Tikhonov, Kaverin, Zochenko, Slonimski e outros) É agradável para mim assinalar que quase todos eles aprenderam comigo a técnica de nossa profissão: em 1919-1922 junto à Dom Iskusstv de Peterburgo havia um estúdio literário, onde eu dava aulas de técnica da prosa artística. Neste estúdio surgiram os "Irmãos de Serapião", e eu fui seu obstetra literário. Como vê, eu tenho mais uma profissão. Além dos "Irmãos de Serapião", passaram pelo gabinete do meu apartamento de Leningrado muitos e muitos outros jovens escritores.
Qual a situação dos escritores agora na Rússia?
Oh! Lá zelam por eles mais do que em outros países. Pagam-lhes mais, eles recebem muito boa "ration quotidien de vivres et pour comble — ration quotidienne ideologique. Aqui na Europa, parece que há muitos escritores "ayants mil fois" lá temos muitos antípodas: ecrivains n'ayant nul doutes. Esta é, provavelmente, uma condição muito feliz.
Sans blagues? Mas eu falo sério, pelo menos em relação ao grande grupo de escritores que assimilaram total e sinceramente a ideologia oficial. É muito mais difícil a situação dos "simpatizantes" — dos escritores que não são membros do partido, em sua maioria saídos do meio intelectual. Muitos deles agora têm de mudar radicalmente sua psicologia, seus gostos, como dizem entre nós "reestruturar-se". Para alguns isto é muito fácil. Mas não os respeitam nem mesmo aqueles a quem eles servem, eles recebem o apelido depreciativo de "oportunistas". Outros procuram fazê-lo como sinceridade e para estes é um processo difícil, doloroso, que termina às vezes tragicamente. O suicídio de Maiakovski — estou convicto disto — foi um desenlace de tal tragédia. Ele era um grande poeta, inovador, com grande arte formal e indubitável élan lírico. Ele conscientemente cortou de si o lírico — "pisou na garganta da canção" (como ele escreveu em um de seus últimos versos) para se tornar um poeta político. Esta cruel intervenção cirúrgica custou-lhe muito caro. A história de amor (que em sua vida foram muitas) podia, naturalmente, ter sido apenas pretexto, mas não causa de sua morte.
(1) Evidentemente é um erro, o correto é 1908.
(2) Trata-se do romance de A. Huxley Admirável Mundo Novo. Drieu de la Rochelle (1893—1945) — escritor francês, amigo comum de A. Huxley e E. Zamiatin.
(3) Trata-se da tragédia Átila.
(4) Em vida de E. Zamiatin estas peças não foram apresentadas em teatros parisienses.
AUTOBIOGRAFIA — 1929
Avtobiografii, In Izbrannie proizvedenie v dvukh tomakh, tom 1, str.31—38, Izd. Khudojestvennaia Literatura, Moskva, 1990.
Autobiografia, In Obras escolhidas de Zamiatin E. I. em dois volumes, publicadas em 1990 pela editora Literatura Artística, Vol.1, pp. 31—38.
Traduzido do russo por Clarice Lima Averina
Como buracos numa cortina escura fechada — instantes da minha primeira infância.
A sala de jantar, a mesa coberta com oleado e, na mesa, um prato com algo estranho, branco, brilhante e, maravilha, aquela coisa branca desaparece de repente, não se sabe para onde foi. No prato havia um pedaço do universo desconhecido, exterior, de fora do quarto: trouxeram neve no prato para me mostrar, e esta neve incrível ficou-me até hoje na memória.
Na mesma sala de jantar. Alguém tem-me ao colo diante da janela e lá fora, entre as árvores a esfera vermelha do sol escurece, eu sinto que é o fim e o mais terrível de tudo é que minha mãe ainda não voltou de algum lugar. Depois eu soube que esse alguém era a minha avó e que neste segundo eu estive à beira da morte — tinha então um ano e meio.
Mais tarde, tinha dois ou três anos. Pela primeira vez eu via muitas pessoas, uma multidão. Foi em Zadonsk: meu pai e minha mãe foram lá de carroça e levaram-me. A igreja, a fumaça azul, cânticos, luzes, um epilético a latir como um cão, um nó na garganta. Eis que tudo terminou, empurrões, sou levado pela multidão para fora e fico só na multidão: meu pai e minha mãe não estão lá e nunca mais estarão, estou só para sempre. Sento-me num túmulo qualquer ao sol e choro amargamente. Vivi uma hora só no mundo.
Em Voronej. O rio, uma banheira incomum, estranha para mim e dentro dela (depois lembrar-me-ia disto quando vi ursos brancos em lagos) banha-se um enorme corpo feminino rosado e volumoso — é a tia de minha mãe. Fico curioso e com um pouco de medo: pela primeira vez entendo o que é uma mulher.
Espero à janela, olho a rua vazia, com galinhas mergulhadas na poeira. E finalmente chega nosso tarantás (3), que traz meu pai do ginásio, ele está em cima de um assento grotescamente alto, com a bengala entre os joelhos. Espero o almoço com o coração apertado, mesa abro solenemente o jornal e leio em voz alta as enormes letras "O Filho da Pátria". Eu já conheço esta coisa misteriosa — as letras. Tenho uns quatro anos.
Verão. Cheiro de remédios. De repente minha mãe e minha tia fecham apressadamente a janela, trancam a porta da varanda e com o nariz colado ao vidro vejo: vão levá-los. Um cocheiro com bata branca, a carroça coberta com pano branco, e debaixo do pano pessoas encolhidas a mover pernas e braços: doentes de cólera. O isolamento dos doentes de cólera era na nossa rua, ao lado de nossa casa. Meu coração palpita. Eu sei o que é a morte. Tenho cinco, seis anos.
E, finalmente, uma manhã de agosto suave diáfana. O bater distante e transparente dos sinos do mosteiro. Passo ao lado do jardinzinho diante de nossa casa e sem olhar eu sei: a janela está aberta e olham para mim — minha mãe, avó e irmã. Porque eu, pela primeira vez, vesti calças compridas — "para sair" — e um blusão do uniforme do ginásio, levo uma mochila às costas, vou pela primeira vez ao ginásio. Ao meu encontro o aguadeiro Izmachka agita-se em cima de seu barril e várias vezes olha para mim. Estou orgulhoso. Sou grande. Tenho mais de 8 anos.
Tudo isto entre os campos de Tambov, em Lebedian uma cidade famosa por seus trapaceiros, ciganos, feiras de cavalos, e sua linguagem solidamente russa, sobre a qual escreveram Tolstoy e Turguenev. De 1884 a 1894.
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Adiante o ginásio, cinzento como o pano do uniforme. De vez em quando sobre o cinza uma maravilhosa bandeira vermelha. A bandeira vermelha era colocada na torre de vigilância dos bombeiros e então não significava absolutamente a revolução social e sim o frio de 20 graus negativos. Aliás, esta era a revolução de um dia na vida entediante e programada do ginásio.
A lanterna céptica de Diógenes aos doze anos. A "lanterna" (1) foi acesa por um grandalhão da segunda série e — azul, roxa, vermelha — ficou acesa debaixo de meu olho esquerdo por duas semanas inteiras. Eu rezei para que a "lanterna" se apagasse. O milagre não ocorreu. Comecei a refletir.
Muita solidão, muitos livros, Dostoevsky desde cedo. Até hoje lembro do tremor e faces afogueadas por causa de "Nietotchka Niezvanova". Dostoevsky permaneceria por muito tempo como o mais respeitável e até mesmo temível. Gogol era um amigo (muito mais tarde Anatole France passou a sê-lo também).
A partir de 1986 — o ginásio em Voronej. Minha especialidade, que todos conheciam, era redação em russo. A especialidade, que ninguém conhecia, todas as experiências possíveis sobre mim próprio — para me "temperar".
Lembro-me que na sétima série, na primavera, fui mordido por um cão raivoso. Peguei um manual de medicina qualquer e li que o período comum antes do aparecimento dos sintomas da raiva era de duas semanas. E decidi esperar esse prazo, para ver se tinha ou não pegado raiva — para testar o destino e a mim próprio. Durante essas duas semanas escrevi um diário (o único na vida). Duas semanas depois, não ficara raivoso e comuniquei o fato à direção, que me enviou imediatamente a Moscou para tomar a vacina de Pasteur. Minha experiência terminou bem. Mais tarde, uns dez anos depois, durante as noites brancas de Peterburgo, quando fiquei louco de amor — fiz a experiência com mais seriedade, mas não com mais inteligência.
Deixei o pano cinza do ginásio em 1902. A medalha de ouro foi empenhada por 25 rublos numa casa de penhores em Peterburgo e lá ficou.
Lembro-me do último dia no gabinete do inspetor ("da égua" segundo a hierarquia do ginásio) os óculos na testa, puxando as calças para cima (suas calças viviam caindo) estendeu-me uma brochura. Li a dedicatória: "À minha alma mater da qual só tenho más recordações. P. E. Shegoliev". E o inspetor sentencioso, fanhoso, acentuando a letra "o" (2): "Isso é bom? Também terminou o ginásio com medalha e o que escreve? Está na prisão? Meu conselho: não escreva, não siga este caminho". A lição não ajudou.
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Peterburgo, início dos anos 1900 — Peterburgo de Komissarjevskaia, Leonid
Andreev, Witte, Plevé, trotadores cobertos de rede azul, bondes, puxados a cavalo, estudantes de uniforme e espada e estudantes com paletó azuis de botões do lado. Eu estudava na escola Politécnica, era um daqueles de paletó com botões do lado.
Num domingo branco de inverno na avenida Nevski — multidões escuras e lentas esperavam alguma coisa. A torre da Duma rege a multidão, que não tira os olhos do regente. E quando foi dado o sinal — uma explosão à uma da tarde, na avenida de todos os lados manchas humanas, farrapos da Marselhesa, bandeiras vermelhas, cossacos, garis, policiais. A primeira, para mim, manifestação de 1903. E quanto mais se aproxima 1905 mais febril é o movimento, as reuniões mais ruidosas.
No verão, estágio nas fábricas, a Rússia, os vagões fanfarrões e alegres de terceira classe. Sevastopol, Nijni, as fábricas da região do Kama, Odessa, porto, os maltrapilhos.
Verão de 1905, especialmente azul, multicolor, cheio de gente e de acontecimentos. Eu fazia um estágio no navio "Rossia", que ia de Odessa a Alexandria. Constantinopla, mesquitas, derviches, bazares, o cais de mármore branco de Esmirna, beduínos de Beirute, a ressaca branca de Jaffa, Athos verde-negro, o pestilento Port Said, a África amarela e branca, Alexandria, com policiais ingleses, vendedores de crocodilos empalhados, o famoso Tartuch. Singular, isolada de tudo, a incrível Jerusalém, onde passei uma semana na casa de um árabe conhecido.
Ao retornar a Odessa — a epopéia do motim no "Potemkin". Com o maquinista do "Rossia", empurrado, pisado, embriagado pela multidão, vaguei no porto todo o dia e a noite inteira, no meio dos disparos, incêndios e pogroms.
Naqueles anos ser bolchevique significava seguir a linha da resistência maior, e eu era então bolchevique. Era o outono de 1905, greves, a avenida Nevski cheia de gente, varrida pelo projetor do almirantado, em 17 de outubro, comícios em estabelecimentos de ensino superior.
Certa vez em dezembro à noite veio ao meu quarto na travessa Loman um amigo operário, com orelhas de abano, Nicolai V., com um saco de papel daqueles de pãezinhos da Casa Filipov, no saquinho havia piroxilina. "Deixo com você este saquinho porque os policiais estão atrás de mim" — "Pode deixar". Até agora vejo o saco no parapeito da janela, ao lado de um pacote de açúcar e de salame.
No dia seguinte, no quartel do bairro de Viborg no momento em que na mesa estavam planos, parabelluns, mausers, a polícia, — éramos trinta apanhados na ratoeira —, em meu quarto, à esquerda, no parapeito da janela estava o saquinho de pães da Casa Filipov e panfletos debaixo da cama.
Quando, revistados e espancados, fomos divididos em grupos, eu, junto com outros quatro — fiquei ao lado da janela. Vi na rua, junto ao poste, caras conhecidas, aproveitei um momento para lançar um bilhete pedindo que retirassem do meu quarto e dos outros quatro tudo o que não devia estar lá. Isto foi feito. Mas eu só soube disto mais tarde, então, durante vários meses, na cela da Chpalernaia sonhei só com o saco de pãezinhos da Casa Filipov no parapeito da janela à esquerda.
Na cela apaixonei-me, estudei taquigrafia, inglês e escrevi versos (isto é inevitável). Na primavera de 1906 fui libertado e mandado para minha terra natal.
Não suportei por muito tempo o silêncio, os sinos e os jardinzinhos de Lebedian. No verão, sem autorização fui a Peterburgo, depois a Helsingfors. Um quarto, que dava para a Erdoholmsgatan, e sob a minha janela o mar, os rochedos. À noite, quando mal se viam os rostos, realizavam-se comícios no granito cinza. De madrugada não se viam os rostos, a pedra negra e quente parecia branda — porque ela estava ao lado e os raios dos projetores de Sveaborg eram suaves.
Certa vez, nos banhos, um camarada nu apresentou-me um homenzinho nu, um pouco barrigudo: o homenzinho barrigudo era Kok, o famoso capitão da guarda vermelha. Alguns dias depois a guarda vermelha estava em armas, mal se viam ainda no horizonte os contornos da esquadra de Kronstadt, os esguichos das bombas de doze polegadas que explodiam na água, o rimbombar cada vez mais fraco dos canhões de Sveaborg. E eu disfarçado, escanhoado, com pince-nez, retorno a Peterburgo.
O parlamento no Estado. Pequenos estados dentro do estado — estabelecimentos de ensino superior com seus parlamentos. Conselhos de starostas. A luta dos partidos, propaganda eleitoral, cartazes, panfletos, discursos, urnas. Eu era membro — temporariamente presidente — do conselho de starostas.
Fui intimado a comparecer à delegacia. Na delegacia um papel verde procura-se "o estudante universitário Evgueni Ivanov Zamiatin" para ser banido de Peterburgo. Declaro honestamente que nunca estive na universidade, e que no papel há com certeza um equívoco. Lembro-me do nariz do comissário de polícia — um gancho, um ponto de interrogação: "Hum...Temos de investigar". Enquanto isto eu mudei para outro bairro: lá, seis meses depois, uma nova intimação, o papel verde, "estudante universitário", ponto de interrogação e informações. E assim durante 5 anos, até 1911, quando finalmente o erro no papel verde foi corrigido e expulsaram-me de Peterburgo.
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Em 1908 terminei a faculdade de construção naval do Intituto Politécnico e fui nomeado para a cadeira de arquitetura naval ( a partir de 1911 fui professor dessa disciplina. Juntamente com o projeto de um navio com torre blindada, estavam na minha mesa as páginas de meu primeiro conto, que enviei à revista "Obrazovanie", que era redigida por Ostrogorski. A secção de letras era coordenada por Artsibachev. No outono de 1908 o conto foi publicado. Quando me encontro agora com pessoas que leram esse conto, sinto-me tão embaraçado como quando encontro uma das minhas tias, cujo vestido molhei publicamente, quando tinha dois anos de idade.
Nos três anos seguintes — navios, arquitetura naval, régua de logaritmos, esboços, construções, artigos especiais nas revistas "Teplokhod" "Russkoe Sudovodstvo", "Isvestia Politekhnitcheskogo Instituta". Muitas viagens de trabalho por toda a Rússia: o Volga até Tsaritsin, Astrakhan, Kama, região de Donetsk, Mar Cáspio, Arkhanguelsk, Murman, Cáucaso e Criméia.
Nestes anos, entre esboços e número — alguns contos, que não dei para imprimir, em cada um deles eu sentia que havia ali algo que não correspondia. Encontrei o que faltava em 1911. Neste ano as noites brancas foram incríveis, havia muito branco e muito escuro. Nesse ano tive o exílio, uma doença grave e meus nervos cederam, Inicialmente vivi numa casa de campo vazia em Sestroretsk, depois, no inverno, vivi em Lakhta. Ali — a neve, solidão, silêncio — escrevi "Provinciana", aproximei-me do grupo "Zaveti" de Remizov, Prichvin, Ivanov-Razumnik.
Em 1913, tricentenário da dinastia Romanov, obtive o direito de viver em Peterburgo. Agora eram os médicos que me mandavam embora de Peterburgo. Fui para Nicolaev, construí lá algumas escavadoras, escrevi alguns contos e a novela "Nos cafundós do Judas". A revista Zaveti que a publicou foi censurada e apreendida, a redação e o autor foram chamados à responsabilidade penal. Julgaram pouco antes da revolução de fevereiro e absolveram.
O inverno de 1915-1916 novamente tempestuoso e febril terminou com desafio para um duelo em janeiro e em março partida para a Inglaterra.
Até então no Ocidente estivera apenas na Alemanha, Berlim pareceu-me condensada — 80% de Peterburgo. Na Inglaterra foi diferente: tão novo e tão estranho como em outros tempos em Alexandria , em Jerusalém.
Ali inicialmente o ferro, máquinas, esboços: construí quebra-gelos em Glasgow, New Castle, Senderland, Sowsheeds (aliás um dos maiores quebra-gelos é o "Lênin"). Os alemães lançam bombas de zeppelins e aeroplanos. Eu escrevi Os Ilhéus.
Quando nos jornais apareceram em letras grandes Revolution in Rússia, Abdication of Russian Tzar, não agüentei mais ficar na Inglaterra e em setembro de 1917, a bordo de um velho naviozinho inglês (se os alemães o afundassem, não se perdia muito), eu voltei para a Rússia. Navegamos durante muito tempo até Bergen, umas cinqüenta horas, com as luzes apagadas, com coletes salva-vidas e chalupas prontas.
Inverno alegre e terrível de 1917—1918, quando tudo se moveu, se perdeu no desconhecido. Navios, casas, fuzilamentos, buscas, plantões noturnos, comitês de bairro. Mais tarde, ruas sem bonde, longas filas de pessoas com sacos, dezenas de verstas por dia, burjuikas (4) arenques, aveia moída em moinho de café. E ao lado da aveia mirabolantes planos de publicar todos os clássicos de todos os tempos e todos os povos, unir todos os representantes de todas as artes, apresentar no teatro toda a história de todo o mundo. Não havia tempo para desenhos técnicos, a técnica prática secou e caiu de mim como uma folha amarela (da técnica restou apenas o ensino no Instituto Politécnico). Simultaneamente , um curso de literatura russa contemporânea no Instituto de Pedagogia Guertsen (1920-1921) um curso de técnica de prosa artística no Estúdio da Casa de Artes, trabalhava no conselho de redação da "Literatura Universal", na direção da União Russa de Escritores, no Comitê da Casa dos Literatos, no Conselho da Casa de Artes, na Secção dos filmes históricos PTO, na editora de Grjebin, "Alkonost", "Petrópolis", "Misl", na redação das revistas "Casa das Artes", "O Ocidente Moderno", "O contemporâneo russo". Durante estes anos escrevi relativamente pouco. Entre as coisas mais importantes o romance"Nós, publicado em inglês em 1925, depois em tradução para outras línguas, este romance ainda não foi publicado em russo.
Em 1925 traição à literatura: teatro, as peças A Pulga e a Sociedade dos tocadores de carrilhão honorários. A Pulga foi apresentada pela primeira vez no palco do Teatro Acadêmico Artístico de Moscou em 2 de fevereiro de 1925, a Sociedade dos tocadores de carrilhão honorários em novembro de 1925 no Grande Teatro Mikhailovski em Leningrado. A nova peça — a tragédia Átila foi concluída em 1928. Em Átila cheguei aos versos. Impossível ir mais além, volto ao romance e contos.
Penso que se em 1917 não tivesse voltado da Inglaterra, se não tivesse vivido todos estes anos junto com a Rússia não poderia mais escrever. Vi muita coisa: em Peterburgo, em Moscou, na periferia em Tambov, nas aldeias perto de Vólogda, Pskov, em vagões de carga.
Assim se fechou o círculo. Ainda não sei, não vejo quais serão doravante as curvas de minha vida.
(1) N.T. A palavra "lanterna" na gíria significa "olho roxo"
(2) N.T. Em russo a letra "o" não acentuada é lida quase que como um "a" em muitas regiões.
(3) N.T. Tarantás é uma espécie de carruagem coberta, com quatro rodas.
(4) N.T. Uma espécie de aquecedor de ambiente, constituído de um barril metálico com uma chaminé, dentro do qual acendiam fogo.
SOBRE A TRADUTORA
Clarice Lima Averina é paulista. Aprendeu russo em Moscou, onde concluiu a Faculdade de História, da Universidade da Amizade dos Povos. Nós é o quarto livro por ela traduzido do idioma russo. Traduziu também Oriente e Ocidente, História do proletariado brasileiro, de Boris Koval e Bíblia para crentes e não-crentes de Emelian Iaroslavsky, estes dois últimos publicados pela Alfa-Omega.
Trabalhou como tradutora, durante 17 anos, na redação da América Latina da Rádio Moscou Internacional. Durante o tempo em que viveu em Moscou (mais de 20 anos) fez diversos trabalhos de tradução e versão, de contos, filmes, e artigos sobre diferentes temas. No ano de 2000 foi nomeada, pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, tradutora pública e intérprete comercial, tendo conseguido o quarto lugar no concurso da JUCESP (os três primeiros colocados eram russos).
Muito mais do que uma obra política, Nós insurge como um corajoso ataque ao totalitarismo que com suas mãos de ferro viola os direitos individuais, corrompe as relações humanas, usurpa a liberdade do livre-pensar e agir, destrói a criatividade e violenta a arte em nome de idéias equivocadas sobre um suposto bem comum.
É ainda um grito em defesa da liberdade do homem; um alerta, para um perigo eminente: Cuidado! Querem fazer-nos acreditar na segurança da não-liberdade.
Original, dono de aguçada percepção e imaginação, Zamiatin, numa narrativa surrealista, permeada pela ironia — combinando realidade e irrealidade, acontecimentos trágicos e risíveis, fazendo uso de uma linguagem contida, propositalmente disciplinada; preocupado com a liberdade de escolha, com o querer e o criar — profetiza a desumanização, os pensamentos e as ações programadas, a banalização das necessidades do homem, a repressão das emoções, o extermínio dos que estão em desacordo com a ordem imposta, a produção de autômatos, as lavagens cerebrais, a destruição daqueles que lutam para manter vivas imaginação e originalidade.
A história em Nós, fala das causas e de como se articula e acontece uma revolução num tempo futuro, num espaço cercado por muros, onde os membros da sociedade, constantemente vigiados pelos Guardiões, habitam casas de paredes de vidro, não recebem nomes, mas números; são obrigados a reverenciar ritualmente o Benfeitor e sua Máquina, têm pensamentos e atitudes condicionados, executam trabalhos mecânicos, e suas vidas particulares e sociais são programadas e controladas por um governo autoritário, o Estado Unificado. O controle e as programações vão mesmo até seus encontros íntimos transformados em impessoais, com horários e locais estipulados, entre indivíduos (números) previamente registrados.
Temas, situações e conceitos encontrados em Nós (escrito em 1920-21) — aqui, numa tradução precisa de Clarice Lima Averina, a partir da primeira edição russa, de 1988 — inspiraram alguns escritores como Aldoux Huxley em Admirável mundo novo (de 1932) e George Orwell em 1984 (de 1949).
Nós é uma contribuição notável e pioneira de Zamiatin à discussão da utopia, tema mais do que presente na literatura russa.
ISBN 85-295—0044-X
Capa: Antônio do Amaral Rocha
Ilustração: Paul Klee, Italienische Stadt, 1928
212 pp. - R$ 46,00
PREFÁCIO DA EDIÇÃO RUSSA
Título original: MI, in Utopiia i Antiutopia XX Vieka Vietsher b 2217 Gadu Ruskaia Litieraturnaia Utopiia Isdalistivo Progress Moskva — 1990
EVOLUÇÃO DA LITERATURA UTÓPICA RUSSA
Por Viatcheslav Chestakov
Tradução de Clarice Lima Averina
Na história da literatura, os romances e novelas utópicos sempre desempenharam um grande papel, por serem uma das formas de conscientização e avaliação da representação do futuro. Partindo, via de regra, da crítica do presente, a utopia descrevia o desenvolvimento ulterior da sociedade, seus possíveis caminhos, esboçava variantes do futuro. Até hoje conserva-se esta função da literatura utópica, apesar do rápido desenvolvimento da futurologia e popularidade da ficção científica, que também procuram conhecer o futuro.
A literatura utópica mundial é muito ampla. No decurso de sua história ela passou por períodos de ascensão e decadência, êxitos e fracassos. Às vezes os autores de obras utópicas criavam obras claramente fracas no sentido artístico e cognitivo. Mas, ao mesmo tempo, foram criadas obras-primas, tais como Utopia, de Tomas Morus ou Cidade do sol, de Campanella, que até hoje são modelos do pensamento e criação utópicos.
Hoje é difícil imaginar um panorama geral da História sem as obras utópicas. Como disse Oscar Wilde, não vale a pena olhar o mapa da terra que não mostra a utopia, pois esse mapa ignora o país, que a humanidade procura incansavelmente. O progresso é a realização de utopias.
O termo utopia teve origem no nome da fantástica ilha imaginária no famoso livro de Tomas Morus. Este termo vem do grego "u" — "não" e "topos" — "lugar". O significado literal do termo utopia é: lugar que não existe.
Existiram também outras versões deste conceito, em particular originária do grego "eu" — "perfeito", "melhor" e "topos" — "lugar", isto é lugar perfeito, país da perfeição. Ambas interpretações desta palavra estão amplamente representadas na literatura utópica. Lembremos os nomes de conhecidas obras utópicas, como Notícias de lugar nenhum de William Morris, Erewhon (anagrama de nowhere) de Samuel Butler ou Cidade do sol de Tommaso Campanella, ou ainda, Admirável mundo novo de Aldous Huxley (este último título encerra, é verdade, franca ironia) etc.
Na literatura contemporânea são utilizados também outros conceitos, relacionados com o termo utopia e originários da raiz "topos". É — "distopia" do grego "dis" — "ruim" e "topos" — "lugar", isto é, lugar ruim, algo diametralmente oposto à utopia como mundo perfeito, melhor, empregado para designar o gênero literário especial, a chamada utopia negativa, também oposta à utopia tradicional, positiva.
Desse modo o termo utopia é agora complexo e de significado múltiplo. Entretanto, apesar de toda a variedade de nuances de significado, a função fundamental e tradicional desse termo é designar um país imaginário com a finalidade de servir de exemplo de regime social.
No decurso da História a utopia, como uma das originais formas de consciência social, teve características como interpretação do ideal social, crítica social, exortação a fugir da realidade sombria, e também tentativas de antecipar o futuro da humanidade. A utopia literária entrelaça-se estreitamente com as lendas da "Idade de Ouro" das "ilhas dos bem-aventurados", com diferentes concepções e ideais religiosos e éticos. Na época do Renascimento a utopia adquiriu, preponderantemente, a forma de descrição de Estados perfeitos ou cidades ideais, que existiriam em algum lugar da terra, via de regra, em algum ponto distante do globo terrestre, em ilhas inacessíveis, debaixo da terra ou em montanhas. A partir do século XVII torna-se popular uma forma especial de utopia literária: o chamado romance estatal, que contava sobre viagens a países utópicos e continha, antes de mais nada, a descrição de seus regimes estatais. Ao mesmo tempo difundiram-se amplamente diferentes projetos e tratados utópicos.
Na História existiram os mais variados tipos de pensamento utópico, que refletiam os interesses de diferentes classes e camadas sociais. Existiram utopias escravistas (utopias de Platão e Xenofonte) utopias feudais, por exemplo: A cidade de Deus, de Santo Agostinho e Cristianópolis, de Andréas, numerosas utopias burguesas e pequeno—burguesas. Muitas obras utópicas foram dedicadas não a regimes sociais em geral, mas propunham a solução de determinados problemas sociais: tratados sobre a "paz eterna" difundidos nos séculos XVI—XIX (Erasmo de Roterdam, Saint—Pierre, Kant, Bentham); utopias pedagógicas, ético-morais e estéticas (Jan Amos Komensky, Jean Jacques Rousseau, Lev Tolstoy, Friedrich Schiller); utopias técnico-científicas (Francis Bacon) e outros.
Entre utopias, diferentes por seu conteúdo social, destaca-se mais claramente o socialismo utópico, que expressava os ideais das massas trabalhadoras oprimidas, fundamentava as idéias da igualdade e justiça social. Na literatura do socialismo utópico existiam, por sua vez, diferentes orientações, que se distinguem umas das outras por seu significado social e maturidade teórica dos ideais socialistas. O socialismo utópico clássico do século XIX foi uma das fontes do marxismo.
Os clássicos do marxismo, assinalando a limitação histórica do socialismo utópico, valorizaram altamente seu papel como prognóstico. "O socialismo teórico alemão nunca esquecerá que se apóia nos ombros de Saint-Simon, Fourier e Owen, três pensadores, que, apesar do caráter utópico e fantástico de suas doutrinas, estão entre as maiores inteligências de todos os tempos e que anteciparam genialmente inúmeras verdades, cuja correção nós agora provamos cientificamente" (1).
Como forma de fantasia social, a utopia baseia-se, no fundamental, não em métodos científicos e teóricos do conhecimento da realidade, mas na imaginação. A isto está relacionada uma série de particularidades da utopia, inclusive tais como afastamento intencional da realidade, anseios de reconstruir a realidade segundo o princípio: "tudo deve ser ao contrário", livre passagem do real ao ideal. Na utopia sempre está presente a hiperbolização do princípio espiritual, nela destina-se um lugar especial à ciência, à arte, educação, legislação e outros fatores da cultura. Com o surgimento do comunismo científico, o significado cognitivo e crítico da utopia positiva começa a cair gradualmente.
Adquire grande significado a função de crítica da sociedade, antes de mais nada, burguesa, assumida pela chamada utopia negativa, novo tipo de utopia literária, que se formou da segunda metade do século XIX. A utopia negativa ou anti-utopia diferencia-se em muito da utopia clássica positiva. As utopias clássicas tradicionais significavam uma idéia figurada do futuro ideal e desejável. Na utopia satírica, utopia negativa, romance-advertência descreve-se não o futuro ideal mas o futuro indesejável. A imagem do futuro é parodiada, criticada. Isto não significa, naturalmente, que com o surgimento das utopias negativas, desaparece ou desvaloriza-se o próprio pensamento utópico, como supõe, por exemplo, o historiador inglês Chad Walsh. Em seu livro Da utopia ao pesadelo, ele escreve: "Uma porcentagem cada vez menor do mundo imaginário é utopia, uma porcentagem cada vez maior dele são pesadelos. A anti-utopia ou utopia no avesso foi, no século XIX, uma moldura insignificante da produção utópica. Hoje ela é o tipo dominante, se já não se tornou predominante estatisticamente". (2)
Na realidade, a utopia negativa não elimina o pensamento utópico, mas apenas o transforma. Ela, na nossa opinião, herda da utopia clássica a capacidade de prognóstico e crítica social. Naturalmente que a anti-utopia é um fenômeno contraditório e heterogêneo, no qual se encontram traços tanto conservadores como progressistas. Mas, nas melhores obras desse tipo surgiram novas funções ideológicas e estéticas — advertir sobre as conseqüências indesejáveis do desenvolvimento da sociedade burguesa e seus institutos.
O surgimento das anti-utopias é um fenômeno pan-europeu. Ele é observado, em essência, simultaneamente em quase todos os países da Europa Ocidental, em particular na Inglaterra, Alemanha e França.
É digno de nota o fato de que a Inglaterra, pátria das utopias positivas, é também pátria da utopias negativas, utopias-advertências. Entre as primeiras anti-utopias estão Raça futura, de Bulver Litton (1870); Erewhon, de S. Butler (1872); Através do zodíaco de Persi Greg (1880); A máquina pára, de E. M. Forster (1911) e outras.
Na Alemanha, entre as primeiras anti-utopias, destaca-se o romance de M. Konrad, Na escuridão purpúrea (1895). Nele descreve-se a Europa do século XXX. Konrad desenha um quadro sombrio do futuro. Guerras intermináveis que dilaceram a Europa, no final leva à guerra mundial e ao desaparecimento de toda a cultura européia.
Elementos da utopia negativa refletem—se na obra multilateral de Herbert Wells — nos romances A guerra dos mundos e A guerra no ar. "Os romances de ficção científica social de Wells" — escreveu em 1922 o escritor russo Evgueny Zamiatin — "diferenciam-se das utopias assim como O + A diferencia—se do —A; não são utopia, na maioria dos casos são panfletos sociais, vestidos na forma artística de romance de ciência ficção". (3) Motivos da anti-utopia são próprios também dos romances A ilha dos pingüins, de Anatole France e O tacão de ferro, de Jack London. O próprio desenvolvimento da literatura utópica, sua evolução quanto ao gênero e conteúdo não podiam deixar de influir sobre a interpretação semântica do termo utopia, tanto na teoria sociológica como na própria prática literário-artística. Não é por acaso que hoje a utopia não é apenas a representação ideal do futuro. É descrição do futuro possível, tanto desejável como indesejável. Sendo que as utopias literárias, diferentemente dos prognósticos sociais ou projetos futurológicos, com freqüência são romances ou novelas de enredo empolgante; são, via de regra, composições no gênero romance de aventuras, viagens ou ficção científica.
A ficção científica é importante elemento da utopia. Os autores de romances utópicos sempre usaram métodos de descrição fantástica. Mas, no entanto, a utopia como gênero de arte tradicional é bastante definido, diferencia-se da literatura fantástica ou ficção científica contemporânea, que nem sempre se ocupa da construção de possível imagem do futuro. A utopia diferencia-se também das lendas populares sobre "um futuro melhor", porque ela, no final das contas, é gerada pela consciência individual. Distingue—se a utopia também da sátira (apesar de, com freqüência, incluir o elemento satírico) porque critica, via de regra, não apenas um elemento concreto, mas o próprio princípio do regime social. Finalmente ela se distingue também dos projetos futurológicos, porque é uma obra de arte, que não leva a determinado equivalente social e sempre encerra simpatias e antipatias, gostos e ideais do autor.
Cada país deu e dá sua contribuição ao tesouro do pensamento utópico. O catálogo mundial da literatura utópica no período do século XVI ao século XIX tem cerca de mil títulos. Entretanto, também posteriormente, a utopia não desaparece. Por exemplo, na Inglaterra, na primeira metade do século XX, surgiram cerca de 300 obras de conteúdos utópicos, dezenas de utopias foram criadas no início do século XX na Alemanha, nos EUA, somente no período de 1887 a 1900 foram escritas mais de 50 utopias.
Na história da literatura russa existe também uma tradição bastante sólida de criação de composições utópicas, ligada a nomes tais como Sumarokov, Radishev, Odoevsky, Tchernichevsky, Dostoiévsky, Saltikov Shedrin e outros.
A utopia literária russa perde em quantidade para a européia ocidental. Na Europa o gênero da utopia é mais antigo e mais popular. A utopia surge praticamente na aurora da literatura européia, pode-se dizer que ela começou com Platão. Na Rússia a utopia surge no século XVIII — na época da criação da literatura da idade moderna. Em compensação, a partir desse período, ela se desenvolve ativamente, correspondendo às necessidades do pensamento social russo. No entanto, a utopia russa é menos conhecida do que a européia ocidental. Esta circunstância pode ser explicada por duas causas. Em primeiro lugar a utopia russa nem sempre se encontrava em uma obra independente, muitas vezes se dissolvia em obras literárias de outros gêneros: romances sociais, contos fantásticos (por exemplo, motivos utópicos na Viagem de Petersburgo a Moscou de Radishev). Em segundo lugar, pesquisadores russos e estrangeiros não deram atenção suficiente a este tema. Mais do que isto, alguns deles acham que na Rússia a utopia como gênero de arte em desenvolvimento conseqüente, ou não existiu, ou teve caráter de imitação e era insignificante no sentido literário.
Hoje semelhante opinião é considerada arcaica e errônea. A atenção para com a literatura utópica russa surgiu nos últimos anos. Há fundamentos para afirmar que a literatura russa é mais rica em composições utópicas do que se pensa. Sendo que estas composições são variadas tanto por seu conteúdo social como por suas características de gênero. Aqui nós encontramos tanto utopias no espírito do "romance estatal", popular no século XVIII como utopias dezembrista, educativas, eslavófilas e obras no espírito do socialismo utópico, e sátiras utópicas, que anteciparam o gênero da "utopia negativa", que se tornou popular na segunda metade do século XIX e início do século XX e outros tipos de literatura utópica.
As utopias socialistas surgiram na consciência popular ainda na antiga Rússia. Elas tinham caráter de esperanças ou tradições, como por exemplo, a lenda sobre Aventuras de Agapia no paraíso ou Visita de Zocima aos rakhmanos. Entretanto as primeiras utopias literárias, no sentido pleno da expressão, surgiram na Rússia no século XVIII. Então surgiu também um grande interesse pelas utopias européias, que eram traduzidas para o russo. Assim, na segunda metade do século, foram publicadas duas edições da Utopia de Tomas Morus (é verdade que a edição de 1789 foi queimada por ordem de Catarina II), traduções de romances utópicos de L. Goldberg, D. Ramsay, F. Fenelon, B. Fontenele e outros. Inicialmente as novelas e romances utópicos russos usavam amplamente métodos e enredos literários das utopias européias. Entretanto, imitadores na forma, eles sempre refletiram a vida social russa, referindo-se a problemas da realidade russa.
A maioria das utopias européias tratava de viagens ou visita inesperada a um país desconhecido, não assinalado nos mapas geográficos. Mikhail Sherbatov assimila este enredo tradicional, por exemplo, ao descrever sua "terra de Ofir" (Viagem à terra de Ofir). Porém, na literatura russa, com maior freqüência, fala-se do futuro, que o herói vê em sonhos. Claro que nem todos os sonhos podem ser considerados utopia, mas só aqueles que permitiam ao escritor dar uma olhada no futuro. Nisto se baseia o conto de Sumarokov "O sonho da sociedade feliz", a notável descrição do sonho da novela de Radishev Viagem de Peterburgo a Moscou, o Sonho de Ulibichev, o quarto sonho de Vera Pávlovna do romance Que fazer?, de Tchernichevsky, "O sonho do homem engraçado" de Dostoiévsky e outros.
Por que justamente o sonho tornou-se o meio narrativo tradicional na literatura utópica russa? Em certo grau, pelo visto isto se explica pela censura da literatura russa. Pois as descrições utópicas do futuro sempre foram uma forma perigosa de literatura, pois se referiam a muitos problemas sociais agudos. A censura controlava rigorosamente e com freqüência proibia muitas narrativas utópicas. Não foi por acaso, que Catarina II ordenou queimar Utopia de Tomas Morus! O sonho era outra coisa. Pois ele era uma forma convencional e não-obrigatória de representação do futuro. O autor não pode ser responsabilizado pelo que sonha. Existia também outra causa, talvez mais significativa.
O escritor e pensador russo, talvez mais do que seu confrade europeu, sentia a diferença entre o ideal e a realidade. Aquilo que o autor e filósofo europeu achava possível já no processo de criação próxima (o viajante que contava com detalhes concretos sobre uma sociedade que existia na realidade) para o utopista russo parecia um grande sonho, realizável apenas em um futuro muito distante.
Em 1858, Aleksandr Guertsen publicou em Londres duas obras Sobre danos aos costumes na Rússia, de Sherbatov e Viagem de Peterbugo a Moscou de Radishev. Não foi por acaso que ele publicou estas duas obras, pois elas eram, em essência documentos do pensamento crítico e radicalismo político. Entretanto em seu prefácio à edição, Guertsen assinalou as diferenças substanciais na posição política de Sherbatov e Radishev.
"O príncipe Sherbatov e Radishev" — escreveu ele — "representam concepções extremas da Rússia dos tempos de Catarina. Tristes sentinelas em duas portas diferentes, eles, como Jano, olham para lados opostos. Sherbatov, dando as costas para a corte dissoluta de seu tempo, olha para a porta em que entrou Pedro I e atrás dela vê a Rússia moscovita cerimoniosa e arrogante, e o velho descontente acha que o modo de vida entediante e semi-selvagem de nossos ancestrais é um ideal perdido."
É totalmente diferente a posição de Radishev, para o qual o ideal é o futuro e não o passado. Radishev olha para frente, sente a influência dos últimos anos do século XVIII. Nunca o peito humano esteve tão pleno de esperanças do que na grande primavera dos anos noventa... Radishev está muito mais próximo de nós do que Sherbatov; é claro que seus ideais estavam tão alto no céu como os ideais de Sherbatov estavam profundamente no túmulo; mas eles eram nossos sonhos, sonhos dos dezembristas. Esta ligação "interna" refletiu-se, além de outras coisas, no fato de que os dezembristas, como Radishev, trataram da utopia literária como arte que permite unir a crítica social do presente com uma olhada para o futuro.
Entre as utopias dezembristas estão, antes de mais nada, a novela Sonho de Aleksandr Ulibichev, que aderiu aos dezembristas, e as Cartas européias, de Vilguelm Kiukhelbeker. As últimas foram escritas em nome de um americano, viajando pela Europa no século XXVI, e tecendo considerações sobre o passado e presente dos países europeus. Ele comunica que a Europa naquele tempo "envelheceu", países tais como a Itália e Espanha entraram em decadência, Paris e Londres desapareceram da face da terra. "A providência tirou-lhes a luz, mas somente para ordenar ao sol da verdade brilhar melhor sobre a Ásia, sobre a África, sobre a sucessora natural da Europa — a América".
Como assinalou Iury Tinianov, que pesquisou a obra de Kiukhelbeker, não foi por acaso que ele recorreu à América, isto representava a idéia do futuro da Rússia. Kiukhelbeker, futuro dezembrista, tinha desenvolvido o sentido do grande futuro histórico que sua pátria tinha pela frente e a fé firme no "aperfeiçoamento do ser humano". Sua "América" é a futura Rússia do dezembrista; ele relaciona com ela a juventude e significado de seu país, em comparação com o qual a Europa envelheceu.
Na segunda metade do século XIX surge na literatura russa uma série de obras, notáveis por seu conteúdo sócio-filosófico e nível estético, que tinham motivos utópicos e realizavam os princípios artísticos da utopia. E aqui se deve citar em primeiro lugar obras de Dostoiévsky. A idéia da "Idade de Ouro" da humanidade sempre emocionou o escritor. Dostoiévisky torturava-se com a questão: será possível ao homem voltar-se para a vida natural e beleza idílica, que está relacionada com a imagem da "Idade de ouro", ou a catástrofe o espera — se não o extermínio físico direto, pelo menos a queda de todos os valores morais e culturais. A idéia da "Idade de Ouro" soa já nos devaneios de Raskolnikov no romance Crime e castigo e no conto "O sonho do homem engraçado".
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É digna de nota, por exemplo, a novela do jornalista peterburguense Nicolai Fiodorov, Noite de 2217.
Assinalamos que muitos momentos da utopia negativa de Fiodorov podem ser explicados pela influência da utopia de Bellani, Olhando para trás. Não é por acaso que tanto nele, quanto em Belanni figura o Exército do Trabalho. O trabalho sem alegria reduz-se a operações mecânicas, sem conteúdo. A população é dividida em centenas e milhares, sendo que cada deve portar seu número de trabalho.
Não apenas a vida particular, mas também, a social é subordinada a padronização. Até mesmo as relações humanas íntimas, como o amor, são subordinadas a um único objetivo — reprodução de uma prole saudável e perfeita. A família não existe, ela desapareceu há muito tempo como resquício romântico e ridículo.
A novela de Fiodorov é típica do gênero da anti-utopia. Seu conteúdo mesmo em detalhes lembra algumas utopias negativas posteriores.
A utopia de Fiodorov é dirigida contra as idéias de ultra-esquerda em relação ao futuro. São, em essência as idéias que habitualmente associamos com o "comunismo de quartel".
Fiodorov contrapõe à negação do indivíduo, à idéia de socialização absoluta (que subordina até mesmo as esferas mais recônditas do ser) o ideal da "vida normal", da família, dos sentimentos humanos naturais.
Temas, relacionados com a utopia, aparecem com freqüência cada vez maior na obra de conhecidos escritores russos.
Valeri Brussov escreve algumas obras utópicas. Entre elas A terra, A República do Cruzeiro do Sul, As sete tentações terrenas. Aqui o leitor encontra descrições impressionantes do progresso técnico-científico: edifícios altos, carros e dirigíveis elétricos e até mesmo iluminação radioativa.
Deve-se assinalar que na obra de Brussov predomina a utopia negativa. No espírito da anti-utopia Brussov descreve o futuro em sua novela A República do Cruzeiro do Sul.
A polarização, característica da vida social e política da Rússia do inicio do século contribuiu também para a polarização no campo da utopia literária e como resultado demarcaram, com bastante precisão, as linhas divisórias entre as utopias democráticas e conservadoras.
Um exemplo típico da última foi a novela utópica de Serguei Chaparov Dentro de meio século (1902). Em sua descrição, a Rússia permanece um império, é governada por um tsar, senado e Conselho de Estado. O poder local concentra-se nas mãos da nobreza e do clero.
Outro pólo da literatura utópica daquela época é representado pela utopia socialista de Alexander Bogdanov. Ele escreveu dois romances utópicos A estrela vermelha (1908) e sua continuação, O engenheiro menni (1911).
No romance A estrela vermelha Bogdanov descreveu a sociedade do futuro, baseada nos princípios comunistas, que o protagonista, revolucionário profissional, encontra em Marte.
O romance A estrela vermelha tinha a finalidade de fazer propaganda e popularizar os ideais comunistas. Não foi por acaso que seu leitor atento foi Lênin, que, apesar de ter uma atitude negativa em relação as obras filosóficas de Bogdanov, revelou grande interesse por sua utopia A estrela Vermelha.
O desenvolvimento da utopia literária na Rússia não foi apenas um fato da história. A Revolução de Outubro aproximou as fronteiras da fantasia e da realidade.
A construção da sociedade socialista, e, às vezes, a crença ingênua na possibilidade de intervenção dirigida na marcha objetiva da história deram forte impulso para o desenvolvimento da literatura utópica e de ficção científica. A partir dos anos 20 a utopia tem amplo desenvolvimento.
A utopia soviética assimilou as tradições da literatura utópica russa, que se delinearam já no final do século XIX, início do século XX, por um lado a tendência para a utopia socialista, própria da literatura russa, e por outro — a anti-utopia.
E. Zamiatin indicou esta circunstância no livro Herbert Wells (1922) onde apresenta uma resenha da literatura utópica, não apenas ocidental, mas também russa.
A vida petrificada da Rússia antes da Revolução quase não apresenta, e não poderia apresentar exemplos de literatura social e de ficção científica.
Praticamente os únicos representantes deste gênero, em passado recente de nossa literatura, foi o conto "Sol líquido" de Kuprin, o romance de Bogdanov A estrela vermelha que tem um significado mais propagandístico do que artístico e se voltarmos mais, temos Sen Kovsky e Barão Brambeus. A Rússia pós-revolucionária, que se tornou o mais fantástico de todos os países da Europa contemporânea, reflete, sem dúvida nenhuma, este período da história da literatura de ficção científica.
Deram início a isto os romances de Alexcei Tolstoi Aelita e Hiperboboloide do engenheiro Garin, o romance Nós, os romances de Iliá Erenburgo Julio Jurenito e Trust D. E. (4)
Em muitos romances utópicos e de ficção sócio-científica dos anos 20: O país de Gonguri de V. Itinm, O mundo futuro, de I. Okunev, A luta do éter, de A. Beliaev, Dentro de mil anos, de V. Nikolsky, A terra dos felizes, de Y. Larri e outros existem tentativas de descrever o porvir como futura vitória da sociedade comunista em todo o mundo. Entretanto a imagem social do futuro neles, via de regra, resumiu-se a prognósticos técnico-científicos, a previsões futurológicas.
Depois da grande ascensão e desenvolvimento da literatura utópica nos anos 20, ocorreu uma brusca queda e a partir dos anos 30 as utopias raramente surgem nas livrarias. O desenvolvimento da ficção científica contribuiu em muito para o renascimento deste gênero.
Existem muitos pontos de vista diferentes sobre o grau de correlação das obras de ficção científica e utopias.Uns literatos consideram que a ficção científica moderna, em suas pesquisas, está organicamente ligada ao romance utópico.Outros consideram que a ficção cientifica não passa de uma forma contemporânea do romance utópico. Existem realmente fundamentos para tal conclusão. Muitas obras de escritores de ficção científica, em particular dedicadas ao problema do futuro, ou são, em essência, romances utópicos ou desempenham a função de romances utópicos. Assim são os romances dos escritores soviéticos A nebulosa de Andrômeda e A hora do touro de Efremov ou O retorno (Meio-dia. Século XXII) dos irmãos Strugatsky. Ao mesmo tempo muitos escritores são fiéis ao gênero utópico tradicional. O tema utópico é característico da obra de Vladimir Nabokov (romances Ada e Convite para a execução).
Na segunda metade dos anos 80 surgem quase que simultaneamente duas anti-utopias, que refletem sintomaticamente a época.
É a pequena novela da Alexander Kabakov, Não retornado e o romance de Vladimir Voinovitch Moscou 2042.
Ambos os autores descrevem o futuro como pesadelo e catástrofe total. Ao mesmo tempo estas anti-utopias diferem radicalmente uma da outra tanto pelo estilo, como pelo meios artísticos. A utopia de Kabakov é um pesadelo sombrio, que impressiona por ser realmente comparável com a atualidade.
Ao contrário, a utopia de Voinovitch é uma fantasia irrefreável e alegre do futuro com diferentes nuances de sátira. Até os defeitos destas obras são diferentes: se a novela de Kabakov parece um fragmento de algo grande, o romance de Voihovitch, ao contrário, é um tanto esticado. Ambas estas anti-utopias, entretanto, advertem-nos sobre a possibilidade de chegada de um futuro indesejável.
Tudo isto demonstra que a tradição multisecular do romance utópico russo não desaparece sem deixar vestígios, que ela continua até agora a alimentar a literatura contemporânea.
(1) K. Marx, F. Engels, Obras, tomo 18, p. 498—499.
(2) Ch. Walsh. From Utopia to Nigthmare, London, 1962, p. 14
(3) E. Zamiatin. Herbert Wells, Petrograd, 1922, p. 43
(4) Zamiatin Evgueny "Herbert Wells" Petrogrado, 1922, p.146.
EVGUENY ZAMIATIN
EDIÇÕES BRASILEIRAS DE NÓS
O editor Gumercindo Rocha Dória, através da Edições GRD, foi o introdutor de Zamiatin no Brasil, ainda na década de 60.
A muralha verde, traduzido do francês, Nous Autres, (Gallimard), Edições GRD, 1962.
NOTA INTRODUTÓRIA
Por José Sans
Quando li este romance, na edição francesa também de 1920 (Nous Autres, Gallimard), o fiz levedo pela curiosidade que me despertou uma referência de Victor Serge em Destin d'une Révolution — URSS 1917-1937:
"Em 1929, dois grandes escritores da nova geração foram, subitamente, denunciados por todos os jornais cumprindo uma ordem do Comitê Central como inimigos públicos. Um, por ter escrito uma novela de um realismo qualificado de pessimista e contra-revolucionário sobre a vida na província (Pilniak — Bois desdeslles); o outro, por ter publicado em tradução, no estrangeiro, uma obra condenado pelo censura porque era uma forte sátira ao estatismo burocrático (Zamiatin — Nous autres). Pilniak fêz todas as concessões exigidas e chegou mesmo a refazer seu livro para dar—lhe um carácter otimista. Zamiatin, mais firme, teve que se expatriar".
Nenhuma indicação, portanto, de se tratar de uma obra de antecipação, ou ficção científica, se quiseram (1). Interessava-me saber o que um escritor para mim inteiramente desconhecido que vivera aquele momento histórico, pensava do processo de esmagamento da chamada "Grande Revolução".
Logo de início, o romance não deixa dúvidas sobre o gênero e, mais ainda, sobre a alta qualidade literária do autor. À sátira aparece secundária, envolta em sombrio, desespero, mas penetrante e feroz.
Talvez por isso os críticos que tanto exaltam a obra medíocre e monotonamente político-didática dos Belaiev, Nemzov, Kazantvez, Evremov, todos enquadrados numa "literatura de uniforme" (Max Eastman), não se interessem na divulgação de um romance que é uma séria advertência aos que sonham com regimes ideais, sem ver o que se esconde por trás de promessas.
O fato de Nous autres (A muralha verde, nesta tradução brasileira) ter sido escrito em 1920, confere-lhe uma dimensão inesperada, não só na literatura de antecipação, mas na literatura em geral, elevando-o à categoria de profecia.
Se escrito entre 1927 e 1929, como seria de supor, pela referência de Victor Serge, um crítico poderia ver nele uma "sátira" construída a partir de elementos dados, extraídos de acontecimentos que já se delineavam claramente.
Efetivamente, como todos sabem, menos os politicamente cegos e surdos, 1927 marcou o início de controle total do mecanismo estatal pela "gang" stalinista, com a liquidação das oposições de esquerda e direita. Era o Termidor soviético, o mais sangrento "sabat" de história.
O clamor vindo do campo, a miséria, a fome, a brutal supressão das liberdades e o encarceramento e liquidação dos "recalcitrantes", demonstravam claramente o plano inclinado por onde deslizava, cada vez mais veloz, a "Grande Revolução" e eram elementos concretos para a composição de um painel sobre o futuro, não tão longínquo, que iria transformar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas num Estado Policial peno do qual o Estado Cínico do Benfeitor, descrito por Zamiatin, chega a sei quase aceitável...
Já se anunciava, em 1929, a guerra contra os camponeses que sonegavam o trigo, resistindo à coletiviza çõo de cima para baixo. E Zamiatin relata o acontecimento (em 1920!) assim:
"...falo da grande Guerra dos Duzentos Anos, da guerra entre a cidade e o campo. Os camponeses selvagens, sem dúvida por preconceito religioso, tinham muito apego a seu " pão".
E numa nota ao pé da página acrescenta, irônicamente, referindo-se a" pão":
"Esta palavra é conservada em nossa língua como metáfora poética: a fórmula química desse composto nos é desconhecida".
E espantoso porque a grande fome do princípio dos anos 20 poderia ser, perfeitamente, como foi, aliás, considerada um fenômeno passageiro, decorrente da desorganização da agricultura pela guerra e das sucessivas tentativas e invasão levadas a cabo pelos" imperialistas". A publicação de Nous autres em 1924, por exemplo, talvez fizesse rir os leitores pois havia uma aparente recuperação do campo. Mas Zamiatin viu mais longe.
Em 1920 viu, claramente, aonde levaria a nova forma de governo. Viu o massacre dos camponeses, que chegaria ao auge em 1934, mas que em 1929 apenas se esboçava.
E fala-nos, também, de uma Muralha que separa o Estado Único das regiões selvagens do Ocidente e de uma nave espacial, à "Integral", a primeira a levar, mesmo à fôrça, se necessário, aos outros planetas, a "felicidade" instituída pelo Benfeitor no Estado Único.
Algum profeta bíblico pronunciou-se mais claramente?
Numa sociedade dividida em classes, castas ou qualquer outra forma de domínio de uma maioria por uma minoria ou vice-versa, o amor não é permitido porque de significa revolta, liberdade, e o imenso edifício da coerção só pode viver sufocando na casca toda veleidade de revolta.
O amor é uma força "que só pode ser destruída esterilizando todas os mulheres e castrando todos os homens mas, nesse caso, os Senhores não teriam mais escravos nem exércitos" (Ado Kyrou). A solução é, portanto, que homens e mulheres se unam, mas para dar súditos leais, como bons reprodutores a serviço da imensa granja em que se transformou cada Estado moderno.
Este é, efetivamente, o tema básico do livro de Zamiatin, que ultrapassa o limite da "sátira", com que o rotulou Victor Serge. A história de uma mulher que lutou desesperadamente pela liberdade, pelo direito de amar e que foi sacrificada ao deus-Estado pela covardia de um homem.
É um livro trágico, fascinante, terrível.
(1) Poderíamos indagar, com Jacques Sternberg, o porquê da adoção dessa terminologia, que, diz ele, já é bárbara em inglês e praticamente intraduzível, soando como um acorde colocado, ao mesmo tempo preciso demais e tão pouco eloqüente (V. Une Sucursalee du Fontastique nomée Science Fiction, Le Terrain Vague, 1958, livro magnífico e que deverá ser lançado por CRI) no próximo ano). Alguns utilisam o termo "antecipação". Fausto Cunha, o celebrado autor de As Noites Marcianas, aventou a idéia de ser utilizada a expressão "neo gótica'. Surgiu uma coleção em São Paulo que traz o nome de "ciencificçâo". Os argentinos, na sua célebre coleção Minotauro, utilizam "ciencia-ficción". Os italianos dizem "fantascienza". Queiramos ou não, a expressão consagrada é "ficção científica". Ela já tem livre trânsito. Aceitêmo-la, pois.
A muralha verde, de E. Zamiatin
Eis, nas palavras finais da introdução de A muralha verde, assinada por José Sanz, o significado da presente obra de Zamiatin: "a história de uma mulher que lutou desesperadamente pela liberdade, pelo direito de amar e que foi sacrificada ao deus-Estado pela covardia de um homem".
E conclui José Sanz: "É um livro trágico, fascinante, terrível".
E. Zamiatin (Evgenj Ivanovitch Zamiatin), nasceu no ano de 1884, na Rússia, e morreu em Paris, no ano de 1939. Autor de vário, livros, entre os quais Hístórias de Distrito (1911) A muralha verde (escrito em 1920) e publicado. na Inglaterra, sob o título de We, e na França, em 1929, sob o de Nous autres.
A muralha verde teve a sua epopéia: escrito, o original não foi aceito pelos censores do Estado. que o consideraram desrespeitoso, pois os principais personagens do livro, o ambiente, as circunstâncias, as críticas, tudo o que estava nas páginas de Zamiatin como que retratavam uma realidade por demais contundente. Na mesma época, Pilniak, que já teve livro traduzido no Brasil, também foi chamado a "rever" uma de suas obras, por demais "burguesa". Curvou-se Pilniak, abdicando de sua honorabilidade, de criador. Reviu o livro e adaptou-o às exigências policiais da ditadura. Zamiatin agiu de modo diferente: empacotou os seus originais e remeteu-o para além das fronteiras russas. Foi perseguido, cerceado na sua profissão de engenheiro. Doente, conseguiu autorização para sair da Rússia, terminando os seus dias em Paris, onde lançou, pela Gallimard, o seu livro, que agora é publicado ao Brasil.
Ficção cientifica, A muralha verde? Alguns componentes do gênero ai estão: a) uma nave interplanetária, a "Integral", que se destina a levar, b) aos mais distantes planetas, c) a "felicidade", d) que é imposta à fôrça no Estado Único, e) halo Benfeitor. Por fim, f) o Homem, na sua luta permanente, pela liberdade.
Que decida o leitor. Um gênero literário se impõe pela qualidade da obra e não pelo rótulo, não esquecendo, portanto, o que diz Fausto Cunha: "O que me parece, em linhas gerais, é que a distância entre a boa literatura de ficção cientifica e a boa literatura de ficção está se reduzindo cada vez mais ao do gênero: a ficção. paulatinamente se transforma em metaficção e vice-versa".
Nós, traduzido do inglês We, por Lia Alverga Wyler, Editora Anima, 1983.
INTRODUÇÃO
por Mirra Ginsburg
Nós desempenhou um papel decisivo na vida de Eugene Zamiatin. Uma síntese de sua filosofia, o romance prefigurava com surpreendente exatidão não só o futuro do autor como o de seu país. A profissão de fé de Zamiatin encontra-se claramente expressa nas palavras da heroína de Nós: "Não existe uma revolução final. As revoluções são infinitas" e "Não quero que ninguém queira por mim — Quero querer por mim mesma."
Esses dois princípios — a mutação constante e a liberdade individual de escolher, querer e criar segundo suas necessidades e vontade — dominaram sua vida e sua obra. "Derrubaremos todas as paredes para deixar a aragem renovadora soprar livremente de um extremo a outro da Terra", diz sua heroína. Não admira que fosse odiado e perseguido por aqueles que exigiam uniformidade e obediência irrestrita a uma vontade exterior — a do Estado, do Benfeitor. do Partido.
Um escritor vigoroso e original, inteiramente moderno. sua obra tem raízes profundas na tradição literária russa. É um descendente direto de Gogol e Dostoyevsky, os escritores preferidos de sua infancia. Encontra-se também bem próximo de Leskiv. Chekhov. Shchedrin e dos seus contemporâneos Alexey Remizov e Andrey Belv. A exemplo de Gogol e Dostoyevsky, preocupa-se intensamente com problemas morais centrais: e, como todos eles, é um grande mestre da sátira, do estilo e do grotesco.
Zamiatin nasceu em 1884 em Lebedyan, uma das aldeias mais coloridas no coração das terras férteis russas, a umas duzentas milhas a sudeste de Moscou — uma região de campos produtivos, de velhas igrejas e conventos, feiras, ciganos e trapaceiros, monges e taberneiros, mulheres belas e rosadas e mercadores que ganhavam e perdiam milhões da noite para o dia. Era também uma região que conservava um linguajar folclórico, rico e expressivo, que Zamiatin absorveu e mais tarde empregou obtendo magníficos efeitos em muitas de suas estórias, peças e novelas.
Seu pai, um padre ortodoxo, ensinava religião na escola local. A mãe era uma pianista talentosa.
Engenheiro naval de formação, Zamiatin cedo voltou-se para a literatura. Em 1913 publicou Um Conto Provinciano e em 1914 No Fim do Mundo, satirizando a vida militar numa remota guarnição de fronteira. O periódico em que este último conto apareceu foi confiscado pelas autoridades tzaristas e tanto o editor quanto o autor foram julgados por "caluniar a oficialidade russa". O processo foi arquivado, mas isto foi apenas um dos muitos atritos com a autoridade constituída. que marcaram sua vida inteira.
Ainda estudante no Instituto Politécnico de São Petersburgo.No inicio do século, Zamiatin ingressou na facção bolchevista do Partido Social Democrático. Preso durante a revolução de 1905, passou alguns meses na solitária e, ao ser libertado, foi exilado de São Petersburgo. Após uma breve estada em Lebedyan, voltou à capital, onde viveu "ilegalmente" (e continuou seus estudos) até 1911, quando a polícia finalmente o encontrou e tornou a ser exilado. Foi durante este exílio. que escreveu Um Conto Provinciano. Anistiado em 1913 recebeu permissão para voltar a São Petersburgo.
Ao graduar-se no Instituto Politécnico foi convidado a integrar o corpo docente. Por alguns anos o ensino e a engenharia suplantaram a literatura. Durante a Primeira Guerra Mundial, Zamiatin foi enviado à Inglaterra para desenhar e supervisionar a construção dos primeiros quebra-gelos russos. Quando a Revolução eclodiu, em 1917, não conseguiu suportar a idéia de permanecer afastado da Rússia e apressou-se em voltar, trazendo na bagagem dois contos que satirizavam a vida inglesa, Os Ilhéus e O Pescador de Homens.
Na Rússia, Zamiatin (então um ex-bolchevista) lançou-se com tremenda energia ao grande desenvolvimento cultural e artístico que se seguiu A revolução. Foi um período de fantásticas contradições. A Rússia encontrava-se em ruínas após anos de guerra, revolução e continuadas lutas civis. A vida econômica do país beirava o colapso. Os transportes, as comunicações, o abastecimento, o contato entre cidades e vilas estavam em completa desorganização? Entretanto, em meio à fome e ao frio, um punhado de espíritos dedicados propunha-se não só a salvar a cultura do país mas a oferecer As massas, até então desprivilegiadas, a herança cultural do mundo inteiro.
Naqueles dias sombrios, principalmente por iniciativas de Gorky, o verdadeiro santo patrono da literatura russa, formaram-se diversas organizações, tanto para manter fisicamente vivos os escritores, acadêmicos e artistas como para permitir que dessem continuidade ao seu trabalho. Em 1920, em Petersburgo, surgiram: a Casa das Artes, onde os escritores eram alojados em cada quarto e cubículo disponível, sem calefação, do antigo palácio do grande mercador Yeliseyev; a Casa dos Cientistas; e uma quantidade de editoras e jornais literários (Zamiatin trabalhou na editoria de diversos deles). Organizaram-se estúdios, onde jovens literatos aprendiam os elementos de sua profissão com escritores, poetas e tradutores como Zamiatin, Gumilyov, Lozinsky, Chukovsky e outros. Professores e alunos muitas vezes tinham de atravessar a cidade a pé e sentar em salas sem calefação, vestindo velhos casacos, suéteres e abafadores, gelados e famintos mas totalmente absorvidos pelas brilhantes discussões literárias.
Uma variedade de escolas e movimentos proliferava em todas as áreas artísticas, algumas retomando o vigor dos anos anteriores à guerra, outras, inteiramente novas. Disputas infindáveis grassavam entre simbolistas, futuristas, construtivistas, formalistas, acmeístas, imaginistas, neo-realistas e, naturalmente, o grupo. cada vez mais poderoso e vociferente dos escritores e críticos proletários que encaravam a literatura como um simples instrumento da revolução e da mudança social. Zamiatin tomou-se o líder e o professor da Irmandade Serapion, um grupo que incluía alguns dos jovens escritores mais promissores e originais da época — Mikhail Zoshchenko, Vsevolod, Ivanov, Valentin Katayev, Veniamin Kaverin, Konstantin Eedin, Lev Lunts, Nicoiay Tikhonov, Victor ShIdovsky e outros. Diferindo em temperamento, método e esfera de ação, uniam-se pela insistência na liberdade de criação, no direito do artista de perseguir uma visão individual, na variedade, nas experiências com a forma, e na importância do trabalho criador.
Lev Lunts, um dos membros mais brilhantes do grupo, redigiu um manifesto no qual proclamava a completa autonomia da arte. "As quimeras literárias", escrevia ele, "são uma forma especial de realidade". Ele rejeitava os direitistas e esquerdistas que gritavam: "Se você não está conosco, está contra nós". "Com quem estamos nós, a Irmandade Serapion?" perguntava. "Estamos como eremita Serapion. Rejeitamos o utilitarismo. Não escrevemos para fazer propaganda. A arte é tão real quanto a própria vida e, como a vida, não possui um objetivo ou uma significação, existe simplesmente porque tem de existir... A única exigência É que a voz do escritor nunca seja insincera".
Os Serapions apoiavam a idéia de Zamiatin de que "a verdadeira literatura só pode existir onde é criada, não por oficiais laboriosos e dignos de confiança, mas por loucos, ermitãos, heréticos, sonhadores, rebeldes e céticos" — uma profissão de fé que tornou pública em 1921, no ensaio Tenho medo (1). E a necessidade de heresia, o direito de dizer ao dogma oficial, a crença de que os erros sao mais úteis do que a verdade, de que as verdades são idéias "já atingidas pela arteriosclerose" são temas repetidamente expressos nas obras de Zamiatin. Em Amanhã ele escrevia:
Aquele que encontrou hoje o seu ideal é como a mulher de Lot, já transformado em estátua de sal. O mundo só se mantém vivo graças aos heréticos: o herético Cristo, o herético Copérnico, o herético Tolstoy. O nosso símbolo de fé é a heresia... Convocamos a "intelligentsia" russa à defesa do homem, e dos valores humanos. Apelamos. não àqueles que rejeitam o hoje em nome de uma volta ao passado. não àqueles que estão irremediavelmente ensurdecidos pelo hoje; apelamos para aqueles que véem o amanhã distante — e julgam o hoje em nome do amanhã, em nome do homem.
Em 1921, num ensaio intitulado Paraíso, Zamiatin mais uma vez criticava, mordaz, os guardiões da unanimidade, os que exigiam a conformidade total:
Muito tem sido dito por muitos sobre a imperfeição do universo... e sua surpreendente falta de monismo: água e fogo, montanhas e abismos, santos e pecadores. Que absoluta simplicidade, que felicidade desanuviada de qualquer pensamento, haveria se (Deus) tivesse desde o princípio criado uma única água ardente, se desde o princípio tivesse poupado ao homem o estado de liberdade selvagem. — Vivemos sem dúvida numa era cósmica uma era de criação de um novo céu e de uma nova rena. E naturalmente não repetiremos (Seu) erro. Não haverá polifonia ou dissonância. Apenas uma majestosa, monumental e abrangente unanimidade.
Em A Nova Prosa Russa (1923):
A própria vida hoje perdeu a sua realidade de plano: já não se profeta ao longo de antigos pontos fixos, mas ao longo das coordenadas de Einstein, da Revolução. Nessa nova projeção, as formas e objetos mais conhecidos tornam-se deslocados, fantásticos, familiares-estranhos. Por isso é tão lógico que a literatura de hoje sinta-se atraída pela trama fantástica, ou por um amálgama de realidade e fantasia.
E no seu ensaio: Literatura, Revolução. Entropia e Outros Temas, ele expande uma das idéias centrais de Nós:
A revolução está em toda parte, em tudo. E infinita. Não existe revolução final, nem número final. A revolução social é uma de um número infinito de números. A lei da revolução não é uma lei social, mas algo incomensuravelmente maior. É uma lei cósmica, universal — como as leis da conservação da energia e de dissipação da energia (entropia)... Ainda no mesmo ensaio:
A literatura nociva é mais útil do que a literatura útil, porque é antientrópica, é um meio de combater a calcificação... É utópica, absurda... Torna-se verdadeira 150 anos depois.
E uma das suas afirmações mais significativas:
Hoje na literatura precisamos de vastos horizontes filosóficos... Precisamos do mais final, mais temível, mais audacioso "Porque? e "E a seguir?"
Em 1926, em A meta, Zamiatin desfechou um ataque frontal contra os críticos comunistas que exigiam do escritor uma subserviência total às exigências do partido:
A Revolução não precisa de cães que "se sentam 'a espera de um petisco ou porque temam o açoite. Nem precisa de treinadores para esses cães. Precisa de escritores sem medo... Precisa de escritores em quem a Revolução desperte um eco verdadeiramente orgânico. E não importa que esse eco seja individual... se um escritor desconhece um determinado parágrafo adotado numa determinada conferência. O que importa é que o seu trabalho seja sincero, que impulsione o leitor para diante... que perturbe o leitor ao invés de tranqüilizar e embalar sua mente, mas em que direção? E em que medida? Quanto mais longe melhor. A redução de preços, melhoramentos sanitários nas cidades... tudo isso é muito bom... posso imaginar um excelente artigo de jornal sobre tais tópicos (um artigo que será esquecido no dia seguinte). Mas acho difícil imaginar uma obra de Lev Tolstoy ou de Romain Rolland baseada na melhoria das condições de saneamento.
Inevitavelmente, Zamiatin tomou-se uma das primeiras vítimas dos guardiões da "unanimidade" e da literatura 'higiênica". Foi atacado por estar em "desacordo com a revolução", por "aviltar e caluniar" os princípios e "realizações" revolucionários, por ser "um observador frio e hostil" e um "emigrado interno", que fazia o jogo dos inimigos do regime soviético. (Seria desnecessário mencionar aqui a longa lista de artistas independentes até Pasternak, Sinyavsky,Daniel.e Solzhenitsyh, que sofreram igual destino durante os anos de ditadura.
Durante os primeiros dez anos após a revolução, ainda foi possível publicar as obras de Zamiatin, apesar do coro constante de insultos a ele dirigidos pelos guardiões da ortodoxia. Essas obras, naturalmente, nunca apareceram nas revistas oficialmente patrocinadas e subsidiadas. Eram, em geral, publicadas quer por periódicos de vida efêmera ou em antologias preparadas por grupos de escritores, quer por periódicos e editoras privadas cuja existência ainda era tolerada naqueles primeiros tempos.
Com grande coragem e integridade, Zamiatin continuava a escrever como via e sentia — ensaios, peças, ficção — embora a mão insensível da ditadura se tomasse cada vez mais pesada. Uma passagem do ensaio Sobre o Futuro do Teatro, escrito bem mais tarde e publicado em francês em 1932, expõe de maneira clara uma importante faceta do seu caráter. "A peça mais séria", dizia ele, "é a peça na qual o destino traz no bolso um horário, preparado e carimbado há muito tempo marcando o dia e a hora do fim trágico de cada um de nós". Sem dúvida, ele sabia o que o futuro lhe reservava, mas continuou fazendo o que julgava melhor.
O alcance e a qualidade de sua obra, nas circunstâncias, é surpreendente. Zamiatin não foi apenas um consumado satirista e estilista, mas um mestre de muitos temas e muitos estilos. Algumas das estórias (2) são maravilhosas evocações da Rússia quase mitológica de sua infância. Outras parecem baladas — a paisagem é árida, as pessoas e os acontecimentos são trágicos ou cômicos numa escala grandiosa. Outras ainda, retratam o presente, em geral descrito sob uma luz grotesca, oblíqua, surrealista, com imagens ecoantes e uma extraordinária combinação de realidade e irrealidade, troça e aflição: Outras são gracejos, invenções irreverentes a que chamou "contos profanos". Além de suas outras qualidades, Zamiatin possuía uma inesperada veia de alegria incontida e um grande senso de humor.
A mesma riqueza e diversidade e a percepção aguda do cômico e do grotesco animam sua peças. Muitos dos personagens são caricaturas maravilhosas. Espírito, imaginação e, sempre, a mais meticulosa técnica combinam-se na maior parte de sua obra com um profundo sentido histórico e uma visão profética. Isto é particularmente verdadeiro em Nós, uma sátira cáustica, entre outras coisas, sobre urna sociedade esquemática — donde necessariamente totalitária — escrita em 1920-21. Nós não foi aceita para publicação. Lida, conforme era costume à época, numa reunião do Sindicato dos Escritores Russos, em 1923, provocou uma nova onda de violentos ataques dos críticos e escritores do partido.
Zamiatin escreveu este romance espantosamente profético quando mal se discernia o totalitarismo futuro. Como todos os grandes satiristas, a partir das tendências e indícios do presente, projetou uma visão abrangente da sociedade futura. Seu método, conforme o definiu em Nós, foi o reductio ad finem — um método hoje aplicado com vigoroso efeito por mestres da sátira como William Golding (The Inheritors, Lord of the Flies) e Anthony Burgess (The Wanting Seed, The Clockwork Orange).
Poeta, gozador (o riso — escreveu — é a mais devastadora das armas), lutador herético da liberdade e da independência na arte e na vida. Zamiatin foi uni inimigo coerente de todas as idéias canônicas, toda a coerção, todos os guardiões da "salvação compulsória". Atacou e ridicularizou sem piedade o totalitarismo emergente, seus bajuladores medíocres, seu reino de brutalidade, violação e destruição da liberdade e criatividade do espírito humano. Previu tudo: o terror, as traiçoes, a desumanização; os onipresentes guardiões; o controle do pensamento e da ação; as constantes lavagens cerebrais produziam ou autômatos incondicionais ou hipócritas, que mentiam para sobreviver; a exigência de que todos cultuassern o Benfeitor, que com sua manopla literalmente "iquida", reduz todos que discordam, todos os que apaixonadamente desejam ser eles mesmos, a uma poça de água incolor. Previu também a sujeição das artes. Seu herói alardeia: "Encilhamos o elemento outrora selvagem da poesia. Hoje, a poesia deixou de ser o canto ocioso e insolente do rouxinol; a poesia é um serviço cívico, a poesia é útil. E não só deve o povo ("números") desse estado apocalíptico de totalitarismo ritualizado comparecer à cerimônia de gala em que o Benfeitor extermina os heréticos, mas o poeta é obrigado a de clamar uma ode, comemorando a sabedoria e a grande justiça do carrasco.
Em termos de estio. Nós é também uma realização notável, pois Zamiatin tinha gosto e ouvido perfeitos. "A linguagem de nossa época é incisiva e breve como um código", escrevia ele em 1923. Em Nós, que é um poema cuidadosamente estruturado, o leitor não encontrará qualquer traço da música rica e lenta de suas estórias de província, ou da graça maliciosa de seus "contos profanos". Nós, cujo tema é um Estado quadrado de homem quadrados, é vazado num estilo da maior severidade e disciplina — um estilo em perfeita harmonia com a intenção do autor, com a sociedade totalmente controlada que ele evoca, onde a emoção foi banida (e ainda assim sobrevive), onde cada momento é vivido de acordo com o programa, numa cidade de casas de vidro e linhas absolutamente retilineas, sob uma redoma de vidro, onde se faz amor em dias e horas certas.
Mas, assim como Zamiatin foi muito mais do que um intelectual politicamente perspicaz, também Nós, dentro da sua surpreendente disciplina de estilo, é muito mais do que uma obra política. E uma obra filosoficamente complexa de infinita sutileza e nuance, alusões e reflexões. E ainda uma tragédia humana profundamente comovente, e um estudo da variedade de emoções humanas (paixão — D-503; dominação — I-330; ciúme — U; ternura e generosa e total entrega do ser — 0-90). E embora as pessoas sejam "números" impessoais, não são figuras esquemáticas; cada unia delas é um indivíduo vivo, convincente e tocante.
A principal preocupação de Zamiatin neste romance é o problema do homem nos seus múltiplos aspectos; as relações do indivíduo com a sociedade e com os outros homens: o conflito entre a tentadora segurança da não-liberdade e a vontade de libertar a identidade; o medo e a atração da alienação; a cisão entre o racional e o irracional. Nós é também o estudo de uma sociedade que se diz baseada na racionalidade pura — e torna-se com isso mortalmente desumana e absurda.
"Quem são eles?" pergunta o herói depois de ter visto as criaturas meigas e peludas no exterior da Muralha que cerca o Estado Uno. "A metade que perdemos?" A metade que sente. A metade irracional que vive fora do programa e das linhas retas. No entanto, mesmo no Estado Uno, onde a espontaneidade é proibida num Estado protegido por muralhas de tudo que é desestruturado e vivo, a vida e a humanidade se afirmam O herói — um construtor e matemático inteiramente moldado pela sociedade, sem jamais questioná-la — possui atávicas "mãos peludas". Seduzido por uma paixão violenta e irracional, ele faz a descoberta chocante de um reino insuspeitado e há muito reprimido — o reino interior, da identidade individual, do eu. "Quem sou eu?" exclama desesperado. Numa cena extremamente tragicômica, ele consulta um medico buscando socorro para o terrível mal. O médico declara solene que ele está gravemente enfermo — nasceu-lhe uma alma. "É perigoso?", pergunta. "Incurável", responde o médico. Mas, ai dele, o mal revela—se ao final curável. Os homens do Benfeitor descobrem um remëdio para a individualidade, a rebelião, a humanidade: uma simples operação para extirpar o foco de toda infecção — a imaginação — e reduzir todos os cidadãos do Estado tino a semi-idiotas sorridentes.
Nós é mais multifacetado, menos desesperador do que o 1984 de Orwell, escrito vinte e cinco anos depois e diretamente influenciado pelo romance de Zamiatin. Apesar do final trágico.Nós trazem si uma nota de esperança. Apesar da derrota da rebelião "ainda há lutas na zona oeste da cidade." Muitos "números" alcançaram o exterior da Muralha. Os que morreram, não foram destruídos como seres humanos — morreram lutando sem se submeter. E embora o herói seja reduzido a um autômato obediente certo de que a "Razão" e a ordem estática prevalecerão e embora a mulher, que amou por um breve período e foi forçado a trair, morra (assim como os poetas e rebeldes que ela liderava), a mulher que o ama, meiga e tema, encontra-se a salvo no exterior da Muralha. Terá seu filho em liberdade. E a própria Muralha provou-se afinal vulnerável. Foi rompida — e certamente voltará a sê-lo.
Em Nós, diz Zamiatin: É para isto que nos encaminhamos. Paremos enquanto é tempo. Pela poesia e pela troça, perpassa um grande carinho — pela Rússia, pelo homem — e uma profunda tristeza pelas provações particularmente intensas por que iriam passar no nosso século de terror, tifo fantasticamente previstas no romance, e enfrentadas com tanta coragem. O próprio Zamiatin, uma vítima extremada dessas provações, é notável pela sua total falta de cinismo ou despeito. Raiva, troça, rebelião — mas nenhuma auto-comiseração ou amargura. Ele parece dizer a todos os dogmatistas, a todos que tentaram forçar a vida a entrar numa forma rígida: Vocês não irão, não poderão vencer. O homem não será destruído.
Zamiatin classificou Nós como "a minha obra mais divertida e mais séria". E embora fale em muitos níveis e de muitas coisas, sua mensagem política é inconfundível. Ë um aviso e um desafio, um apelo à ação. Talvez seja a exposição mais completa da filosofia de Zamiatin e de suas preocupações emocionais.
E bastante significativo que a perseguição a Zamiatin tenha atingido o auge no final da década de vinte, quando o presente tornava-se desconfortavelmente semelhante à profecia, quando a existência do Benfeitor e sua Máquina tornava-se reconhecível, uma realidade iminente. Em 1929, o controle total da produção literária foi entregue a ARFP (Associação Russa de Escritores Proletários) que se tornou um instrumento para extirpar tudo que ainda fosse independente na literatura russa. Através de campanhas de difamação, pressão sobre os periódicos e editores, do apelo aos métodos policiais, a entidade procurou enquadrar todos na linha exigida — o serviço ao partido. A AREP dedicou-se com ardor ao papel de carrasco e os resultados não tardaram a aparecer. Muitos periódicos e editoras foram fechados. Houve uma onda de suicídios de escritores e poetas. As retratações adquiriram proporções epidêmicas. Um sem-número de escritores que não pertenciam ao partido, desfibrados, retrataram-se publicamente dos seus pecados e juntaram-se ao rebanho, repudiando e reescrevendo suas obras.
Uma campanha particularmente insidiosa foi desfechada contra Zamiatin e Pilnyak. Este último foi exposto à execração pública devido à publicação no exterior do romance Mogno. Nós, escrito quase dez anos antes e inédito na União Soviética, foi usado como pretexto imediato para a destruição de Zamiatin. Conquanto sua primeira tradução para o inglês (em 1924) e para o Tcheco (em 1927) não provocassem qualquer reação das autoridades soviéticas, sua publicação em 1927 no "Volya Rossii", um jornal de emigrados impresso na Tchecoslováquia, sem o conhecimento ou a autorização do autor, foi usada, dois anos mais tarde, como desculpa conveniente para desencadear toda a força da pressão oficial contra o autor. Ocaso foi discutido numa assembléia do Sindicato dos Escritores no verão de 1929, quando Zamiatin estava ausente em viagem de férias. Um por um dos seus colegas, amedrontados e subservientes, ergueram-se para denunciá-lo. Zamiatin respondeu com uma carta indignada e corajosa, pedindo demissão do Sindicato. "Acho impossível", escreveu, "pertencer a uma organização literária que... toma parte na perseguição de um associado."
Pilnyak foi incapaz de suportar a pressão e retratou-se. Os antigos alunos e admiradores de Zamiatin — Ivanov, Katayev, Kaverin sacrificaram seus talentos para se tornarem escribas, produzindo o que quer que fosse necessário, na forma e no estilo exigidos. Os de espírito mais forte, como Isaac Babel, emudeceram. E apenas gigantes isolados como Zamiatin e Bulgakov recusaram a se submeter. Vedado o acesso à publicação, as peças retiradas de cena apesar do enorme sucesso popular, os livros retirados das livrarias e bibliotecas, eles escreveram a Stalin solicitando permissão para deixar a Rússia. Ambos falaram da proscrição das suas obras como de uma sentença de morte literária.
Graças à intercessão de Gorky junto à Stalin, o pedido de Zamiatin foi, surpreendentemente, concedido. Ele abandonou a Rússia em 1931 e radicou-se em Paris. Seus últimos anos transcorreram em grande solidão e privação. Morreu de doença cardíaca em 1937, seu enterro foi acompanhado somente por um punhado de amigos, pois ele não aceitara o convívio da comunidade de emigrados. Até o fim considerou—se um escritor soviético unicamente à espera, conforme escreveu à Stalin, "de que se torne possível em nosso país servir às grandes idéias sem aviltar-se diante de homúnculos", até que "haja ao menos uma mudança parcial na concepção vigente do papei do artista literário". Ele nunca chegou a ver esse dia. Sua morte não foi mencionada pela imprensa soviética. A exemplo do poeta rebelde de Nós, e de muitos dos maiores poetas e escritores russos do século vinte, ele foi literalmente 'liquidado" — reduzido à não-existência. Seu nome foi suprimido das histórias literárias e, por muitos anos, permaneceu desconhecido em sua terra.
E ainda assim, ele continua vivo. No dizer do seu companheiro de infortúnio Bulgakov, "os manuscritos são incombustíveis". Ele reviveu no Mundo Ocidental. Nós foi traduzido em mais de dez línguas. Muitas de suas estórias, ensaios, e peças foram publicadas no exterior em russo, e traduzidos para o inglês. Mesmo na Rússia Soviética seu nome começou a aparecer nos últimos anos (timidamente) em um ou outro livro de memórias, em um ou outro ensaio obscuro sobre ficção científica e literatura utópica. Foi mesmo reincluído nas enciclopédias literárias — naturalmente com o inevitável comentário negativo. E embora sua obra continue a não ser vendida na Rússia Soviética, sem dúvida tem chegado às mios de alguns leitores, escritores e acadêmicos de forma clandestina, pois sua influencia destaca-se no pensamento de alguns rebeldes atuais como Sinyavsky, Daniel e outros que lutam para restaurar a liberdade de criação na literatura russa.
Como todas as grandes obras de arte, Nós presta-se a uma multiplicidade de interpretações. Escreveram-se numerosos ensaios e análises sobre Zamiatin (3), e sobre Nós, abordando-os de vários pontos de vista e várias formas: como um estudo do homem moderno divorciado do seu eu natural; como uma charada freudiana; como um mito apresentando o dilema do homem em termos de sonhos e arquétipos; como uma parábola religiosa de forte influência dostoyevskiana; como uma das mais importantes anti-utopias modernas, e assim por diante. Nós é tudo isso, e mais. É um dos grandes romances trágicos de nossos tempos.
Mas deixemos o livro falar por si. O leitor perspicaz encontrará em Nós muito mais do que poderíamos sugerir numa introdução.
(1) Este ensaio, assim como outros aqui citados, encontram-se em A Soviet Heretic: Essays Eugene Zamiatin (Chicago, 1972).
(2) (N.T.) Veja The Dragon: I5 Stories por Eugene Zamiatin (New York, 1967).
(3) (N.T.) Um ótimo estudo crítico e biográfico, de autoria de Alex M. Shane foi publicado nos Estados Unidos em 1968 — The Life and Works of Eugene Zamiatin (Berkeiev, 1968) constando entre outros dados, uma excelente bibliografia.
OPINIÃO
Nós, uma utopia negativa
Por Ella Kobiaco
O livro Nós, de Evgueny Zamiatin escrito em 192-21, muito mais do que uma obra política, insurge como um corajoso ataque ao totalitarismo que com suas mãos de ferro viola os direitos individuais, subverte os valores humanos, corrompe as relações humanas, usurpa a liberdade do livre-pensar e agir, destrói a criatividade e por assim dizer violenta a arte em nome de idéias equivocadas sobre um suposto bem comum.
É ainda um grito em defesa da liberdade do homem; um alerta, para um perigo eminente: Cuidado! Querem fazer-nos acreditar na segurança da não-liberdade.
Assim, D-503, personagem principal que escreve a história, sob o jugo de seu condicionamento tece comentários:
“A liberdade e o crime estão tão indissoluvelmente ligados... liberdade do ser humano igual a zero, e ele não comete crimes. Isto está claro. O único modo de livrar o homem dos crimes é livrá-lo de sua liberdade.”
E entre outros, também:
“Por que a dança é bonita? Resposta: porque não é um movimento livre, porque todo o sentido profundo da dança consiste justamente na absoluta submissão estética, na não-liberdade ideal.”
E mais, D-503 afirma:
“O ideal (está claro) vai ser quando não acontecer mais nada...”
À tal afirmativa, a própria história de vida e obra de Zamiatin se opõe, e com certeza ele se refere à revolução permanente de Trotsky quando sua heroína, I-330, profere o seguinte discurso:
“— E que revolução é essa que você diz ser a última? Não há a última, as revoluções são infinitas. A última é para crianças: o infinito assusta as crianças, e é necessário que as crianças durmam tranqüilas à noite.”
Original, dono de aguçada percepção e imaginação, Zamiatin, numa narrativa surrealista, permeada pela ironia — combinando realidade e irrealidade, acontecimentos trágicos e rizíveis, fazendo uso de uma linguagem contida, propositalmente disciplinada; preocupado com a liberdade de escolha, com o querer e o criar — satiriza o contexto histórico em que vivia e mais, antevê o futuro de si próprio e de seu país, profetizando a desumanização, os pensamentos e as ações programadas, a banalização das necessidades do homem, a repressão das emoções, o extermínio dos que estão em desacordo com a ordem imposta, a produção de autômatos, as lavagens cerebrais, a destruição daqueles que lutam para manter vivas imaginação, alma e originalidade.
Escreve D-053:
“A minha querida O vem visitar—me amanhã, tudo será simples, correto e limitado como um círculo. Eu não temo essa palavra — “limitado” — a função da mais alta faculdade do homem — a razão — consiste justamente na limitação contínua do infinito, da divisão do infinito em porções cômodas e facilmente digeríveis...”
A Gazeta do Estado Unificado publica:
“Devereis submeter ao jugo benéfico da razão entes desconhecidos que habitam outros planetas — talvez ainda na condição selvagem da liberdade. Se eles não entenderem que nós lhes levamos a felicidade matematicamente infalível, nosso dever é obrigá-los a serem felizes”.
A história em Nós, fala das causas e de como se articula e acontece uma revolução num tempo futuro, num espaço cercado por Muros, onde os membros da sociedade, constantemente vigiados pelos Guardiões, habitam casas de paredes de vidro, não recebem nomes, mas números; são obrigados a reverenciar ritualmente o Benfeitor e sua Máquina, têm pensamentos e atitudes condicionados, executam trabalhos mecânicos, e suas vidas particulares e sociais são programadas e controladas por um governo autoritário, o Estado Unificado. O controle e as programações vão mesmo até seus encontros íntimos transformados em impessoais, com horários e locais estipulados, entre indivíduos (números) previamente registrados.
Mas apesar da Máquina do Estado, do Muro e seus Guardiões a revolução acontece. Alienação e pensamentos condicionados dão espaço a reflexões e questionamentos intermináveis. As mudanças permeiam. O Muro é transposto, para além dele, uma nova vida nasce do ventre de O-90, a amante de D-503. As emoções sufocadas sobrevivem. A utopia é sonhada, a busca pela felicidade permanece. E além do Muro Verde a esperança usa óculos.
Temas, situações e conceitos encontrados em Nós (escrito em 1920-21) — aqui, numa tradução notável de Clarice Lima Averina, a partir da primeira edição russa, de 1990 — inspiraram alguns escritores como Aldoux Huxley em Admirável mundo novo (publicado em 1932) e George Orwell em 1984 (publicado em 1949).
Em Nós, o herói D-503, um matemático, vive em constante conflito por ter como ideal subjugar suas emoções e sentimentos, embasar seus pensamentos e ações nos argumentos padronizados inculcados em sua mente pelo Estado Unificado e contrariamente se descobre possuidor de uma identidade individual, constatando a força de seu inconsciente nos sonhos, tendo desejos não-programados pelo sistema, vivendo uma paixão irrefreável, repentinamente vendo-se obedecer a impulsos irracionais e sendo levado a acreditar e querendo acreditar estar terrivelmente doente por possuir uma alma.
O médico faz um diagnóstico para D-503:
“ — Vai mal hein? Pelo visto, formou-se uma alma em você.
— Alma? ... É... muito perigoso? Balbuciei eu.
— Incurável.”
Ter uma alma, ter imaginação era ter uma doença incurável no Estado Unificado, até que descobriram a cura, ou seja, uma operação de remoção de um centro de imaginação no cérebro, tornando o indivíduo alheio à sua individualidade, um sorridente-imbecil, completamente alienado, a mercê do poder central.
Enquanto D-503 descreve no seu cotidiano, a natureza e a qualidade de seus relacionamentos íntimos e sociais, emergem pouco a pouco os problemas intestinos e sem solução do Estado Unificado, manifestam-se os conflitos íntimos e de convivência social de cada personagem, assim como os dele mesmo, e da aparente frieza e impessoalidade de cada um deles sobrevém um novo contexto — resultante da combinação de sensações e sentimentos puramente humanos — que indiferente à ordem vigente escapa sorrateiro de seus inconscientes e cruza os semblantes, flui pelos olhos, treme nas mãos, e brota nas bocas independentemente:
“— Escute —... e lá onde termina seu universo finito, o que há mais além?”
Alexandre Beluco põe na forma escrita as suas reflexões sobre Nós, de Eugene Zamiatin
O livro Nós, de Eugene Zamiatin, é um romance antecipatório. Ele foi escrito em 1920 e conta a estória de pessoas vivendo em um futuro em que o governo é autoritário e em que alguém controla a vida de todos.
É antecipatório no sentido de tratar de temas recorrentes desde o início do século passado e por um certo clima (pode-se dizer "kafkiano") que percorreu a Europa nos anos que antecederam a Segunda Grande Guerra.
Algumas frases do livro são bastante eloqüentes, como: "Não existe uma revolução definitiva, as revoluções devem ser infinitas. Uma revolução final é para crianças... elas temem o infinito e é importante que durmam tranqüilas à noite." Ou: "Não quero que alguém queira por mim. Quero querer por mim mesma." Ou ainda: "Derrubaremos todas as paredes para deixar a aragem renovadora soprar livremente de um extremo a outro da Terra."
Alguns elementos de Nós inspiraram, entre outros, Aldous Huxley em Admirável mundo novo e George Orwell em 1984. As personagens têm horas marcadas para empreenderem esforços de procriação, em contatos extremamente impessoais. E em 1984 ficou famoso um trecho em que a personagem principal mantém relações sexuais com uma moça, e o faz executando um ato político.
Em 1984 vivem mercê de um Grande Irmão, no caso de Nós um Benfeitor, sempre presente. Em Nós os prédios são transparentes, e os moradores têm permissão de fechar cortinas apenas durante os encontros íntimos. Em 1984 existem as telas de vídeo.
Em Nós, o governo, o Estado Uno, como o denominam, se refere aos mortos na revolução como "números" perdidos, já que as pessoas não recebem nomes, mas números. Os personagens principais da estória são D-503, I-330, U, O-90.
A estória consiste em uma revolução sendo armada e deflagrada. O cotidiano e as causas da revolução emergem facilmente da narrativa. A personagem principal descobre-se a certa altura doente, e sua doença consiste no nascimento de uma alma.
Mas os homens do Benfeitor descobrem uma maneira de curar essa doença, em princípio tida como incurável. E extirpam-lhe a imaginação, a mutilação constituindo-se em uma cura para a humanidade e para a individualidade.
As personagens, que à primeira vista são lógicas e impessoais, talvez pela forma como se relacionam, na verdade constituem-se em ricas combinações de sentimentos humanos. D-503 é um matemático que não resiste aos seus mais profundos anseios e escreve a estória à qual nos referimos. O-90 é doce e meiga, e é o estopim para a detonação da alma de D-503.
O final é quase folhetinesco, mas não perde seu valor por ser um clássico. O herói é aparentemente vencido, tendo sido reduzido a um imbecil. Mas a muralha que circunda a cidade fora vencida e sua amante, grávida, conseguira fugir.
Ler esse livro pode parecer por vezes como assistir o filme metrópolis, de Fritz Lang, depois de se ter assistido Blade Runner, de Ridley Scott. Mas, mesmo um tanto envelhecido, vale pelas antecipações. É como ouvir obras de Beethoven e seus contemporâneos e encontrar as origens de vários elementos básicos das trilhas sonoras de hoje em dia.
Nós, de Eugene Zamiatin, está citado entre os 100 melhores romances do século XX.
Veja a lista:
1. Ulisses (1922) — James Joyce
2. Em Busca do Tempo Perdido (1913—27) — Marcel Proust
3. O Processo — Franz Kafka
4. Doutor Fausto (1947) — Thomas Mann
5. Grande Sertão: Veredas (1956) — Guimarães Rosa
6. O Castelo (1926) — Franz Kafka
7. A Montanha Mágica (1924) — Thomas Mann
8. O Som e a Fúria (1929) — William Faulkner
9. O Homem sem Qualidades (1930—43) — Robert Musil
10. Finnegans Wake (1939) — James Joyce
11. A Morte de Vírgilio (1945) — Hermann Broch
12. Coração das Trevas (1902) — Joseph Conrad
13. O Estrangeiro (1942) — Albert Camus
14. O Inominável (1953) — Samuel Beckett
15. Cem Anos de Solidão (1967) — Gabriel Garcia Márquez
16. Admirável Mundo Novo (1932) — Aldous Huxley
17. Mrs. Dalloway (1925) — Virgínia Woolf
18. Ao Farol (1927) — Virgínia Woolf
19. Os Embaixadores (1903) — Henry James
20. A Consciência de Zeno (1923) — Italo Svevo
21. Lolita (1958) — Vladimir Nabokov
22. Paraíso (1960) — José Lezama Lima
23. O Leopardo (1958) — Tomaso di Lampedusa
24. 1984 (1949) — George Orwell
25. A Naúsea (1938) — Jean—Paul Sartre
26. O Quarteto de Alexandria (1957—1960) — Lawrence Durrell
27. Os Moedeiros Falsos (1925) — André Gide
28. Malone Morre (1951) — Samuel Beckett
29. O Deserto de Tártaros (1940) — Dino Buzzati
30. Lord Jim (1900) — Joseph Conrad
31. Orlando (1928) — Virginia Woolf
32. A Peste (1947) — Albert Camus
33. O Grande Gatsby (1925) — Scott Fitzgerald
34. O Tambor (1959) — Günter Grass
35. Pedro Páramo (1955) — Juan Rulfo
36. Viagem ao Fim da Noite (1932) — Louis—Ferdinand Céline
37. Berlin Alexanderplatz (1929) — Alfred Döblin
38. Doutor Jivago (1957) — Boris Pasternak
39. Molloy (1951) — Samuel Beckett
40. A Condição Humana (1933) — André Malraux
41. O Jogo da Amarelinha (1963) — Julio Cortázar
42. Retrato do Artista quando Jovem (1917) — James Joyce
43. A Cidade e as Serras (1901) — Eça de Queirós
44. Aquela Confusão Louca da Via merulana (1957) — Carlo Emilio Gadda
45. As Vinhas da Ira (1939) — John Steinbeck
46. Auto de Fé (1935) — Elias Canetti
47. À Sombra do Vulcão (1947) — Malcolm Lowry
48. O Visconde Partido ao meio (1952) — Italo Calvino
49. Macunaíma (1928) — Mário de Andrade
50. O Bosque das Ilusões Perdidas (1913) — Alain Fournier
51. Morte a Crédito (1936) — Louis—Ferdinand Céline
52. O Amante de Lady Chatterley (1928) — D.H. Lawrence
53. O Século das Luzes (1962) — Alejo Carpentier
54. Uma Tragédia Americana (1925) — Theodore Dreiser
55. América (1927) — Franz Kafka
56. Fontamara (1930) — Ignazio Silone
57. Luz em Agosto (1932) — William Faulkner
58. Nostromo (1904) — Joseph Conrad
59. A Vida — Modo de Usar (1978) — Georges Perec
60. José e Seus Irmãos (1933—1943) — Thomas Mann
61. Os Thibault (1921—1940) — Roger Martin du Gard
62. Cidades Invisíveis (1972) — Italo Calvino
63. Paralelo 42 (1930) — John dos Passos
64.As memórias de Adriano (1951) — Marguerite Yourcenar
65. Passagem para a Índia (1924) — E.M. Forster
66. Trópico de Câncer (1934) — Henry Miller
67. Enquanto Agonizo (1930) — William Faulkner
68. As Asas da Pomba (1902) — Henry James
69. O Jovem Törless (1906) — Robert Musil
70. A Modificação (1957) — Michel Butor
71. A Colméia (1951) — Camilo José Cela
72. A Estrada de Flandres (1960) — Claude Simon
73. A Sangue Frio (1966) — Truman Capote
74. A Laranja mecânica (1962) — Anthony Burgess
75. O Apanhador no Campo de Centeio (1951) — J.D. Salinger
76. Cavalaria Vermelha (1926) — Isaac Babel
77. Jean Christophe (1904—12) — Romain Rolland
78. Complexo de Portnoy (1969) — Philip Roth
79. Nós (1924) — Evgueni Ivanovitch Zamiatin
80. O Ciúme (1957) — Allain Robbe—Grillet
81. O Imoralista (1902) — André Gide
82. O mestre e a Margarida (1940) — Mikhail Afanasevitch
83. O Senhor Presidente (1946) — Miguel Ángel Asturias
84. O Lobo da Estepe (1927) — Herman Hesse
85. Os Cadernos de Malte Laurids Bridge (1910) — Rainer Maria Rilke
86. Satã em Gorai (1934) — Isaac B. Singer
87. Zazie no metrô (1959) — Raymond Queneau
88. Revolução dos Bichos (1945) — George Orwell
89. O Anão (1944) — Pär Lagerkvist
90. A Tigela Dourada (1904) — Henry James
91. Santuário (1931) — William Faulkner
92. A Morte de Artemio Crus (1962) — Carlos Fuentes
93. Don Segundo Sombra (1926) — Ricardo Güiraldes
94. A Invenção de Morel (1940) — Adolfo Bioy Casares
95. Absalão, Absalão (1936) — William Faulkner
96. Fogo Pálido (1962) — Vladimir Nabokov
97. Herzog (1964) — Saul Bellow
98. Memorial do Convento (1982) — José Saramago
99. Judeus sem Dinheiro (1930) — Michael Gold
100. Os Cus de Judas (1980) — Antonio Lobo Antunes
Pois bem, não foi daquela vez que consegui o livro, objetivo inicial de minha pesquisa, afinal. Digão falou que tinha e ia me mandar uma copia, mas não mandou. Só recentemente fiquei sabendo que a obra tinha sido, finalmente, relançada no Brasil, pela editora ALFA—OMEGA. Comprei (pela internet, claro, afinal eu sou um cara moderno e as livrarias daqui de Aracaju não têm capacidade de suprir meus interesses rebuscados e intelectualmente refinados) e li – aproximadamente 10 anos após ter lido a respeito pela primeira vez, na citada reportagem da Caros Amigos.
A primeira coisa que chama a atenção é a escrita de Zamiátin, elegante e rebuscada porém relativamente acessível. Salta aos olhos, no entanto, que "Nós" tem várias idéias em comum com "1984", o que dá realmente margem para as acusações de plágio. A inspiração, no mínimo, é inegável, pois ambos tratam, em sua narrativa, de uma incursão pela mente de um cidadão de um futuro distópico, habitante de uma sociedade totalitária, que começa a questionar sua realidade a partir da paixão por uma subversiva. Em ambos os livros, também, o texto é assombrado pela presença opressiva de um líder onisciente e paternalista, o “Benfeitor” em “Nós”, o “Grande Irmão” em “1984”.
O grande mérito de Zamiátin foi o de ter sido um visionário, já que escreveu sua obra-prima quando os regimes totalitários que tomaram conta da Europa e de boa parte do mundo nos anos 30 ainda se encontravam em fase embrionária. Ele parece ter captado o perigo por trás da idéia de que o todo deveria se sobrepor sobre o único, o bem comum esmagando a liberdade individual. No mundo de Zamiátin não há espaço para o indivíduo, e isso fica bem claro nas reflexões mentais de seu personagem principal, D-503 (não existem nomes próprios nesse mundo, apenas números), sempre tentando convencer a si mesmo da correção da Filosofia baseada na matemática do Estado Unificado no qual vive e ao qual serve como construtor do Integral, o foguete que levará a Boa Nova do Benfeitor aos mundos que, supostamente, existem espalhados pelo escuridão do espaço sideral, e encarando seus próprios questionamentos como fruto de uma estranha doença que, ele descobre depois, começa a se espalhar perigosamente ao ponto de se tornar uma epidemia. Para ilustrar suas idéias, Zamiátin constrói todo um universo onde as pessoas (na verdade, os números) vivem absolutamente sem privacidade em casas de vidro e protegidos da natureza selvagem (essa sim, opressora, aos olhos dos cidadãos do Estado Unificado) por uma grande Muralha Verde (não por acaso esse é o nome do livro em algumas traduções mundo afora).
A meu ver, o que Orwell fez foi se apossar das idéias centrais do livro de Zamiátin e desenvolvê-las ao seu estilo, um tanto quanto mais romanceado e didático, se beneficiando da própria passagem do tempo, já que o mundo havia recém-saido da Grande Experiência totalitária da década de 30 que culminou no choque de civilizações materializado nos horrores sem precedentes da Segunda Guerra Mundial. É evidente que suas preocupações e reflexões estavam intimamente conectadas àquela realidade quando ele escreveu 1984, no final dos da década de 40 (o titulo do livro é uma simples inversão de números do ano em que foi lançado, 1948), e especialmente direcionadas ao fato de que, a despeito da derrocada do Nazi-Fascismo na Europa, ainda existia de pé, e vitoriosa, pois aliada às chamadas “democracias ocidentais”, uma sociedade totalitária, a URSS, comandada pelo “grande irmão” Josef Stálin, saudado à época pela propaganda oficial como o “guia genial dos povos”, e cujos tentáculos já começavam a se estender por toda a Europa oriental, o que levaria á construção da imaginária porém absolutamente palpável “cortina de ferro” e à guerra fria que se estenderia até meados dos anos 90. Talvez por conta disto, do fator conjuntural em que a obra foi escrita, o personagem do Grande Irmão de Orwell é muito melhor acabado e rico do que o do Benfeitor de Zamiátin – o que não tira dele o mérito da criação da idéia, já que Orwell tinha um exemplo vivo e atuante no qual se inspirar, Stalin (ou mesmo Hitler e Mussolini), uma realidade que na época em que foi publicado “Nós” apenas começava a se vislumbrar.
Não creio que estes fatos tirem de Orwell o brilhantismo de sua escrita e, sobretudo, sua importância, pois ele meio que ampliou a ideia original de Zamiátin e desenvolveu novos conceitos, como a da "novilingua". Contudo, se faz necessário que a obra pioneira deste brilhante e semi-obscuro escritor russo seja melhor difundida, para que a justiça histórica seja feita.
ATUALIZAÇÃO EM 25/04/2017: A Editora Aleph acaba de relançar "Nós" em uma belíssima edição de capa dura que você pode comprar aqui.
Por Adelvan Kenobi
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Nós, de Evgueny Zamiatin
A Anti-utopia de Eugene Zamiatin
Por Celso Gomes
Recomendo a leitura do romance Nós, de Eugene Zamiatin, em uma edição da Editora Anima, tradução do inglês de Lya Alverga Wyler de 1983. Desconheço se há alguma tradução diretamente do russo. Eugene Zamiatin publicou o romance Nós em 1920. O resumo é simples: pessoas vivendo em um tempo futuro no qual um o governo autoritário controla a vida de todos, ao mesmo tempo em que uma revolução está próxima de ser deflagrada. Esse foi um tema recorrente no século passado, tanto assim que podemos encontrar alguns elementos de Nós em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e em 1984 de George Orwell. Alguns críticos chegam a acusar Orwell de plágio, tal a semelhança entre os dois romances. Os personagens têm horas marcadas para seus encontros íntimos e seus contatos são impessoais. Em 1984, todos são controlados pelo Grande Irmão. No romance de Zamiatin há um Benfeitor, sempre presente. Em Nós, os prédios são transparentes e os moradores têm permissão de fechar cortinas apenas durante os encontros íntimos. Em 1984, existem as telas de vídeo. Em Nós, as pessoas não recebem nomes, mas números. Apesar de um tanto envelhecido, vale a leitura do livro, até para encontrar elementos básicos de vários outros romances escritos no século passado. Tecnicamente, o romance consiste em anotações do personagem D-503, que acredita nos princípios da sociedade totalitária em que vive. Para D-503, sua falta de privacidade é uma garantia de fidelidade do cidadão ao Estado. Esta total transparência da vida do cidadão é condição sine quae non para existência do governo totalitário sob o qual ele vive.
Mais do que uma obra política, Nós surgiu como um corajoso ataque ao totalitarismo soviético, que usurpou a liberdade humana e terminou por destruir a criatividade, violentando a arte. O romance é um libelo em defesa da liberdade do homem em uma narrativa surrealista, permeada pela ironia, em linguagem contida, propositalmente disciplinada. Em Nós, o herói D-503 - um matemático que trabalha na construção de um equipamento de tecnologia muito avançada - vive em constante conflito por ter como ideal subjugar suas emoções, embasando seus pensamentos nos argumentos inculcados em sua mente pelo Estado Uno. Ao longo do tempo, contrariamente ao seu discurso padronizado, ele se descobre possuidor de uma identidade individual, quando se vê apaixonado de forma avassaladora por uma mulher. Nesse momento, desejos não programados pelo sistema invadem seu arcabouço emocional levando-o a seguir impulsos que considerava irracionais. Procurando um médico, após uma de suas crises, o mesmo diagnostica que lhe nasceu uma alma e D-503 passa a se ver como terrivelmente doente, pois ter uma alma, ter imaginação era ter uma doença incurável no Estado Uno. Apesar de o médico decretar que esta doença seria incurável, outro médico defende a tese de que uma operação de remoção de um centro de imaginação no cérebro tornaria o indivíduo alheio à sua individualidade, o que tornaria D-503 completamente alienado do processo político em que vivia e alheio à revolução em curso.
Nós foi proibido pelo regime soviético e só foi publicado nos países do Ocidente. Zamiatin, que além de escritor era matemático e engenheiro naval, sobreviveu por milagre aos expurgos estalinistas. Em 1931, ele escreveu a Stalin pedindo permissão para emigrar: "O autor desta carta, um homem condenado à pena capital, solicita-lhe a comutação desta pena. Você provavelmente conhece meu nome. Para mim, como escritor, ser privado da possibilidade de escrever equivale a uma condenação à morte". Milagrosamente, Stálin concedeu e Zamiatin viveu algum tempo em Praga, vindo a morrer em 1937, praticamente esquecido em Paris, pois em seu período de exílio, jamais se juntou aos exilados russos.
Celso Gomes é advogado e escritor
contato@algoadizer.com.br
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Nós (romance)
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Nós (Мы/Mii) é um romance distópico escrito entre 1920 e 1921 pelo escritor russo Yevgeny Zamyatin. A história narra as impressões de um cientista sobre o mundo em que vive, uma sociedade aparentemente perfeita mas opressora, e seus conflitos ao perceber as imperfeições dele, ao travar contato com um grupo opositor que luta contra o "Benfeitor", regente supremo da nação.
Parte dela é baseada nas experiências do autor com as revoluções russas de 1905 e 1917 e no período em que trabalhou em 1916 supervisionando a construção de navios na Inglaterra.
Embora escrito no início da década de 20, Nós só publicado pela primeira vez em 1924, e em inglês e em Nova Iorque, por estar proibido na então União Soviética devido à censura imperante no país. A primeira edição no idioma russo só foi lida em 1927/1928, quando publicada em um jornal de emigrados. O livro só adentrou legalmente a pátria-mãe do autor em 1988, com as políticas de abertura do regime soviético.
Significado literário e influência
Nós é uma sátira futurista distópica, geralmente considerada o berço do gênero (mas há outras, como A Nova Utopia, de Jerome K. Jerome, de 1891, e O Tacão de Ferro de Jack London, de 1900; leia mais sobre isso adiante). O livro leva a extremos os aspectos mais totalitários e o conformismo da sociedade industrial moderna, descrevendo um Estado que acredita que o livre-arbítrio é a causa da infelicidade e que a vida dos cidadãos deve ser controlada com precisão matemática baseada nos sistemas de precisão industrial criados por Frederick Winslow Taylor.
Entre outras inovações literárias, a visão de Zamyatin inclui um ambiente de casas --e quase tudo mais-- de vidro e outros materiais transparentes, onde todos estão visíveis e um cidadão é o vigia do outro. Por suas críticas ao socialismo russo, esta e outras obras do autor eram freqüentemente banidas.
Há discussões sobre as influências do trabalho se Zamyatin no trabalho mais conhecido do gênero: 1984 de George Orwell, que começou a escrevê-lo alguns meses após ler uma tradução francesa de Nós e ter escrito uma resenha da obra. Há registros de Orwell ter dito que "iria tomá-la como modelo para seu próximo romance". [1] Na introdução à tradução em inglês de 1993, o tradutor Clarence Brown diz que, para Orwell e outros autores, Nós "parece ser 'a' experiência literária crucial". O biógrafo Alex Shane diz que "(...) não há como discutir a influência de Zamyatin em Orwell". [2] Já o crítico Robert Russell, no livro Zamiatin's We, conclui que "'1984' partilha tantas características com 'Nós' que não pode haver dúvidas quanto à sua dívida geral com esta", embora haja uma minoria de críticos que vejam as similaridades como "totalmente superficiais". Mais adiante, Russell aponta que "o livro de Orwell é mais sombrio, esquemático e temático que o de Zamyatin, faltando o humor irônico que permeia a obra russa".
Orwell diz, em um ensaio de 1946, que acreditava que Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932) "deve ser parcialmente derivado" de Nós. Contudo, Huxley, segundo o livro de Russell, escreveu em uma carta de 1962 que escreveu sua obra muito antes de ter ouvido falar na do russo.
É digno de nota que o referido Jerome K. Jerome foi citado como uma influência no romance de Zamyatin. [3] Em 1891 Jerome publicou o conto-ensaio A Nova Utopia [4] descreve uma cidade --quiçá um mundo-- abarcada por um pesadelo igualitarismo, onde os habitantes são quase indistintos em seus uniformes cinza (como as "unifas" de Nós) e todos têm cabelos pretos e curtos, naturais ou tingidos. Ninguém recebe nomes, apenas números costurados nas túnicas: pares para as mulheres, ímpares para os homens, o mesmo esquema da obra russa. A igualdade é levada a extremos tantos que pessoas com físico bem-desenvolvido sofrem cirurgias para redução de membros (em Zamyatin a cirurgia de nivelamento de nariz é sugerida). Na obra de Jerome, aqueles com uma imaginação superativa são submetidos a uma cirurgia que também a reduz, e uma operação semelhante tem importância central em Nós. Ainda mais significativa é a apreciação da parte de ambos os autores do amor familiar, e por extensão do individual, como uma força disruptiva e humanizante.
É provável que o autor russo o tivesse lido: as obras de Jerome foram traduzidas na Rússia três vezes antes de 1917 e a maioria das pessoas educadas as conhecia.
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Yevgeny Zamyatin
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Yevgeny Ivanovich Zamyatin (Евге́ний Ива́нович Замя́тин por vezes traduzido para português como Eugene Zamyatin ou Eugene Zamiatine) (Lebedian, 1 de Fevereiro de 1884 - 10 de Março de 1937) foi um escritor russo, famoso pelo seu romance Nós, uma história de um futuro distópico que influenciou os romances Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell e Anthem, de Ayn Rand.
Zamyatin também escreveu vários contos, na forma de contos de fadas, que constituíram uma crítica satírica do regime comunista russo. Um exemplo é uma história na qual o presidente de câmara decide que para fazer toda a gente feliz terá de fazer toda a gente igual. Começa por forçar toda a gente, ele próprio incluído, a viver num grande quartel, depois a rapar os cabelos para ser iguais aos calvos, e finalmente a tornar-se mentalmente deficientes para igualizar os níveis de inteligência com os deficientes mentais.
O pai de Zamyatin era um sacerdote ortodoxo russo e professor e a mão era música. Ele estudou engenharia naval em São Petersburgo de 1902 a 1908, período em que aderiu aos bolcheviques. Foi preso durante a revolução russa de 1905 e exilado, mas regressou a São Petersburgo onde viveu clandestinamente até partir para a Finlândia em 1906 para concluir os estudos.
Depois de concluir o curso e se tornar engenheiro naval, Zamyatin começou a escrever ficção como passatempo. Foi preso e exilado pela segunda vez em 1911, mas foi amnistiado em 1913. Em 1916 foi para Inglaterra supervisionar a construção de quebra-gelos nos estaleiros de Newcastle-upon-Tyne e escreveu mais tarde The Islanders, satirizando o modo de vida inglês.
Ao regressar à Rússia, Zamyatin escreveu Ujezdnoje (Coisas de Província) em 1913, que satiriza a vida numa pequena cidade russa e lhe trouxe alguma fama. No ano seguinte, foi julgado por maltratar os militares na sua história Na Kulichkakh. Continuou a contribuir para vários jornais socialistas. Depois da revolução russa, editou várias revistas, deu palestras sobre a escrita e editou traduções russas de trabalhos de Jack London, O Henry, H. G. Wells e outros.
Zamyatin apoiou a Revolução de Outubro, mas tornou-se crítico da censura praticada pelos bolcheviques. Os seus trabalhos foram-se tornando cada vez mais críticos do regime e cada vez mais suprimidos à medida que a década de 1920 ia avançando. Por fim, os seus trabalhos foram banidos e ele foi proibido de publicar, em especial depois da publicação de Nós num jornal de emigrados russos, em 1927.
Acabou por obter a autorização de Estaline para abandonar a Rússia em 1931, depois de Gorki ter intercedido por ele, e instalou-se em Paris com a sua mulher, onde morreu na pobreza em 1937.
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11/02/2000 - Zamiatin e a Casa Idiota
Fonte: http://www.baguete.com.br/colunasDetalhes.php?id=86
Abençoados dias, estes que correm, os de Internet. Quando escrevia em Porto Alegre, em papel jornal, a crônica sequer atravessava o rio Uruguai. Nestes tempos de Web, a discussão ultrapassa o Equador. Dos EUA, reclama um interlocutor: "Quando eu jurava que ele iria dizer alguma coisa sobre a modelo que está vivendo numa casa de vidro em Santiago do Chile, e da celeuma que isto está causando na cidade, da falsa moral da América Latina, etc., ele me veio com uma dessas". A "uma dessas" foram minhas considerações sobre a lenta e merencória domesticação dos homossexuais. Mas pouco importa. Ocorre que a dose de estupidez que os jornais nos trazem é diária. E a coluna, semanal.
Não me parece que a celeuma em Santiago seja fruto de falsa moral, nem que falsa moral seja atributo exclusivo da América Latina. Jamais ocorreria a um latino, sem ir mais longe, pedir o impeachment do supremo mandatário da nação por felações de rotina. No Chile, a questão transcende a moral. Se a exibição da intimidade alheia em alguns causa repulsa, para outros pode ser fonte de prazer. Antes da casa de vidro de Santiago, a WEB já oferecia dezenas, talvez centenas de webcams, pelas quais os navegantes podiam espiar o cotidiano entre quatro paredes de moças em outras longitudes. Um site americano, o de Jennifer, foi pioneiro neste voyeurismo eletrônico. Com a diferença de que a intimidade de Jennifer, se estava à distância de um clique de mouse, não era imposta a transeuntes que nada querem com a vida alheia.
Esta idéia de transparência nada tem de novo. Em 1920, no seu romance de antecipação, Nós, o escritor russo Eugene Zamiatin já propunha este tipo de arquitetura. Não como modelo a ser imitado, mas como sátira a um Estado onipresente, que exige de seus cidadãos total transparência. Mais recentemente, em 1949, Orwell retomou a idéia em 1984, através do olho sempre vigilante do Big Brother.
Nós foi proibido pela censura soviética e só foi publicado nos países do Ocidente. Zamiatin, que além de escritor era matemático e engenheiro naval, sobreviveu por milagre às purgas stalinistas. Em função de seu ofício, foi testemunha de importantes momentos históricos. Estava em Odessa por ocasião da rebelião da tripulação do Potemkin e em Helsinki - então Helsingfors - durante a do Sveaborg. Em 31, ousou escrever a Stalin pedindo permissão para emigrar: "O autor desta carta, um homem condenado à pena capital, solicita-lhe a comutação desta pena. Você provavelmente conhece meu nome. Para mim, como escritor, ser privado da possibilidade de escrever eqüivale a uma condenação à morte". Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, que devia ter acordado de bom humor no dia em que recebeu a carta, deixou-o partir.
Zamiatin viveu algum tempo em Praga e morreu em 1937, praticamente esquecido, em Paris. Nós é narrado pelo cidadão D-503, homem dos séculos futuros, que acredita nos princípios da sociedade totalitária em que vive. As casas são transparentes. Nos dias previstos para atividades sexuais, o morador pode cerrar as cortinas. "Em nossas paredes transparentes e como que tecidas de ar resplandecente, nós vivemos sempre abertamente, lavados de luz, pois nada temos a esconder, e este modo de vida facilita a difícil tarefa do Benfeitor". Orwell conhecia a obra de Zamiatine. O Benfeitor é uma antecipação do Grande Irmão. Para D-503, "o vidro, nosso admirável vidro, transparente e eterno", é garantia de fidelidade do cidadão ao Estado. Esta total transparência da vida do cidadão é o sonho de todo poder totalitário. Não espanta que o livro de Zamiatin tenha sido proibido na finada URSS. O que espanta é ver, em um regime democrático, alguém se propondo como cobaia de uma condição sonhada por todo ditador. A casa transparente de Santiago do Chile é decididamente idiota. Fosse erigida nos dias de Pinochet, a imprensa internacional estaria denunciando a invasão da privacidade do indivíduo pela prepotência do tirano.
Não sei se a moça de Santiago pretende baixar alguma cortina na hora sexual. Mas há momentos indubitavelmente mais íntimos que o sexual, e para isso a humanidade concebeu a privada cercada de quadro paredes. Vejo na primeira página dos jornais a moça baixando, não as cortinas, mas as calças, ao sentar em um vaso sanitário. Ora, este é um dos momentos íntimos do ser humano que a ninguém agrada assistir, muito menos ser compelido a assisti-lo quando passa pela rua.
O problema não é de falsa moral, mas de graus de civilização. Nem mesmo entre bugres do paleolítico - que ainda existem no Brasil, para alegria e sustento dos antropólogos - este momento é público. Para isso existe o mato. Ou talvez a modelo, em sua ânsia de transparência, queira transformar a esplendorosa Santiago numa espécie de São Paulo, onde baixar as calças na rua, na ótica dos defensores dos tais de Direitos Humanos, é garantia consagrada na Constituição de 88, a dita Cidadã.
A exposição da moça é superficial. Como expediente para gerar manchetes, nestes dias em que a mídia dá o mesmo destaque às aventuras de cama de uma piranha de sangue real que ao pronunciamento de um estadista, é método eficaz. Mas a transparência mais grave é outra. É aquela à qual o Estado tem acesso quando nos confere números. Diante do número pessoal, usado em todos os atos contratuais do cidadão - método de identificação já rotineiro em diversos países - a casa de vidro de Zamiatin vira inocente metáfora do passado.
Isso sem falar na transparência informática, preço a ser pago nestes dias, como dizia, abençoados. Do fundo desta telinha, leitor, 40 mil cookies te contemplam. Em verdade, nossa privacidade está muito mais devassada que a da moça de Santiago. Só que já nem ligamos.
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ENTREVISTA COM EVGUENY ZAMIATIN
POR FREDERIC LEFEVRE
Interviu dlia Frederika Lefevra
Abril de 1932
In: Antologuia Satiri i iumora Rossii XX veka — Evguenii Zamiatin, Tom 28, Izdvo Eksmo, 2004, Moskva, str. 20—24
Entrevista para Frederic Lefevre
in: Antologia de Sátira e Humor da Rússia do século XX — Evgueni Zamiatin, Volume 28, Editora Eksmo, 2004, Moscou, pg. 20—24.
Traduzido do russo por Clarice Lima Averina
— Se eu lhe respondo que nasci na Rússia, isto é pouco. Eu nasci e passei a infância bem no centro da Rússia em seu ventre de terras negras. Lá, na província de Tambov, há uma cidadezinha — Lebedian — outrora famosa por suas feiras, ciganos, trapaceiros e sua linguagem solidamente russa, perfumada como maçãs antonovkas. Não foi por acaso que Turguenev e Tolstoi escreveram a respeito desta cidade.
Eu até hoje me lembro dos excêntricos incomparáveis, que esta terra negra produziu: um coronel — Rafael culinário que preparava pratos geniais; um sacerdote que escreveu um tratado sobre a vida doméstica do diabo; um funcionário dos correios que ensinava a todos o idioma esperanto e que tinha a certeza de que em Vênus — Les habitants enériques — também falam em esperanto... Estes excêntricos dos anos 90 estão vivos até hoje. Não se espante, eles vivem em meu romance Provinciano.
Desde o início dos anos 900 eu vivi em Peterburgo. Parece que que sempre tive este traço de carácter, escolher la ligne de la plus resistance. Pode ser que, justamente por isto eu escolhi a faculdade mais difícil na École Polytechnique de Pétersbourg — a de construção naval. Em 1909 (1) eu terminei esta faculdade e fiquei como agrégé na cátedra de construção naval e a partir deste ano começou minha vida anfíbia...
—Acha estranha esta comparação?
Os anfíbios, como se sabe, têm vida dupla, respiração dupla: no ar e na água. Em 1909 eu fiz simultaneamente meu projeto de navio para o diploma e escrevi meu primeiro conto. Desde então eu vivo simultaneamente nestes dois elementos. Aliás, eu me diferencio dos anfíbios por nunca ter rastejado perante ninguém, e não ter vergonha de escrever o que me parece verdade. Para curar me deste mau-hábito o governo tsarista deteve-me como revolucionário na prisão de Peterburgo em 1906; nesta mesma prisão de Peterburgo foi-me prescrito o mesmo tratamento também em 1922. Mas eu temo que minha doença — heresia — é incurável. Um dos surtos desta doença foi meu romance Nous autres, que vejo na sua mesa. Críticos míopes viram neste livro nada mais do que um panfleto político. Isto, é claro, é incorreto: este romance é um sinal do perigo, que parte do poder hipertrofiado das máquinas e do poder do Estado — seja ele qual for e que ameaça o homem, a humanidade. Os americanos, que há alguns anos escreveram muito sobre a edição novaiorquina de meu romance, não sem razão, viram neste espelho também o seu fordismo. É muito curioso que em seu último romance o conhecido escritor inglês Huxley (2) desenvolve quase as mesmas idéias e situações de enredo que
foram dadas em Nous autres. Drieu de la Rochelle contou-me nestes dias que num encontro com Huxley ele perguntou se Huxley tinha lido Nous autres. A coincidência, é claro, foi casual. Mas tal coincidência indica que estas idéias estão em torno de nós, neste ar pré-tempestuoso que respiramos.
—Outros trabalhos meus? Ei-los: mais seis livros de prosa, seis peças de teatro e seis... quebra-gelos.
— Nomes? Do que — dos livros ou dos quebra-gelos? Comecemos pelos quebra-gelos. Eu construí quebra-gelos na Inglaterra durante a guerra. Minha construção melhor e preferida é o quebra-gelos "Lênin" de 1916-1917, no estaleiro Armstrong. Naquela época eu não suspeitava de que construía um navio com nome tão altissonante: então o quebra-gelos chamava-se "Santo Alexander Nevsky", e somente depois da revolução ele se arrependeu e mudou de nome. É um dos nossos maiores quebra-gelos, um pouco menor do que o "Krassin", porém tem construção mais aperfeiçoada. Recentemente diferentes jornais alemães, americanos e tchecos atribuíram-me o título de construtor do "Krassin". Isto não é bem assim. Eu fui apenas consultor na construção do "Krassin"— que foi construído também na Inglaterra simultaneamente com o "Lênin".
Uma conseqüência desagradável de minha estada de dois anos na Inglaterra foi minha novela Ilhéus — desagradável para os ingleses: eles se ofenderam tanto com esta novela que na Inglaterra foi impossível traduzi-la e publicá-la. Outro meu romance — Au bout du monde publicado na Rússia durante a guerra, pareceu ofensivo para a censura tsarista: a revista que publicou este romance foi confiscada e o livro só saiu depois da revolução. Como vê a profissão de herege é muito difícil, sobretudo em nossa época, em que se exige que o herege não apenas renuncie a seus equívocos, mas também prove imediatamente na pratica que estava errado. Imagine a situação de Galileu que teria de provar que estava errado, isto é, que a Terra não gira! O velho agora estaria numa situação sem saída.
— Não, não esqueci de minhas peças: simplesmente em nossa conversa imiscuiu-se uma terceira pessoa — Galileu. É sobretudo difícil para mim esquecer das peças, por que nos últimos anos eu me dediquei mais ao teatro. E depois, se pelos menos uma vez vimos o público no teatro emocionado com nossa peça, nunca mais esquecemos disto. Sobretudo se isto ocorre agora na Rússia onde ao teatro vai não o público, mas o povo, para o qual só agora abriram-se as portas do teatro, e que tem uma percepção especialmente nova e viva.
De minhas peças duas foram concluídas recentemente e não tive tempo de montá-las antes de viajar ao exterior, uma peça tem problemas com a censura (3) e três peças foram apresentadas nos maiores teatros de Moscou, Leningrado e província. As comédias Sociedade dos tocadores de carrilhão honorários e A Pulga foram as melhores, na minha opinião. "Os tocadores de carrilhão é uma sátira à sociedade inglesa contemporânea, e, como dizem, uma sátira muito mordaz. Pela primeira vez esta peça foi apresentada no palco do antigo teatro Mikhailovsky de Peterburgo, mas, acho que ela foi-melhor representada no Teatro Dramático Russo de Riga, onde esteve por várias temporadas seguidas. A Pulga é uma peça no estilo de comédia popular — ou se quiserem — da commedia dell'arte italiana. Esta peça foi apresentada em 1926 pelo Teatro Artístico de Moscou e desde então está lá pela sexta temporada já. Ambas estas peças foram traduzidas para o francês, e estou em conversações sobre sua apresentação em teatros parisienses (4). Está sendo traduzida para o francês uma de minhas peças Le delegue d'Afrique — uma farsa em três atos sobre a vida soviética.
Quais são agora os grupos literários mais influentes na Rússia? Depende de que influência falar. A maior influência — isto é poder — está em mãos dos chamados "escritores proletários, que seguem a ideologia oficial do partido comunista e, por isso, praticamente têm o direito ao monopólio da crítica literária — uma arma séria. Além dos talentos militares, alguns dos membros desse grupo têm, sem dúvida nenhuma, talentos civil e literário. Se quiser nomes eu posso citar-lhe o dramaturgo Afinoguenov, os romancistas Cholokhv, Lavrukhin e Fadeev. Mas, a maioria dos membros deste grupo trabalha ainda segundo os métodos do naturalismo de antes da revolução. No campo da forma literária avançaram muito mais os autores dentre os chamados "simpatizantes" — "les compagnons" e no sentido literário, naturalmente, eles exercem influência sobre seus vizinhos proletários. Entre os "simpatizantes"o grupo mais interessante e vivo é "Os irmão de Serapião" (V. Ivanov, Fedin, Tikhonov, Kaverin, Zochenko, Slonimski e outros) É agradável para mim assinalar que quase todos eles aprenderam comigo a técnica de nossa profissão: em 1919-1922 junto à Dom Iskusstv de Peterburgo havia um estúdio literário, onde eu dava aulas de técnica da prosa artística. Neste estúdio surgiram os "Irmãos de Serapião", e eu fui seu obstetra literário. Como vê, eu tenho mais uma profissão. Além dos "Irmãos de Serapião", passaram pelo gabinete do meu apartamento de Leningrado muitos e muitos outros jovens escritores.
Qual a situação dos escritores agora na Rússia?
Oh! Lá zelam por eles mais do que em outros países. Pagam-lhes mais, eles recebem muito boa "ration quotidien de vivres et pour comble — ration quotidienne ideologique. Aqui na Europa, parece que há muitos escritores "ayants mil fois" lá temos muitos antípodas: ecrivains n'ayant nul doutes. Esta é, provavelmente, uma condição muito feliz.
Sans blagues? Mas eu falo sério, pelo menos em relação ao grande grupo de escritores que assimilaram total e sinceramente a ideologia oficial. É muito mais difícil a situação dos "simpatizantes" — dos escritores que não são membros do partido, em sua maioria saídos do meio intelectual. Muitos deles agora têm de mudar radicalmente sua psicologia, seus gostos, como dizem entre nós "reestruturar-se". Para alguns isto é muito fácil. Mas não os respeitam nem mesmo aqueles a quem eles servem, eles recebem o apelido depreciativo de "oportunistas". Outros procuram fazê-lo como sinceridade e para estes é um processo difícil, doloroso, que termina às vezes tragicamente. O suicídio de Maiakovski — estou convicto disto — foi um desenlace de tal tragédia. Ele era um grande poeta, inovador, com grande arte formal e indubitável élan lírico. Ele conscientemente cortou de si o lírico — "pisou na garganta da canção" (como ele escreveu em um de seus últimos versos) para se tornar um poeta político. Esta cruel intervenção cirúrgica custou-lhe muito caro. A história de amor (que em sua vida foram muitas) podia, naturalmente, ter sido apenas pretexto, mas não causa de sua morte.
(1) Evidentemente é um erro, o correto é 1908.
(2) Trata-se do romance de A. Huxley Admirável Mundo Novo. Drieu de la Rochelle (1893—1945) — escritor francês, amigo comum de A. Huxley e E. Zamiatin.
(3) Trata-se da tragédia Átila.
(4) Em vida de E. Zamiatin estas peças não foram apresentadas em teatros parisienses.
AUTOBIOGRAFIA — 1929
Avtobiografii, In Izbrannie proizvedenie v dvukh tomakh, tom 1, str.31—38, Izd. Khudojestvennaia Literatura, Moskva, 1990.
Autobiografia, In Obras escolhidas de Zamiatin E. I. em dois volumes, publicadas em 1990 pela editora Literatura Artística, Vol.1, pp. 31—38.
Traduzido do russo por Clarice Lima Averina
Como buracos numa cortina escura fechada — instantes da minha primeira infância.
A sala de jantar, a mesa coberta com oleado e, na mesa, um prato com algo estranho, branco, brilhante e, maravilha, aquela coisa branca desaparece de repente, não se sabe para onde foi. No prato havia um pedaço do universo desconhecido, exterior, de fora do quarto: trouxeram neve no prato para me mostrar, e esta neve incrível ficou-me até hoje na memória.
Na mesma sala de jantar. Alguém tem-me ao colo diante da janela e lá fora, entre as árvores a esfera vermelha do sol escurece, eu sinto que é o fim e o mais terrível de tudo é que minha mãe ainda não voltou de algum lugar. Depois eu soube que esse alguém era a minha avó e que neste segundo eu estive à beira da morte — tinha então um ano e meio.
Mais tarde, tinha dois ou três anos. Pela primeira vez eu via muitas pessoas, uma multidão. Foi em Zadonsk: meu pai e minha mãe foram lá de carroça e levaram-me. A igreja, a fumaça azul, cânticos, luzes, um epilético a latir como um cão, um nó na garganta. Eis que tudo terminou, empurrões, sou levado pela multidão para fora e fico só na multidão: meu pai e minha mãe não estão lá e nunca mais estarão, estou só para sempre. Sento-me num túmulo qualquer ao sol e choro amargamente. Vivi uma hora só no mundo.
Em Voronej. O rio, uma banheira incomum, estranha para mim e dentro dela (depois lembrar-me-ia disto quando vi ursos brancos em lagos) banha-se um enorme corpo feminino rosado e volumoso — é a tia de minha mãe. Fico curioso e com um pouco de medo: pela primeira vez entendo o que é uma mulher.
Espero à janela, olho a rua vazia, com galinhas mergulhadas na poeira. E finalmente chega nosso tarantás (3), que traz meu pai do ginásio, ele está em cima de um assento grotescamente alto, com a bengala entre os joelhos. Espero o almoço com o coração apertado, mesa abro solenemente o jornal e leio em voz alta as enormes letras "O Filho da Pátria". Eu já conheço esta coisa misteriosa — as letras. Tenho uns quatro anos.
Verão. Cheiro de remédios. De repente minha mãe e minha tia fecham apressadamente a janela, trancam a porta da varanda e com o nariz colado ao vidro vejo: vão levá-los. Um cocheiro com bata branca, a carroça coberta com pano branco, e debaixo do pano pessoas encolhidas a mover pernas e braços: doentes de cólera. O isolamento dos doentes de cólera era na nossa rua, ao lado de nossa casa. Meu coração palpita. Eu sei o que é a morte. Tenho cinco, seis anos.
E, finalmente, uma manhã de agosto suave diáfana. O bater distante e transparente dos sinos do mosteiro. Passo ao lado do jardinzinho diante de nossa casa e sem olhar eu sei: a janela está aberta e olham para mim — minha mãe, avó e irmã. Porque eu, pela primeira vez, vesti calças compridas — "para sair" — e um blusão do uniforme do ginásio, levo uma mochila às costas, vou pela primeira vez ao ginásio. Ao meu encontro o aguadeiro Izmachka agita-se em cima de seu barril e várias vezes olha para mim. Estou orgulhoso. Sou grande. Tenho mais de 8 anos.
Tudo isto entre os campos de Tambov, em Lebedian uma cidade famosa por seus trapaceiros, ciganos, feiras de cavalos, e sua linguagem solidamente russa, sobre a qual escreveram Tolstoy e Turguenev. De 1884 a 1894.
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Adiante o ginásio, cinzento como o pano do uniforme. De vez em quando sobre o cinza uma maravilhosa bandeira vermelha. A bandeira vermelha era colocada na torre de vigilância dos bombeiros e então não significava absolutamente a revolução social e sim o frio de 20 graus negativos. Aliás, esta era a revolução de um dia na vida entediante e programada do ginásio.
A lanterna céptica de Diógenes aos doze anos. A "lanterna" (1) foi acesa por um grandalhão da segunda série e — azul, roxa, vermelha — ficou acesa debaixo de meu olho esquerdo por duas semanas inteiras. Eu rezei para que a "lanterna" se apagasse. O milagre não ocorreu. Comecei a refletir.
Muita solidão, muitos livros, Dostoevsky desde cedo. Até hoje lembro do tremor e faces afogueadas por causa de "Nietotchka Niezvanova". Dostoevsky permaneceria por muito tempo como o mais respeitável e até mesmo temível. Gogol era um amigo (muito mais tarde Anatole France passou a sê-lo também).
A partir de 1986 — o ginásio em Voronej. Minha especialidade, que todos conheciam, era redação em russo. A especialidade, que ninguém conhecia, todas as experiências possíveis sobre mim próprio — para me "temperar".
Lembro-me que na sétima série, na primavera, fui mordido por um cão raivoso. Peguei um manual de medicina qualquer e li que o período comum antes do aparecimento dos sintomas da raiva era de duas semanas. E decidi esperar esse prazo, para ver se tinha ou não pegado raiva — para testar o destino e a mim próprio. Durante essas duas semanas escrevi um diário (o único na vida). Duas semanas depois, não ficara raivoso e comuniquei o fato à direção, que me enviou imediatamente a Moscou para tomar a vacina de Pasteur. Minha experiência terminou bem. Mais tarde, uns dez anos depois, durante as noites brancas de Peterburgo, quando fiquei louco de amor — fiz a experiência com mais seriedade, mas não com mais inteligência.
Deixei o pano cinza do ginásio em 1902. A medalha de ouro foi empenhada por 25 rublos numa casa de penhores em Peterburgo e lá ficou.
Lembro-me do último dia no gabinete do inspetor ("da égua" segundo a hierarquia do ginásio) os óculos na testa, puxando as calças para cima (suas calças viviam caindo) estendeu-me uma brochura. Li a dedicatória: "À minha alma mater da qual só tenho más recordações. P. E. Shegoliev". E o inspetor sentencioso, fanhoso, acentuando a letra "o" (2): "Isso é bom? Também terminou o ginásio com medalha e o que escreve? Está na prisão? Meu conselho: não escreva, não siga este caminho". A lição não ajudou.
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Peterburgo, início dos anos 1900 — Peterburgo de Komissarjevskaia, Leonid
Andreev, Witte, Plevé, trotadores cobertos de rede azul, bondes, puxados a cavalo, estudantes de uniforme e espada e estudantes com paletó azuis de botões do lado. Eu estudava na escola Politécnica, era um daqueles de paletó com botões do lado.
Num domingo branco de inverno na avenida Nevski — multidões escuras e lentas esperavam alguma coisa. A torre da Duma rege a multidão, que não tira os olhos do regente. E quando foi dado o sinal — uma explosão à uma da tarde, na avenida de todos os lados manchas humanas, farrapos da Marselhesa, bandeiras vermelhas, cossacos, garis, policiais. A primeira, para mim, manifestação de 1903. E quanto mais se aproxima 1905 mais febril é o movimento, as reuniões mais ruidosas.
No verão, estágio nas fábricas, a Rússia, os vagões fanfarrões e alegres de terceira classe. Sevastopol, Nijni, as fábricas da região do Kama, Odessa, porto, os maltrapilhos.
Verão de 1905, especialmente azul, multicolor, cheio de gente e de acontecimentos. Eu fazia um estágio no navio "Rossia", que ia de Odessa a Alexandria. Constantinopla, mesquitas, derviches, bazares, o cais de mármore branco de Esmirna, beduínos de Beirute, a ressaca branca de Jaffa, Athos verde-negro, o pestilento Port Said, a África amarela e branca, Alexandria, com policiais ingleses, vendedores de crocodilos empalhados, o famoso Tartuch. Singular, isolada de tudo, a incrível Jerusalém, onde passei uma semana na casa de um árabe conhecido.
Ao retornar a Odessa — a epopéia do motim no "Potemkin". Com o maquinista do "Rossia", empurrado, pisado, embriagado pela multidão, vaguei no porto todo o dia e a noite inteira, no meio dos disparos, incêndios e pogroms.
Naqueles anos ser bolchevique significava seguir a linha da resistência maior, e eu era então bolchevique. Era o outono de 1905, greves, a avenida Nevski cheia de gente, varrida pelo projetor do almirantado, em 17 de outubro, comícios em estabelecimentos de ensino superior.
Certa vez em dezembro à noite veio ao meu quarto na travessa Loman um amigo operário, com orelhas de abano, Nicolai V., com um saco de papel daqueles de pãezinhos da Casa Filipov, no saquinho havia piroxilina. "Deixo com você este saquinho porque os policiais estão atrás de mim" — "Pode deixar". Até agora vejo o saco no parapeito da janela, ao lado de um pacote de açúcar e de salame.
No dia seguinte, no quartel do bairro de Viborg no momento em que na mesa estavam planos, parabelluns, mausers, a polícia, — éramos trinta apanhados na ratoeira —, em meu quarto, à esquerda, no parapeito da janela estava o saquinho de pães da Casa Filipov e panfletos debaixo da cama.
Quando, revistados e espancados, fomos divididos em grupos, eu, junto com outros quatro — fiquei ao lado da janela. Vi na rua, junto ao poste, caras conhecidas, aproveitei um momento para lançar um bilhete pedindo que retirassem do meu quarto e dos outros quatro tudo o que não devia estar lá. Isto foi feito. Mas eu só soube disto mais tarde, então, durante vários meses, na cela da Chpalernaia sonhei só com o saco de pãezinhos da Casa Filipov no parapeito da janela à esquerda.
Na cela apaixonei-me, estudei taquigrafia, inglês e escrevi versos (isto é inevitável). Na primavera de 1906 fui libertado e mandado para minha terra natal.
Não suportei por muito tempo o silêncio, os sinos e os jardinzinhos de Lebedian. No verão, sem autorização fui a Peterburgo, depois a Helsingfors. Um quarto, que dava para a Erdoholmsgatan, e sob a minha janela o mar, os rochedos. À noite, quando mal se viam os rostos, realizavam-se comícios no granito cinza. De madrugada não se viam os rostos, a pedra negra e quente parecia branda — porque ela estava ao lado e os raios dos projetores de Sveaborg eram suaves.
Certa vez, nos banhos, um camarada nu apresentou-me um homenzinho nu, um pouco barrigudo: o homenzinho barrigudo era Kok, o famoso capitão da guarda vermelha. Alguns dias depois a guarda vermelha estava em armas, mal se viam ainda no horizonte os contornos da esquadra de Kronstadt, os esguichos das bombas de doze polegadas que explodiam na água, o rimbombar cada vez mais fraco dos canhões de Sveaborg. E eu disfarçado, escanhoado, com pince-nez, retorno a Peterburgo.
O parlamento no Estado. Pequenos estados dentro do estado — estabelecimentos de ensino superior com seus parlamentos. Conselhos de starostas. A luta dos partidos, propaganda eleitoral, cartazes, panfletos, discursos, urnas. Eu era membro — temporariamente presidente — do conselho de starostas.
Fui intimado a comparecer à delegacia. Na delegacia um papel verde procura-se "o estudante universitário Evgueni Ivanov Zamiatin" para ser banido de Peterburgo. Declaro honestamente que nunca estive na universidade, e que no papel há com certeza um equívoco. Lembro-me do nariz do comissário de polícia — um gancho, um ponto de interrogação: "Hum...Temos de investigar". Enquanto isto eu mudei para outro bairro: lá, seis meses depois, uma nova intimação, o papel verde, "estudante universitário", ponto de interrogação e informações. E assim durante 5 anos, até 1911, quando finalmente o erro no papel verde foi corrigido e expulsaram-me de Peterburgo.
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Em 1908 terminei a faculdade de construção naval do Intituto Politécnico e fui nomeado para a cadeira de arquitetura naval ( a partir de 1911 fui professor dessa disciplina. Juntamente com o projeto de um navio com torre blindada, estavam na minha mesa as páginas de meu primeiro conto, que enviei à revista "Obrazovanie", que era redigida por Ostrogorski. A secção de letras era coordenada por Artsibachev. No outono de 1908 o conto foi publicado. Quando me encontro agora com pessoas que leram esse conto, sinto-me tão embaraçado como quando encontro uma das minhas tias, cujo vestido molhei publicamente, quando tinha dois anos de idade.
Nos três anos seguintes — navios, arquitetura naval, régua de logaritmos, esboços, construções, artigos especiais nas revistas "Teplokhod" "Russkoe Sudovodstvo", "Isvestia Politekhnitcheskogo Instituta". Muitas viagens de trabalho por toda a Rússia: o Volga até Tsaritsin, Astrakhan, Kama, região de Donetsk, Mar Cáspio, Arkhanguelsk, Murman, Cáucaso e Criméia.
Nestes anos, entre esboços e número — alguns contos, que não dei para imprimir, em cada um deles eu sentia que havia ali algo que não correspondia. Encontrei o que faltava em 1911. Neste ano as noites brancas foram incríveis, havia muito branco e muito escuro. Nesse ano tive o exílio, uma doença grave e meus nervos cederam, Inicialmente vivi numa casa de campo vazia em Sestroretsk, depois, no inverno, vivi em Lakhta. Ali — a neve, solidão, silêncio — escrevi "Provinciana", aproximei-me do grupo "Zaveti" de Remizov, Prichvin, Ivanov-Razumnik.
Em 1913, tricentenário da dinastia Romanov, obtive o direito de viver em Peterburgo. Agora eram os médicos que me mandavam embora de Peterburgo. Fui para Nicolaev, construí lá algumas escavadoras, escrevi alguns contos e a novela "Nos cafundós do Judas". A revista Zaveti que a publicou foi censurada e apreendida, a redação e o autor foram chamados à responsabilidade penal. Julgaram pouco antes da revolução de fevereiro e absolveram.
O inverno de 1915-1916 novamente tempestuoso e febril terminou com desafio para um duelo em janeiro e em março partida para a Inglaterra.
Até então no Ocidente estivera apenas na Alemanha, Berlim pareceu-me condensada — 80% de Peterburgo. Na Inglaterra foi diferente: tão novo e tão estranho como em outros tempos em Alexandria , em Jerusalém.
Ali inicialmente o ferro, máquinas, esboços: construí quebra-gelos em Glasgow, New Castle, Senderland, Sowsheeds (aliás um dos maiores quebra-gelos é o "Lênin"). Os alemães lançam bombas de zeppelins e aeroplanos. Eu escrevi Os Ilhéus.
Quando nos jornais apareceram em letras grandes Revolution in Rússia, Abdication of Russian Tzar, não agüentei mais ficar na Inglaterra e em setembro de 1917, a bordo de um velho naviozinho inglês (se os alemães o afundassem, não se perdia muito), eu voltei para a Rússia. Navegamos durante muito tempo até Bergen, umas cinqüenta horas, com as luzes apagadas, com coletes salva-vidas e chalupas prontas.
Inverno alegre e terrível de 1917—1918, quando tudo se moveu, se perdeu no desconhecido. Navios, casas, fuzilamentos, buscas, plantões noturnos, comitês de bairro. Mais tarde, ruas sem bonde, longas filas de pessoas com sacos, dezenas de verstas por dia, burjuikas (4) arenques, aveia moída em moinho de café. E ao lado da aveia mirabolantes planos de publicar todos os clássicos de todos os tempos e todos os povos, unir todos os representantes de todas as artes, apresentar no teatro toda a história de todo o mundo. Não havia tempo para desenhos técnicos, a técnica prática secou e caiu de mim como uma folha amarela (da técnica restou apenas o ensino no Instituto Politécnico). Simultaneamente , um curso de literatura russa contemporânea no Instituto de Pedagogia Guertsen (1920-1921) um curso de técnica de prosa artística no Estúdio da Casa de Artes, trabalhava no conselho de redação da "Literatura Universal", na direção da União Russa de Escritores, no Comitê da Casa dos Literatos, no Conselho da Casa de Artes, na Secção dos filmes históricos PTO, na editora de Grjebin, "Alkonost", "Petrópolis", "Misl", na redação das revistas "Casa das Artes", "O Ocidente Moderno", "O contemporâneo russo". Durante estes anos escrevi relativamente pouco. Entre as coisas mais importantes o romance"Nós, publicado em inglês em 1925, depois em tradução para outras línguas, este romance ainda não foi publicado em russo.
Em 1925 traição à literatura: teatro, as peças A Pulga e a Sociedade dos tocadores de carrilhão honorários. A Pulga foi apresentada pela primeira vez no palco do Teatro Acadêmico Artístico de Moscou em 2 de fevereiro de 1925, a Sociedade dos tocadores de carrilhão honorários em novembro de 1925 no Grande Teatro Mikhailovski em Leningrado. A nova peça — a tragédia Átila foi concluída em 1928. Em Átila cheguei aos versos. Impossível ir mais além, volto ao romance e contos.
Penso que se em 1917 não tivesse voltado da Inglaterra, se não tivesse vivido todos estes anos junto com a Rússia não poderia mais escrever. Vi muita coisa: em Peterburgo, em Moscou, na periferia em Tambov, nas aldeias perto de Vólogda, Pskov, em vagões de carga.
Assim se fechou o círculo. Ainda não sei, não vejo quais serão doravante as curvas de minha vida.
(1) N.T. A palavra "lanterna" na gíria significa "olho roxo"
(2) N.T. Em russo a letra "o" não acentuada é lida quase que como um "a" em muitas regiões.
(3) N.T. Tarantás é uma espécie de carruagem coberta, com quatro rodas.
(4) N.T. Uma espécie de aquecedor de ambiente, constituído de um barril metálico com uma chaminé, dentro do qual acendiam fogo.
SOBRE A TRADUTORA
Clarice Lima Averina é paulista. Aprendeu russo em Moscou, onde concluiu a Faculdade de História, da Universidade da Amizade dos Povos. Nós é o quarto livro por ela traduzido do idioma russo. Traduziu também Oriente e Ocidente, História do proletariado brasileiro, de Boris Koval e Bíblia para crentes e não-crentes de Emelian Iaroslavsky, estes dois últimos publicados pela Alfa-Omega.
Trabalhou como tradutora, durante 17 anos, na redação da América Latina da Rádio Moscou Internacional. Durante o tempo em que viveu em Moscou (mais de 20 anos) fez diversos trabalhos de tradução e versão, de contos, filmes, e artigos sobre diferentes temas. No ano de 2000 foi nomeada, pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, tradutora pública e intérprete comercial, tendo conseguido o quarto lugar no concurso da JUCESP (os três primeiros colocados eram russos).
Muito mais do que uma obra política, Nós insurge como um corajoso ataque ao totalitarismo que com suas mãos de ferro viola os direitos individuais, corrompe as relações humanas, usurpa a liberdade do livre-pensar e agir, destrói a criatividade e violenta a arte em nome de idéias equivocadas sobre um suposto bem comum.
É ainda um grito em defesa da liberdade do homem; um alerta, para um perigo eminente: Cuidado! Querem fazer-nos acreditar na segurança da não-liberdade.
Original, dono de aguçada percepção e imaginação, Zamiatin, numa narrativa surrealista, permeada pela ironia — combinando realidade e irrealidade, acontecimentos trágicos e risíveis, fazendo uso de uma linguagem contida, propositalmente disciplinada; preocupado com a liberdade de escolha, com o querer e o criar — profetiza a desumanização, os pensamentos e as ações programadas, a banalização das necessidades do homem, a repressão das emoções, o extermínio dos que estão em desacordo com a ordem imposta, a produção de autômatos, as lavagens cerebrais, a destruição daqueles que lutam para manter vivas imaginação e originalidade.
A história em Nós, fala das causas e de como se articula e acontece uma revolução num tempo futuro, num espaço cercado por muros, onde os membros da sociedade, constantemente vigiados pelos Guardiões, habitam casas de paredes de vidro, não recebem nomes, mas números; são obrigados a reverenciar ritualmente o Benfeitor e sua Máquina, têm pensamentos e atitudes condicionados, executam trabalhos mecânicos, e suas vidas particulares e sociais são programadas e controladas por um governo autoritário, o Estado Unificado. O controle e as programações vão mesmo até seus encontros íntimos transformados em impessoais, com horários e locais estipulados, entre indivíduos (números) previamente registrados.
Temas, situações e conceitos encontrados em Nós (escrito em 1920-21) — aqui, numa tradução precisa de Clarice Lima Averina, a partir da primeira edição russa, de 1988 — inspiraram alguns escritores como Aldoux Huxley em Admirável mundo novo (de 1932) e George Orwell em 1984 (de 1949).
Nós é uma contribuição notável e pioneira de Zamiatin à discussão da utopia, tema mais do que presente na literatura russa.
ISBN 85-295—0044-X
Capa: Antônio do Amaral Rocha
Ilustração: Paul Klee, Italienische Stadt, 1928
212 pp. - R$ 46,00
PREFÁCIO DA EDIÇÃO RUSSA
Título original: MI, in Utopiia i Antiutopia XX Vieka Vietsher b 2217 Gadu Ruskaia Litieraturnaia Utopiia Isdalistivo Progress Moskva — 1990
EVOLUÇÃO DA LITERATURA UTÓPICA RUSSA
Por Viatcheslav Chestakov
Tradução de Clarice Lima Averina
Na história da literatura, os romances e novelas utópicos sempre desempenharam um grande papel, por serem uma das formas de conscientização e avaliação da representação do futuro. Partindo, via de regra, da crítica do presente, a utopia descrevia o desenvolvimento ulterior da sociedade, seus possíveis caminhos, esboçava variantes do futuro. Até hoje conserva-se esta função da literatura utópica, apesar do rápido desenvolvimento da futurologia e popularidade da ficção científica, que também procuram conhecer o futuro.
A literatura utópica mundial é muito ampla. No decurso de sua história ela passou por períodos de ascensão e decadência, êxitos e fracassos. Às vezes os autores de obras utópicas criavam obras claramente fracas no sentido artístico e cognitivo. Mas, ao mesmo tempo, foram criadas obras-primas, tais como Utopia, de Tomas Morus ou Cidade do sol, de Campanella, que até hoje são modelos do pensamento e criação utópicos.
Hoje é difícil imaginar um panorama geral da História sem as obras utópicas. Como disse Oscar Wilde, não vale a pena olhar o mapa da terra que não mostra a utopia, pois esse mapa ignora o país, que a humanidade procura incansavelmente. O progresso é a realização de utopias.
O termo utopia teve origem no nome da fantástica ilha imaginária no famoso livro de Tomas Morus. Este termo vem do grego "u" — "não" e "topos" — "lugar". O significado literal do termo utopia é: lugar que não existe.
Existiram também outras versões deste conceito, em particular originária do grego "eu" — "perfeito", "melhor" e "topos" — "lugar", isto é lugar perfeito, país da perfeição. Ambas interpretações desta palavra estão amplamente representadas na literatura utópica. Lembremos os nomes de conhecidas obras utópicas, como Notícias de lugar nenhum de William Morris, Erewhon (anagrama de nowhere) de Samuel Butler ou Cidade do sol de Tommaso Campanella, ou ainda, Admirável mundo novo de Aldous Huxley (este último título encerra, é verdade, franca ironia) etc.
Na literatura contemporânea são utilizados também outros conceitos, relacionados com o termo utopia e originários da raiz "topos". É — "distopia" do grego "dis" — "ruim" e "topos" — "lugar", isto é, lugar ruim, algo diametralmente oposto à utopia como mundo perfeito, melhor, empregado para designar o gênero literário especial, a chamada utopia negativa, também oposta à utopia tradicional, positiva.
Desse modo o termo utopia é agora complexo e de significado múltiplo. Entretanto, apesar de toda a variedade de nuances de significado, a função fundamental e tradicional desse termo é designar um país imaginário com a finalidade de servir de exemplo de regime social.
No decurso da História a utopia, como uma das originais formas de consciência social, teve características como interpretação do ideal social, crítica social, exortação a fugir da realidade sombria, e também tentativas de antecipar o futuro da humanidade. A utopia literária entrelaça-se estreitamente com as lendas da "Idade de Ouro" das "ilhas dos bem-aventurados", com diferentes concepções e ideais religiosos e éticos. Na época do Renascimento a utopia adquiriu, preponderantemente, a forma de descrição de Estados perfeitos ou cidades ideais, que existiriam em algum lugar da terra, via de regra, em algum ponto distante do globo terrestre, em ilhas inacessíveis, debaixo da terra ou em montanhas. A partir do século XVII torna-se popular uma forma especial de utopia literária: o chamado romance estatal, que contava sobre viagens a países utópicos e continha, antes de mais nada, a descrição de seus regimes estatais. Ao mesmo tempo difundiram-se amplamente diferentes projetos e tratados utópicos.
Na História existiram os mais variados tipos de pensamento utópico, que refletiam os interesses de diferentes classes e camadas sociais. Existiram utopias escravistas (utopias de Platão e Xenofonte) utopias feudais, por exemplo: A cidade de Deus, de Santo Agostinho e Cristianópolis, de Andréas, numerosas utopias burguesas e pequeno—burguesas. Muitas obras utópicas foram dedicadas não a regimes sociais em geral, mas propunham a solução de determinados problemas sociais: tratados sobre a "paz eterna" difundidos nos séculos XVI—XIX (Erasmo de Roterdam, Saint—Pierre, Kant, Bentham); utopias pedagógicas, ético-morais e estéticas (Jan Amos Komensky, Jean Jacques Rousseau, Lev Tolstoy, Friedrich Schiller); utopias técnico-científicas (Francis Bacon) e outros.
Entre utopias, diferentes por seu conteúdo social, destaca-se mais claramente o socialismo utópico, que expressava os ideais das massas trabalhadoras oprimidas, fundamentava as idéias da igualdade e justiça social. Na literatura do socialismo utópico existiam, por sua vez, diferentes orientações, que se distinguem umas das outras por seu significado social e maturidade teórica dos ideais socialistas. O socialismo utópico clássico do século XIX foi uma das fontes do marxismo.
Os clássicos do marxismo, assinalando a limitação histórica do socialismo utópico, valorizaram altamente seu papel como prognóstico. "O socialismo teórico alemão nunca esquecerá que se apóia nos ombros de Saint-Simon, Fourier e Owen, três pensadores, que, apesar do caráter utópico e fantástico de suas doutrinas, estão entre as maiores inteligências de todos os tempos e que anteciparam genialmente inúmeras verdades, cuja correção nós agora provamos cientificamente" (1).
Como forma de fantasia social, a utopia baseia-se, no fundamental, não em métodos científicos e teóricos do conhecimento da realidade, mas na imaginação. A isto está relacionada uma série de particularidades da utopia, inclusive tais como afastamento intencional da realidade, anseios de reconstruir a realidade segundo o princípio: "tudo deve ser ao contrário", livre passagem do real ao ideal. Na utopia sempre está presente a hiperbolização do princípio espiritual, nela destina-se um lugar especial à ciência, à arte, educação, legislação e outros fatores da cultura. Com o surgimento do comunismo científico, o significado cognitivo e crítico da utopia positiva começa a cair gradualmente.
Adquire grande significado a função de crítica da sociedade, antes de mais nada, burguesa, assumida pela chamada utopia negativa, novo tipo de utopia literária, que se formou da segunda metade do século XIX. A utopia negativa ou anti-utopia diferencia-se em muito da utopia clássica positiva. As utopias clássicas tradicionais significavam uma idéia figurada do futuro ideal e desejável. Na utopia satírica, utopia negativa, romance-advertência descreve-se não o futuro ideal mas o futuro indesejável. A imagem do futuro é parodiada, criticada. Isto não significa, naturalmente, que com o surgimento das utopias negativas, desaparece ou desvaloriza-se o próprio pensamento utópico, como supõe, por exemplo, o historiador inglês Chad Walsh. Em seu livro Da utopia ao pesadelo, ele escreve: "Uma porcentagem cada vez menor do mundo imaginário é utopia, uma porcentagem cada vez maior dele são pesadelos. A anti-utopia ou utopia no avesso foi, no século XIX, uma moldura insignificante da produção utópica. Hoje ela é o tipo dominante, se já não se tornou predominante estatisticamente". (2)
Na realidade, a utopia negativa não elimina o pensamento utópico, mas apenas o transforma. Ela, na nossa opinião, herda da utopia clássica a capacidade de prognóstico e crítica social. Naturalmente que a anti-utopia é um fenômeno contraditório e heterogêneo, no qual se encontram traços tanto conservadores como progressistas. Mas, nas melhores obras desse tipo surgiram novas funções ideológicas e estéticas — advertir sobre as conseqüências indesejáveis do desenvolvimento da sociedade burguesa e seus institutos.
O surgimento das anti-utopias é um fenômeno pan-europeu. Ele é observado, em essência, simultaneamente em quase todos os países da Europa Ocidental, em particular na Inglaterra, Alemanha e França.
É digno de nota o fato de que a Inglaterra, pátria das utopias positivas, é também pátria da utopias negativas, utopias-advertências. Entre as primeiras anti-utopias estão Raça futura, de Bulver Litton (1870); Erewhon, de S. Butler (1872); Através do zodíaco de Persi Greg (1880); A máquina pára, de E. M. Forster (1911) e outras.
Na Alemanha, entre as primeiras anti-utopias, destaca-se o romance de M. Konrad, Na escuridão purpúrea (1895). Nele descreve-se a Europa do século XXX. Konrad desenha um quadro sombrio do futuro. Guerras intermináveis que dilaceram a Europa, no final leva à guerra mundial e ao desaparecimento de toda a cultura européia.
Elementos da utopia negativa refletem—se na obra multilateral de Herbert Wells — nos romances A guerra dos mundos e A guerra no ar. "Os romances de ficção científica social de Wells" — escreveu em 1922 o escritor russo Evgueny Zamiatin — "diferenciam-se das utopias assim como O + A diferencia—se do —A; não são utopia, na maioria dos casos são panfletos sociais, vestidos na forma artística de romance de ciência ficção". (3) Motivos da anti-utopia são próprios também dos romances A ilha dos pingüins, de Anatole France e O tacão de ferro, de Jack London. O próprio desenvolvimento da literatura utópica, sua evolução quanto ao gênero e conteúdo não podiam deixar de influir sobre a interpretação semântica do termo utopia, tanto na teoria sociológica como na própria prática literário-artística. Não é por acaso que hoje a utopia não é apenas a representação ideal do futuro. É descrição do futuro possível, tanto desejável como indesejável. Sendo que as utopias literárias, diferentemente dos prognósticos sociais ou projetos futurológicos, com freqüência são romances ou novelas de enredo empolgante; são, via de regra, composições no gênero romance de aventuras, viagens ou ficção científica.
A ficção científica é importante elemento da utopia. Os autores de romances utópicos sempre usaram métodos de descrição fantástica. Mas, no entanto, a utopia como gênero de arte tradicional é bastante definido, diferencia-se da literatura fantástica ou ficção científica contemporânea, que nem sempre se ocupa da construção de possível imagem do futuro. A utopia diferencia-se também das lendas populares sobre "um futuro melhor", porque ela, no final das contas, é gerada pela consciência individual. Distingue—se a utopia também da sátira (apesar de, com freqüência, incluir o elemento satírico) porque critica, via de regra, não apenas um elemento concreto, mas o próprio princípio do regime social. Finalmente ela se distingue também dos projetos futurológicos, porque é uma obra de arte, que não leva a determinado equivalente social e sempre encerra simpatias e antipatias, gostos e ideais do autor.
Cada país deu e dá sua contribuição ao tesouro do pensamento utópico. O catálogo mundial da literatura utópica no período do século XVI ao século XIX tem cerca de mil títulos. Entretanto, também posteriormente, a utopia não desaparece. Por exemplo, na Inglaterra, na primeira metade do século XX, surgiram cerca de 300 obras de conteúdos utópicos, dezenas de utopias foram criadas no início do século XX na Alemanha, nos EUA, somente no período de 1887 a 1900 foram escritas mais de 50 utopias.
Na história da literatura russa existe também uma tradição bastante sólida de criação de composições utópicas, ligada a nomes tais como Sumarokov, Radishev, Odoevsky, Tchernichevsky, Dostoiévsky, Saltikov Shedrin e outros.
A utopia literária russa perde em quantidade para a européia ocidental. Na Europa o gênero da utopia é mais antigo e mais popular. A utopia surge praticamente na aurora da literatura européia, pode-se dizer que ela começou com Platão. Na Rússia a utopia surge no século XVIII — na época da criação da literatura da idade moderna. Em compensação, a partir desse período, ela se desenvolve ativamente, correspondendo às necessidades do pensamento social russo. No entanto, a utopia russa é menos conhecida do que a européia ocidental. Esta circunstância pode ser explicada por duas causas. Em primeiro lugar a utopia russa nem sempre se encontrava em uma obra independente, muitas vezes se dissolvia em obras literárias de outros gêneros: romances sociais, contos fantásticos (por exemplo, motivos utópicos na Viagem de Petersburgo a Moscou de Radishev). Em segundo lugar, pesquisadores russos e estrangeiros não deram atenção suficiente a este tema. Mais do que isto, alguns deles acham que na Rússia a utopia como gênero de arte em desenvolvimento conseqüente, ou não existiu, ou teve caráter de imitação e era insignificante no sentido literário.
Hoje semelhante opinião é considerada arcaica e errônea. A atenção para com a literatura utópica russa surgiu nos últimos anos. Há fundamentos para afirmar que a literatura russa é mais rica em composições utópicas do que se pensa. Sendo que estas composições são variadas tanto por seu conteúdo social como por suas características de gênero. Aqui nós encontramos tanto utopias no espírito do "romance estatal", popular no século XVIII como utopias dezembrista, educativas, eslavófilas e obras no espírito do socialismo utópico, e sátiras utópicas, que anteciparam o gênero da "utopia negativa", que se tornou popular na segunda metade do século XIX e início do século XX e outros tipos de literatura utópica.
As utopias socialistas surgiram na consciência popular ainda na antiga Rússia. Elas tinham caráter de esperanças ou tradições, como por exemplo, a lenda sobre Aventuras de Agapia no paraíso ou Visita de Zocima aos rakhmanos. Entretanto as primeiras utopias literárias, no sentido pleno da expressão, surgiram na Rússia no século XVIII. Então surgiu também um grande interesse pelas utopias européias, que eram traduzidas para o russo. Assim, na segunda metade do século, foram publicadas duas edições da Utopia de Tomas Morus (é verdade que a edição de 1789 foi queimada por ordem de Catarina II), traduções de romances utópicos de L. Goldberg, D. Ramsay, F. Fenelon, B. Fontenele e outros. Inicialmente as novelas e romances utópicos russos usavam amplamente métodos e enredos literários das utopias européias. Entretanto, imitadores na forma, eles sempre refletiram a vida social russa, referindo-se a problemas da realidade russa.
A maioria das utopias européias tratava de viagens ou visita inesperada a um país desconhecido, não assinalado nos mapas geográficos. Mikhail Sherbatov assimila este enredo tradicional, por exemplo, ao descrever sua "terra de Ofir" (Viagem à terra de Ofir). Porém, na literatura russa, com maior freqüência, fala-se do futuro, que o herói vê em sonhos. Claro que nem todos os sonhos podem ser considerados utopia, mas só aqueles que permitiam ao escritor dar uma olhada no futuro. Nisto se baseia o conto de Sumarokov "O sonho da sociedade feliz", a notável descrição do sonho da novela de Radishev Viagem de Peterburgo a Moscou, o Sonho de Ulibichev, o quarto sonho de Vera Pávlovna do romance Que fazer?, de Tchernichevsky, "O sonho do homem engraçado" de Dostoiévsky e outros.
Por que justamente o sonho tornou-se o meio narrativo tradicional na literatura utópica russa? Em certo grau, pelo visto isto se explica pela censura da literatura russa. Pois as descrições utópicas do futuro sempre foram uma forma perigosa de literatura, pois se referiam a muitos problemas sociais agudos. A censura controlava rigorosamente e com freqüência proibia muitas narrativas utópicas. Não foi por acaso, que Catarina II ordenou queimar Utopia de Tomas Morus! O sonho era outra coisa. Pois ele era uma forma convencional e não-obrigatória de representação do futuro. O autor não pode ser responsabilizado pelo que sonha. Existia também outra causa, talvez mais significativa.
O escritor e pensador russo, talvez mais do que seu confrade europeu, sentia a diferença entre o ideal e a realidade. Aquilo que o autor e filósofo europeu achava possível já no processo de criação próxima (o viajante que contava com detalhes concretos sobre uma sociedade que existia na realidade) para o utopista russo parecia um grande sonho, realizável apenas em um futuro muito distante.
Em 1858, Aleksandr Guertsen publicou em Londres duas obras Sobre danos aos costumes na Rússia, de Sherbatov e Viagem de Peterbugo a Moscou de Radishev. Não foi por acaso que ele publicou estas duas obras, pois elas eram, em essência documentos do pensamento crítico e radicalismo político. Entretanto em seu prefácio à edição, Guertsen assinalou as diferenças substanciais na posição política de Sherbatov e Radishev.
"O príncipe Sherbatov e Radishev" — escreveu ele — "representam concepções extremas da Rússia dos tempos de Catarina. Tristes sentinelas em duas portas diferentes, eles, como Jano, olham para lados opostos. Sherbatov, dando as costas para a corte dissoluta de seu tempo, olha para a porta em que entrou Pedro I e atrás dela vê a Rússia moscovita cerimoniosa e arrogante, e o velho descontente acha que o modo de vida entediante e semi-selvagem de nossos ancestrais é um ideal perdido."
É totalmente diferente a posição de Radishev, para o qual o ideal é o futuro e não o passado. Radishev olha para frente, sente a influência dos últimos anos do século XVIII. Nunca o peito humano esteve tão pleno de esperanças do que na grande primavera dos anos noventa... Radishev está muito mais próximo de nós do que Sherbatov; é claro que seus ideais estavam tão alto no céu como os ideais de Sherbatov estavam profundamente no túmulo; mas eles eram nossos sonhos, sonhos dos dezembristas. Esta ligação "interna" refletiu-se, além de outras coisas, no fato de que os dezembristas, como Radishev, trataram da utopia literária como arte que permite unir a crítica social do presente com uma olhada para o futuro.
Entre as utopias dezembristas estão, antes de mais nada, a novela Sonho de Aleksandr Ulibichev, que aderiu aos dezembristas, e as Cartas européias, de Vilguelm Kiukhelbeker. As últimas foram escritas em nome de um americano, viajando pela Europa no século XXVI, e tecendo considerações sobre o passado e presente dos países europeus. Ele comunica que a Europa naquele tempo "envelheceu", países tais como a Itália e Espanha entraram em decadência, Paris e Londres desapareceram da face da terra. "A providência tirou-lhes a luz, mas somente para ordenar ao sol da verdade brilhar melhor sobre a Ásia, sobre a África, sobre a sucessora natural da Europa — a América".
Como assinalou Iury Tinianov, que pesquisou a obra de Kiukhelbeker, não foi por acaso que ele recorreu à América, isto representava a idéia do futuro da Rússia. Kiukhelbeker, futuro dezembrista, tinha desenvolvido o sentido do grande futuro histórico que sua pátria tinha pela frente e a fé firme no "aperfeiçoamento do ser humano". Sua "América" é a futura Rússia do dezembrista; ele relaciona com ela a juventude e significado de seu país, em comparação com o qual a Europa envelheceu.
Na segunda metade do século XIX surge na literatura russa uma série de obras, notáveis por seu conteúdo sócio-filosófico e nível estético, que tinham motivos utópicos e realizavam os princípios artísticos da utopia. E aqui se deve citar em primeiro lugar obras de Dostoiévsky. A idéia da "Idade de Ouro" da humanidade sempre emocionou o escritor. Dostoiévisky torturava-se com a questão: será possível ao homem voltar-se para a vida natural e beleza idílica, que está relacionada com a imagem da "Idade de ouro", ou a catástrofe o espera — se não o extermínio físico direto, pelo menos a queda de todos os valores morais e culturais. A idéia da "Idade de Ouro" soa já nos devaneios de Raskolnikov no romance Crime e castigo e no conto "O sonho do homem engraçado".
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É digna de nota, por exemplo, a novela do jornalista peterburguense Nicolai Fiodorov, Noite de 2217.
Assinalamos que muitos momentos da utopia negativa de Fiodorov podem ser explicados pela influência da utopia de Bellani, Olhando para trás. Não é por acaso que tanto nele, quanto em Belanni figura o Exército do Trabalho. O trabalho sem alegria reduz-se a operações mecânicas, sem conteúdo. A população é dividida em centenas e milhares, sendo que cada deve portar seu número de trabalho.
Não apenas a vida particular, mas também, a social é subordinada a padronização. Até mesmo as relações humanas íntimas, como o amor, são subordinadas a um único objetivo — reprodução de uma prole saudável e perfeita. A família não existe, ela desapareceu há muito tempo como resquício romântico e ridículo.
A novela de Fiodorov é típica do gênero da anti-utopia. Seu conteúdo mesmo em detalhes lembra algumas utopias negativas posteriores.
A utopia de Fiodorov é dirigida contra as idéias de ultra-esquerda em relação ao futuro. São, em essência as idéias que habitualmente associamos com o "comunismo de quartel".
Fiodorov contrapõe à negação do indivíduo, à idéia de socialização absoluta (que subordina até mesmo as esferas mais recônditas do ser) o ideal da "vida normal", da família, dos sentimentos humanos naturais.
Temas, relacionados com a utopia, aparecem com freqüência cada vez maior na obra de conhecidos escritores russos.
Valeri Brussov escreve algumas obras utópicas. Entre elas A terra, A República do Cruzeiro do Sul, As sete tentações terrenas. Aqui o leitor encontra descrições impressionantes do progresso técnico-científico: edifícios altos, carros e dirigíveis elétricos e até mesmo iluminação radioativa.
Deve-se assinalar que na obra de Brussov predomina a utopia negativa. No espírito da anti-utopia Brussov descreve o futuro em sua novela A República do Cruzeiro do Sul.
A polarização, característica da vida social e política da Rússia do inicio do século contribuiu também para a polarização no campo da utopia literária e como resultado demarcaram, com bastante precisão, as linhas divisórias entre as utopias democráticas e conservadoras.
Um exemplo típico da última foi a novela utópica de Serguei Chaparov Dentro de meio século (1902). Em sua descrição, a Rússia permanece um império, é governada por um tsar, senado e Conselho de Estado. O poder local concentra-se nas mãos da nobreza e do clero.
Outro pólo da literatura utópica daquela época é representado pela utopia socialista de Alexander Bogdanov. Ele escreveu dois romances utópicos A estrela vermelha (1908) e sua continuação, O engenheiro menni (1911).
No romance A estrela vermelha Bogdanov descreveu a sociedade do futuro, baseada nos princípios comunistas, que o protagonista, revolucionário profissional, encontra em Marte.
O romance A estrela vermelha tinha a finalidade de fazer propaganda e popularizar os ideais comunistas. Não foi por acaso que seu leitor atento foi Lênin, que, apesar de ter uma atitude negativa em relação as obras filosóficas de Bogdanov, revelou grande interesse por sua utopia A estrela Vermelha.
O desenvolvimento da utopia literária na Rússia não foi apenas um fato da história. A Revolução de Outubro aproximou as fronteiras da fantasia e da realidade.
A construção da sociedade socialista, e, às vezes, a crença ingênua na possibilidade de intervenção dirigida na marcha objetiva da história deram forte impulso para o desenvolvimento da literatura utópica e de ficção científica. A partir dos anos 20 a utopia tem amplo desenvolvimento.
A utopia soviética assimilou as tradições da literatura utópica russa, que se delinearam já no final do século XIX, início do século XX, por um lado a tendência para a utopia socialista, própria da literatura russa, e por outro — a anti-utopia.
E. Zamiatin indicou esta circunstância no livro Herbert Wells (1922) onde apresenta uma resenha da literatura utópica, não apenas ocidental, mas também russa.
A vida petrificada da Rússia antes da Revolução quase não apresenta, e não poderia apresentar exemplos de literatura social e de ficção científica.
Praticamente os únicos representantes deste gênero, em passado recente de nossa literatura, foi o conto "Sol líquido" de Kuprin, o romance de Bogdanov A estrela vermelha que tem um significado mais propagandístico do que artístico e se voltarmos mais, temos Sen Kovsky e Barão Brambeus. A Rússia pós-revolucionária, que se tornou o mais fantástico de todos os países da Europa contemporânea, reflete, sem dúvida nenhuma, este período da história da literatura de ficção científica.
Deram início a isto os romances de Alexcei Tolstoi Aelita e Hiperboboloide do engenheiro Garin, o romance Nós, os romances de Iliá Erenburgo Julio Jurenito e Trust D. E. (4)
Em muitos romances utópicos e de ficção sócio-científica dos anos 20: O país de Gonguri de V. Itinm, O mundo futuro, de I. Okunev, A luta do éter, de A. Beliaev, Dentro de mil anos, de V. Nikolsky, A terra dos felizes, de Y. Larri e outros existem tentativas de descrever o porvir como futura vitória da sociedade comunista em todo o mundo. Entretanto a imagem social do futuro neles, via de regra, resumiu-se a prognósticos técnico-científicos, a previsões futurológicas.
Depois da grande ascensão e desenvolvimento da literatura utópica nos anos 20, ocorreu uma brusca queda e a partir dos anos 30 as utopias raramente surgem nas livrarias. O desenvolvimento da ficção científica contribuiu em muito para o renascimento deste gênero.
Existem muitos pontos de vista diferentes sobre o grau de correlação das obras de ficção científica e utopias.Uns literatos consideram que a ficção científica moderna, em suas pesquisas, está organicamente ligada ao romance utópico.Outros consideram que a ficção cientifica não passa de uma forma contemporânea do romance utópico. Existem realmente fundamentos para tal conclusão. Muitas obras de escritores de ficção científica, em particular dedicadas ao problema do futuro, ou são, em essência, romances utópicos ou desempenham a função de romances utópicos. Assim são os romances dos escritores soviéticos A nebulosa de Andrômeda e A hora do touro de Efremov ou O retorno (Meio-dia. Século XXII) dos irmãos Strugatsky. Ao mesmo tempo muitos escritores são fiéis ao gênero utópico tradicional. O tema utópico é característico da obra de Vladimir Nabokov (romances Ada e Convite para a execução).
Na segunda metade dos anos 80 surgem quase que simultaneamente duas anti-utopias, que refletem sintomaticamente a época.
É a pequena novela da Alexander Kabakov, Não retornado e o romance de Vladimir Voinovitch Moscou 2042.
Ambos os autores descrevem o futuro como pesadelo e catástrofe total. Ao mesmo tempo estas anti-utopias diferem radicalmente uma da outra tanto pelo estilo, como pelo meios artísticos. A utopia de Kabakov é um pesadelo sombrio, que impressiona por ser realmente comparável com a atualidade.
Ao contrário, a utopia de Voinovitch é uma fantasia irrefreável e alegre do futuro com diferentes nuances de sátira. Até os defeitos destas obras são diferentes: se a novela de Kabakov parece um fragmento de algo grande, o romance de Voihovitch, ao contrário, é um tanto esticado. Ambas estas anti-utopias, entretanto, advertem-nos sobre a possibilidade de chegada de um futuro indesejável.
Tudo isto demonstra que a tradição multisecular do romance utópico russo não desaparece sem deixar vestígios, que ela continua até agora a alimentar a literatura contemporânea.
(1) K. Marx, F. Engels, Obras, tomo 18, p. 498—499.
(2) Ch. Walsh. From Utopia to Nigthmare, London, 1962, p. 14
(3) E. Zamiatin. Herbert Wells, Petrograd, 1922, p. 43
(4) Zamiatin Evgueny "Herbert Wells" Petrogrado, 1922, p.146.
EVGUENY ZAMIATIN
EDIÇÕES BRASILEIRAS DE NÓS
O editor Gumercindo Rocha Dória, através da Edições GRD, foi o introdutor de Zamiatin no Brasil, ainda na década de 60.
A muralha verde, traduzido do francês, Nous Autres, (Gallimard), Edições GRD, 1962.
NOTA INTRODUTÓRIA
Por José Sans
Quando li este romance, na edição francesa também de 1920 (Nous Autres, Gallimard), o fiz levedo pela curiosidade que me despertou uma referência de Victor Serge em Destin d'une Révolution — URSS 1917-1937:
"Em 1929, dois grandes escritores da nova geração foram, subitamente, denunciados por todos os jornais cumprindo uma ordem do Comitê Central como inimigos públicos. Um, por ter escrito uma novela de um realismo qualificado de pessimista e contra-revolucionário sobre a vida na província (Pilniak — Bois desdeslles); o outro, por ter publicado em tradução, no estrangeiro, uma obra condenado pelo censura porque era uma forte sátira ao estatismo burocrático (Zamiatin — Nous autres). Pilniak fêz todas as concessões exigidas e chegou mesmo a refazer seu livro para dar—lhe um carácter otimista. Zamiatin, mais firme, teve que se expatriar".
Nenhuma indicação, portanto, de se tratar de uma obra de antecipação, ou ficção científica, se quiseram (1). Interessava-me saber o que um escritor para mim inteiramente desconhecido que vivera aquele momento histórico, pensava do processo de esmagamento da chamada "Grande Revolução".
Logo de início, o romance não deixa dúvidas sobre o gênero e, mais ainda, sobre a alta qualidade literária do autor. À sátira aparece secundária, envolta em sombrio, desespero, mas penetrante e feroz.
Talvez por isso os críticos que tanto exaltam a obra medíocre e monotonamente político-didática dos Belaiev, Nemzov, Kazantvez, Evremov, todos enquadrados numa "literatura de uniforme" (Max Eastman), não se interessem na divulgação de um romance que é uma séria advertência aos que sonham com regimes ideais, sem ver o que se esconde por trás de promessas.
O fato de Nous autres (A muralha verde, nesta tradução brasileira) ter sido escrito em 1920, confere-lhe uma dimensão inesperada, não só na literatura de antecipação, mas na literatura em geral, elevando-o à categoria de profecia.
Se escrito entre 1927 e 1929, como seria de supor, pela referência de Victor Serge, um crítico poderia ver nele uma "sátira" construída a partir de elementos dados, extraídos de acontecimentos que já se delineavam claramente.
Efetivamente, como todos sabem, menos os politicamente cegos e surdos, 1927 marcou o início de controle total do mecanismo estatal pela "gang" stalinista, com a liquidação das oposições de esquerda e direita. Era o Termidor soviético, o mais sangrento "sabat" de história.
O clamor vindo do campo, a miséria, a fome, a brutal supressão das liberdades e o encarceramento e liquidação dos "recalcitrantes", demonstravam claramente o plano inclinado por onde deslizava, cada vez mais veloz, a "Grande Revolução" e eram elementos concretos para a composição de um painel sobre o futuro, não tão longínquo, que iria transformar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas num Estado Policial peno do qual o Estado Cínico do Benfeitor, descrito por Zamiatin, chega a sei quase aceitável...
Já se anunciava, em 1929, a guerra contra os camponeses que sonegavam o trigo, resistindo à coletiviza çõo de cima para baixo. E Zamiatin relata o acontecimento (em 1920!) assim:
"...falo da grande Guerra dos Duzentos Anos, da guerra entre a cidade e o campo. Os camponeses selvagens, sem dúvida por preconceito religioso, tinham muito apego a seu " pão".
E numa nota ao pé da página acrescenta, irônicamente, referindo-se a" pão":
"Esta palavra é conservada em nossa língua como metáfora poética: a fórmula química desse composto nos é desconhecida".
E espantoso porque a grande fome do princípio dos anos 20 poderia ser, perfeitamente, como foi, aliás, considerada um fenômeno passageiro, decorrente da desorganização da agricultura pela guerra e das sucessivas tentativas e invasão levadas a cabo pelos" imperialistas". A publicação de Nous autres em 1924, por exemplo, talvez fizesse rir os leitores pois havia uma aparente recuperação do campo. Mas Zamiatin viu mais longe.
Em 1920 viu, claramente, aonde levaria a nova forma de governo. Viu o massacre dos camponeses, que chegaria ao auge em 1934, mas que em 1929 apenas se esboçava.
E fala-nos, também, de uma Muralha que separa o Estado Único das regiões selvagens do Ocidente e de uma nave espacial, à "Integral", a primeira a levar, mesmo à fôrça, se necessário, aos outros planetas, a "felicidade" instituída pelo Benfeitor no Estado Único.
Algum profeta bíblico pronunciou-se mais claramente?
Numa sociedade dividida em classes, castas ou qualquer outra forma de domínio de uma maioria por uma minoria ou vice-versa, o amor não é permitido porque de significa revolta, liberdade, e o imenso edifício da coerção só pode viver sufocando na casca toda veleidade de revolta.
O amor é uma força "que só pode ser destruída esterilizando todas os mulheres e castrando todos os homens mas, nesse caso, os Senhores não teriam mais escravos nem exércitos" (Ado Kyrou). A solução é, portanto, que homens e mulheres se unam, mas para dar súditos leais, como bons reprodutores a serviço da imensa granja em que se transformou cada Estado moderno.
Este é, efetivamente, o tema básico do livro de Zamiatin, que ultrapassa o limite da "sátira", com que o rotulou Victor Serge. A história de uma mulher que lutou desesperadamente pela liberdade, pelo direito de amar e que foi sacrificada ao deus-Estado pela covardia de um homem.
É um livro trágico, fascinante, terrível.
(1) Poderíamos indagar, com Jacques Sternberg, o porquê da adoção dessa terminologia, que, diz ele, já é bárbara em inglês e praticamente intraduzível, soando como um acorde colocado, ao mesmo tempo preciso demais e tão pouco eloqüente (V. Une Sucursalee du Fontastique nomée Science Fiction, Le Terrain Vague, 1958, livro magnífico e que deverá ser lançado por CRI) no próximo ano). Alguns utilisam o termo "antecipação". Fausto Cunha, o celebrado autor de As Noites Marcianas, aventou a idéia de ser utilizada a expressão "neo gótica'. Surgiu uma coleção em São Paulo que traz o nome de "ciencificçâo". Os argentinos, na sua célebre coleção Minotauro, utilizam "ciencia-ficción". Os italianos dizem "fantascienza". Queiramos ou não, a expressão consagrada é "ficção científica". Ela já tem livre trânsito. Aceitêmo-la, pois.
A muralha verde, de E. Zamiatin
Eis, nas palavras finais da introdução de A muralha verde, assinada por José Sanz, o significado da presente obra de Zamiatin: "a história de uma mulher que lutou desesperadamente pela liberdade, pelo direito de amar e que foi sacrificada ao deus-Estado pela covardia de um homem".
E conclui José Sanz: "É um livro trágico, fascinante, terrível".
E. Zamiatin (Evgenj Ivanovitch Zamiatin), nasceu no ano de 1884, na Rússia, e morreu em Paris, no ano de 1939. Autor de vário, livros, entre os quais Hístórias de Distrito (1911) A muralha verde (escrito em 1920) e publicado. na Inglaterra, sob o título de We, e na França, em 1929, sob o de Nous autres.
A muralha verde teve a sua epopéia: escrito, o original não foi aceito pelos censores do Estado. que o consideraram desrespeitoso, pois os principais personagens do livro, o ambiente, as circunstâncias, as críticas, tudo o que estava nas páginas de Zamiatin como que retratavam uma realidade por demais contundente. Na mesma época, Pilniak, que já teve livro traduzido no Brasil, também foi chamado a "rever" uma de suas obras, por demais "burguesa". Curvou-se Pilniak, abdicando de sua honorabilidade, de criador. Reviu o livro e adaptou-o às exigências policiais da ditadura. Zamiatin agiu de modo diferente: empacotou os seus originais e remeteu-o para além das fronteiras russas. Foi perseguido, cerceado na sua profissão de engenheiro. Doente, conseguiu autorização para sair da Rússia, terminando os seus dias em Paris, onde lançou, pela Gallimard, o seu livro, que agora é publicado ao Brasil.
Ficção cientifica, A muralha verde? Alguns componentes do gênero ai estão: a) uma nave interplanetária, a "Integral", que se destina a levar, b) aos mais distantes planetas, c) a "felicidade", d) que é imposta à fôrça no Estado Único, e) halo Benfeitor. Por fim, f) o Homem, na sua luta permanente, pela liberdade.
Que decida o leitor. Um gênero literário se impõe pela qualidade da obra e não pelo rótulo, não esquecendo, portanto, o que diz Fausto Cunha: "O que me parece, em linhas gerais, é que a distância entre a boa literatura de ficção cientifica e a boa literatura de ficção está se reduzindo cada vez mais ao do gênero: a ficção. paulatinamente se transforma em metaficção e vice-versa".
Nós, traduzido do inglês We, por Lia Alverga Wyler, Editora Anima, 1983.
INTRODUÇÃO
por Mirra Ginsburg
Nós desempenhou um papel decisivo na vida de Eugene Zamiatin. Uma síntese de sua filosofia, o romance prefigurava com surpreendente exatidão não só o futuro do autor como o de seu país. A profissão de fé de Zamiatin encontra-se claramente expressa nas palavras da heroína de Nós: "Não existe uma revolução final. As revoluções são infinitas" e "Não quero que ninguém queira por mim — Quero querer por mim mesma."
Esses dois princípios — a mutação constante e a liberdade individual de escolher, querer e criar segundo suas necessidades e vontade — dominaram sua vida e sua obra. "Derrubaremos todas as paredes para deixar a aragem renovadora soprar livremente de um extremo a outro da Terra", diz sua heroína. Não admira que fosse odiado e perseguido por aqueles que exigiam uniformidade e obediência irrestrita a uma vontade exterior — a do Estado, do Benfeitor. do Partido.
Um escritor vigoroso e original, inteiramente moderno. sua obra tem raízes profundas na tradição literária russa. É um descendente direto de Gogol e Dostoyevsky, os escritores preferidos de sua infancia. Encontra-se também bem próximo de Leskiv. Chekhov. Shchedrin e dos seus contemporâneos Alexey Remizov e Andrey Belv. A exemplo de Gogol e Dostoyevsky, preocupa-se intensamente com problemas morais centrais: e, como todos eles, é um grande mestre da sátira, do estilo e do grotesco.
Zamiatin nasceu em 1884 em Lebedyan, uma das aldeias mais coloridas no coração das terras férteis russas, a umas duzentas milhas a sudeste de Moscou — uma região de campos produtivos, de velhas igrejas e conventos, feiras, ciganos e trapaceiros, monges e taberneiros, mulheres belas e rosadas e mercadores que ganhavam e perdiam milhões da noite para o dia. Era também uma região que conservava um linguajar folclórico, rico e expressivo, que Zamiatin absorveu e mais tarde empregou obtendo magníficos efeitos em muitas de suas estórias, peças e novelas.
Seu pai, um padre ortodoxo, ensinava religião na escola local. A mãe era uma pianista talentosa.
Engenheiro naval de formação, Zamiatin cedo voltou-se para a literatura. Em 1913 publicou Um Conto Provinciano e em 1914 No Fim do Mundo, satirizando a vida militar numa remota guarnição de fronteira. O periódico em que este último conto apareceu foi confiscado pelas autoridades tzaristas e tanto o editor quanto o autor foram julgados por "caluniar a oficialidade russa". O processo foi arquivado, mas isto foi apenas um dos muitos atritos com a autoridade constituída. que marcaram sua vida inteira.
Ainda estudante no Instituto Politécnico de São Petersburgo.No inicio do século, Zamiatin ingressou na facção bolchevista do Partido Social Democrático. Preso durante a revolução de 1905, passou alguns meses na solitária e, ao ser libertado, foi exilado de São Petersburgo. Após uma breve estada em Lebedyan, voltou à capital, onde viveu "ilegalmente" (e continuou seus estudos) até 1911, quando a polícia finalmente o encontrou e tornou a ser exilado. Foi durante este exílio. que escreveu Um Conto Provinciano. Anistiado em 1913 recebeu permissão para voltar a São Petersburgo.
Ao graduar-se no Instituto Politécnico foi convidado a integrar o corpo docente. Por alguns anos o ensino e a engenharia suplantaram a literatura. Durante a Primeira Guerra Mundial, Zamiatin foi enviado à Inglaterra para desenhar e supervisionar a construção dos primeiros quebra-gelos russos. Quando a Revolução eclodiu, em 1917, não conseguiu suportar a idéia de permanecer afastado da Rússia e apressou-se em voltar, trazendo na bagagem dois contos que satirizavam a vida inglesa, Os Ilhéus e O Pescador de Homens.
Na Rússia, Zamiatin (então um ex-bolchevista) lançou-se com tremenda energia ao grande desenvolvimento cultural e artístico que se seguiu A revolução. Foi um período de fantásticas contradições. A Rússia encontrava-se em ruínas após anos de guerra, revolução e continuadas lutas civis. A vida econômica do país beirava o colapso. Os transportes, as comunicações, o abastecimento, o contato entre cidades e vilas estavam em completa desorganização? Entretanto, em meio à fome e ao frio, um punhado de espíritos dedicados propunha-se não só a salvar a cultura do país mas a oferecer As massas, até então desprivilegiadas, a herança cultural do mundo inteiro.
Naqueles dias sombrios, principalmente por iniciativas de Gorky, o verdadeiro santo patrono da literatura russa, formaram-se diversas organizações, tanto para manter fisicamente vivos os escritores, acadêmicos e artistas como para permitir que dessem continuidade ao seu trabalho. Em 1920, em Petersburgo, surgiram: a Casa das Artes, onde os escritores eram alojados em cada quarto e cubículo disponível, sem calefação, do antigo palácio do grande mercador Yeliseyev; a Casa dos Cientistas; e uma quantidade de editoras e jornais literários (Zamiatin trabalhou na editoria de diversos deles). Organizaram-se estúdios, onde jovens literatos aprendiam os elementos de sua profissão com escritores, poetas e tradutores como Zamiatin, Gumilyov, Lozinsky, Chukovsky e outros. Professores e alunos muitas vezes tinham de atravessar a cidade a pé e sentar em salas sem calefação, vestindo velhos casacos, suéteres e abafadores, gelados e famintos mas totalmente absorvidos pelas brilhantes discussões literárias.
Uma variedade de escolas e movimentos proliferava em todas as áreas artísticas, algumas retomando o vigor dos anos anteriores à guerra, outras, inteiramente novas. Disputas infindáveis grassavam entre simbolistas, futuristas, construtivistas, formalistas, acmeístas, imaginistas, neo-realistas e, naturalmente, o grupo. cada vez mais poderoso e vociferente dos escritores e críticos proletários que encaravam a literatura como um simples instrumento da revolução e da mudança social. Zamiatin tomou-se o líder e o professor da Irmandade Serapion, um grupo que incluía alguns dos jovens escritores mais promissores e originais da época — Mikhail Zoshchenko, Vsevolod, Ivanov, Valentin Katayev, Veniamin Kaverin, Konstantin Eedin, Lev Lunts, Nicoiay Tikhonov, Victor ShIdovsky e outros. Diferindo em temperamento, método e esfera de ação, uniam-se pela insistência na liberdade de criação, no direito do artista de perseguir uma visão individual, na variedade, nas experiências com a forma, e na importância do trabalho criador.
Lev Lunts, um dos membros mais brilhantes do grupo, redigiu um manifesto no qual proclamava a completa autonomia da arte. "As quimeras literárias", escrevia ele, "são uma forma especial de realidade". Ele rejeitava os direitistas e esquerdistas que gritavam: "Se você não está conosco, está contra nós". "Com quem estamos nós, a Irmandade Serapion?" perguntava. "Estamos como eremita Serapion. Rejeitamos o utilitarismo. Não escrevemos para fazer propaganda. A arte é tão real quanto a própria vida e, como a vida, não possui um objetivo ou uma significação, existe simplesmente porque tem de existir... A única exigência É que a voz do escritor nunca seja insincera".
Os Serapions apoiavam a idéia de Zamiatin de que "a verdadeira literatura só pode existir onde é criada, não por oficiais laboriosos e dignos de confiança, mas por loucos, ermitãos, heréticos, sonhadores, rebeldes e céticos" — uma profissão de fé que tornou pública em 1921, no ensaio Tenho medo (1). E a necessidade de heresia, o direito de dizer ao dogma oficial, a crença de que os erros sao mais úteis do que a verdade, de que as verdades são idéias "já atingidas pela arteriosclerose" são temas repetidamente expressos nas obras de Zamiatin. Em Amanhã ele escrevia:
Aquele que encontrou hoje o seu ideal é como a mulher de Lot, já transformado em estátua de sal. O mundo só se mantém vivo graças aos heréticos: o herético Cristo, o herético Copérnico, o herético Tolstoy. O nosso símbolo de fé é a heresia... Convocamos a "intelligentsia" russa à defesa do homem, e dos valores humanos. Apelamos. não àqueles que rejeitam o hoje em nome de uma volta ao passado. não àqueles que estão irremediavelmente ensurdecidos pelo hoje; apelamos para aqueles que véem o amanhã distante — e julgam o hoje em nome do amanhã, em nome do homem.
Em 1921, num ensaio intitulado Paraíso, Zamiatin mais uma vez criticava, mordaz, os guardiões da unanimidade, os que exigiam a conformidade total:
Muito tem sido dito por muitos sobre a imperfeição do universo... e sua surpreendente falta de monismo: água e fogo, montanhas e abismos, santos e pecadores. Que absoluta simplicidade, que felicidade desanuviada de qualquer pensamento, haveria se (Deus) tivesse desde o princípio criado uma única água ardente, se desde o princípio tivesse poupado ao homem o estado de liberdade selvagem. — Vivemos sem dúvida numa era cósmica uma era de criação de um novo céu e de uma nova rena. E naturalmente não repetiremos (Seu) erro. Não haverá polifonia ou dissonância. Apenas uma majestosa, monumental e abrangente unanimidade.
Em A Nova Prosa Russa (1923):
A própria vida hoje perdeu a sua realidade de plano: já não se profeta ao longo de antigos pontos fixos, mas ao longo das coordenadas de Einstein, da Revolução. Nessa nova projeção, as formas e objetos mais conhecidos tornam-se deslocados, fantásticos, familiares-estranhos. Por isso é tão lógico que a literatura de hoje sinta-se atraída pela trama fantástica, ou por um amálgama de realidade e fantasia.
E no seu ensaio: Literatura, Revolução. Entropia e Outros Temas, ele expande uma das idéias centrais de Nós:
A revolução está em toda parte, em tudo. E infinita. Não existe revolução final, nem número final. A revolução social é uma de um número infinito de números. A lei da revolução não é uma lei social, mas algo incomensuravelmente maior. É uma lei cósmica, universal — como as leis da conservação da energia e de dissipação da energia (entropia)... Ainda no mesmo ensaio:
A literatura nociva é mais útil do que a literatura útil, porque é antientrópica, é um meio de combater a calcificação... É utópica, absurda... Torna-se verdadeira 150 anos depois.
E uma das suas afirmações mais significativas:
Hoje na literatura precisamos de vastos horizontes filosóficos... Precisamos do mais final, mais temível, mais audacioso "Porque? e "E a seguir?"
Em 1926, em A meta, Zamiatin desfechou um ataque frontal contra os críticos comunistas que exigiam do escritor uma subserviência total às exigências do partido:
A Revolução não precisa de cães que "se sentam 'a espera de um petisco ou porque temam o açoite. Nem precisa de treinadores para esses cães. Precisa de escritores sem medo... Precisa de escritores em quem a Revolução desperte um eco verdadeiramente orgânico. E não importa que esse eco seja individual... se um escritor desconhece um determinado parágrafo adotado numa determinada conferência. O que importa é que o seu trabalho seja sincero, que impulsione o leitor para diante... que perturbe o leitor ao invés de tranqüilizar e embalar sua mente, mas em que direção? E em que medida? Quanto mais longe melhor. A redução de preços, melhoramentos sanitários nas cidades... tudo isso é muito bom... posso imaginar um excelente artigo de jornal sobre tais tópicos (um artigo que será esquecido no dia seguinte). Mas acho difícil imaginar uma obra de Lev Tolstoy ou de Romain Rolland baseada na melhoria das condições de saneamento.
Inevitavelmente, Zamiatin tomou-se uma das primeiras vítimas dos guardiões da "unanimidade" e da literatura 'higiênica". Foi atacado por estar em "desacordo com a revolução", por "aviltar e caluniar" os princípios e "realizações" revolucionários, por ser "um observador frio e hostil" e um "emigrado interno", que fazia o jogo dos inimigos do regime soviético. (Seria desnecessário mencionar aqui a longa lista de artistas independentes até Pasternak, Sinyavsky,Daniel.e Solzhenitsyh, que sofreram igual destino durante os anos de ditadura.
Durante os primeiros dez anos após a revolução, ainda foi possível publicar as obras de Zamiatin, apesar do coro constante de insultos a ele dirigidos pelos guardiões da ortodoxia. Essas obras, naturalmente, nunca apareceram nas revistas oficialmente patrocinadas e subsidiadas. Eram, em geral, publicadas quer por periódicos de vida efêmera ou em antologias preparadas por grupos de escritores, quer por periódicos e editoras privadas cuja existência ainda era tolerada naqueles primeiros tempos.
Com grande coragem e integridade, Zamiatin continuava a escrever como via e sentia — ensaios, peças, ficção — embora a mão insensível da ditadura se tomasse cada vez mais pesada. Uma passagem do ensaio Sobre o Futuro do Teatro, escrito bem mais tarde e publicado em francês em 1932, expõe de maneira clara uma importante faceta do seu caráter. "A peça mais séria", dizia ele, "é a peça na qual o destino traz no bolso um horário, preparado e carimbado há muito tempo marcando o dia e a hora do fim trágico de cada um de nós". Sem dúvida, ele sabia o que o futuro lhe reservava, mas continuou fazendo o que julgava melhor.
O alcance e a qualidade de sua obra, nas circunstâncias, é surpreendente. Zamiatin não foi apenas um consumado satirista e estilista, mas um mestre de muitos temas e muitos estilos. Algumas das estórias (2) são maravilhosas evocações da Rússia quase mitológica de sua infância. Outras parecem baladas — a paisagem é árida, as pessoas e os acontecimentos são trágicos ou cômicos numa escala grandiosa. Outras ainda, retratam o presente, em geral descrito sob uma luz grotesca, oblíqua, surrealista, com imagens ecoantes e uma extraordinária combinação de realidade e irrealidade, troça e aflição: Outras são gracejos, invenções irreverentes a que chamou "contos profanos". Além de suas outras qualidades, Zamiatin possuía uma inesperada veia de alegria incontida e um grande senso de humor.
A mesma riqueza e diversidade e a percepção aguda do cômico e do grotesco animam sua peças. Muitos dos personagens são caricaturas maravilhosas. Espírito, imaginação e, sempre, a mais meticulosa técnica combinam-se na maior parte de sua obra com um profundo sentido histórico e uma visão profética. Isto é particularmente verdadeiro em Nós, uma sátira cáustica, entre outras coisas, sobre urna sociedade esquemática — donde necessariamente totalitária — escrita em 1920-21. Nós não foi aceita para publicação. Lida, conforme era costume à época, numa reunião do Sindicato dos Escritores Russos, em 1923, provocou uma nova onda de violentos ataques dos críticos e escritores do partido.
Zamiatin escreveu este romance espantosamente profético quando mal se discernia o totalitarismo futuro. Como todos os grandes satiristas, a partir das tendências e indícios do presente, projetou uma visão abrangente da sociedade futura. Seu método, conforme o definiu em Nós, foi o reductio ad finem — um método hoje aplicado com vigoroso efeito por mestres da sátira como William Golding (The Inheritors, Lord of the Flies) e Anthony Burgess (The Wanting Seed, The Clockwork Orange).
Poeta, gozador (o riso — escreveu — é a mais devastadora das armas), lutador herético da liberdade e da independência na arte e na vida. Zamiatin foi uni inimigo coerente de todas as idéias canônicas, toda a coerção, todos os guardiões da "salvação compulsória". Atacou e ridicularizou sem piedade o totalitarismo emergente, seus bajuladores medíocres, seu reino de brutalidade, violação e destruição da liberdade e criatividade do espírito humano. Previu tudo: o terror, as traiçoes, a desumanização; os onipresentes guardiões; o controle do pensamento e da ação; as constantes lavagens cerebrais produziam ou autômatos incondicionais ou hipócritas, que mentiam para sobreviver; a exigência de que todos cultuassern o Benfeitor, que com sua manopla literalmente "iquida", reduz todos que discordam, todos os que apaixonadamente desejam ser eles mesmos, a uma poça de água incolor. Previu também a sujeição das artes. Seu herói alardeia: "Encilhamos o elemento outrora selvagem da poesia. Hoje, a poesia deixou de ser o canto ocioso e insolente do rouxinol; a poesia é um serviço cívico, a poesia é útil. E não só deve o povo ("números") desse estado apocalíptico de totalitarismo ritualizado comparecer à cerimônia de gala em que o Benfeitor extermina os heréticos, mas o poeta é obrigado a de clamar uma ode, comemorando a sabedoria e a grande justiça do carrasco.
Em termos de estio. Nós é também uma realização notável, pois Zamiatin tinha gosto e ouvido perfeitos. "A linguagem de nossa época é incisiva e breve como um código", escrevia ele em 1923. Em Nós, que é um poema cuidadosamente estruturado, o leitor não encontrará qualquer traço da música rica e lenta de suas estórias de província, ou da graça maliciosa de seus "contos profanos". Nós, cujo tema é um Estado quadrado de homem quadrados, é vazado num estilo da maior severidade e disciplina — um estilo em perfeita harmonia com a intenção do autor, com a sociedade totalmente controlada que ele evoca, onde a emoção foi banida (e ainda assim sobrevive), onde cada momento é vivido de acordo com o programa, numa cidade de casas de vidro e linhas absolutamente retilineas, sob uma redoma de vidro, onde se faz amor em dias e horas certas.
Mas, assim como Zamiatin foi muito mais do que um intelectual politicamente perspicaz, também Nós, dentro da sua surpreendente disciplina de estilo, é muito mais do que uma obra política. E uma obra filosoficamente complexa de infinita sutileza e nuance, alusões e reflexões. E ainda uma tragédia humana profundamente comovente, e um estudo da variedade de emoções humanas (paixão — D-503; dominação — I-330; ciúme — U; ternura e generosa e total entrega do ser — 0-90). E embora as pessoas sejam "números" impessoais, não são figuras esquemáticas; cada unia delas é um indivíduo vivo, convincente e tocante.
A principal preocupação de Zamiatin neste romance é o problema do homem nos seus múltiplos aspectos; as relações do indivíduo com a sociedade e com os outros homens: o conflito entre a tentadora segurança da não-liberdade e a vontade de libertar a identidade; o medo e a atração da alienação; a cisão entre o racional e o irracional. Nós é também o estudo de uma sociedade que se diz baseada na racionalidade pura — e torna-se com isso mortalmente desumana e absurda.
"Quem são eles?" pergunta o herói depois de ter visto as criaturas meigas e peludas no exterior da Muralha que cerca o Estado Uno. "A metade que perdemos?" A metade que sente. A metade irracional que vive fora do programa e das linhas retas. No entanto, mesmo no Estado Uno, onde a espontaneidade é proibida num Estado protegido por muralhas de tudo que é desestruturado e vivo, a vida e a humanidade se afirmam O herói — um construtor e matemático inteiramente moldado pela sociedade, sem jamais questioná-la — possui atávicas "mãos peludas". Seduzido por uma paixão violenta e irracional, ele faz a descoberta chocante de um reino insuspeitado e há muito reprimido — o reino interior, da identidade individual, do eu. "Quem sou eu?" exclama desesperado. Numa cena extremamente tragicômica, ele consulta um medico buscando socorro para o terrível mal. O médico declara solene que ele está gravemente enfermo — nasceu-lhe uma alma. "É perigoso?", pergunta. "Incurável", responde o médico. Mas, ai dele, o mal revela—se ao final curável. Os homens do Benfeitor descobrem um remëdio para a individualidade, a rebelião, a humanidade: uma simples operação para extirpar o foco de toda infecção — a imaginação — e reduzir todos os cidadãos do Estado tino a semi-idiotas sorridentes.
Nós é mais multifacetado, menos desesperador do que o 1984 de Orwell, escrito vinte e cinco anos depois e diretamente influenciado pelo romance de Zamiatin. Apesar do final trágico.Nós trazem si uma nota de esperança. Apesar da derrota da rebelião "ainda há lutas na zona oeste da cidade." Muitos "números" alcançaram o exterior da Muralha. Os que morreram, não foram destruídos como seres humanos — morreram lutando sem se submeter. E embora o herói seja reduzido a um autômato obediente certo de que a "Razão" e a ordem estática prevalecerão e embora a mulher, que amou por um breve período e foi forçado a trair, morra (assim como os poetas e rebeldes que ela liderava), a mulher que o ama, meiga e tema, encontra-se a salvo no exterior da Muralha. Terá seu filho em liberdade. E a própria Muralha provou-se afinal vulnerável. Foi rompida — e certamente voltará a sê-lo.
Em Nós, diz Zamiatin: É para isto que nos encaminhamos. Paremos enquanto é tempo. Pela poesia e pela troça, perpassa um grande carinho — pela Rússia, pelo homem — e uma profunda tristeza pelas provações particularmente intensas por que iriam passar no nosso século de terror, tifo fantasticamente previstas no romance, e enfrentadas com tanta coragem. O próprio Zamiatin, uma vítima extremada dessas provações, é notável pela sua total falta de cinismo ou despeito. Raiva, troça, rebelião — mas nenhuma auto-comiseração ou amargura. Ele parece dizer a todos os dogmatistas, a todos que tentaram forçar a vida a entrar numa forma rígida: Vocês não irão, não poderão vencer. O homem não será destruído.
Zamiatin classificou Nós como "a minha obra mais divertida e mais séria". E embora fale em muitos níveis e de muitas coisas, sua mensagem política é inconfundível. Ë um aviso e um desafio, um apelo à ação. Talvez seja a exposição mais completa da filosofia de Zamiatin e de suas preocupações emocionais.
E bastante significativo que a perseguição a Zamiatin tenha atingido o auge no final da década de vinte, quando o presente tornava-se desconfortavelmente semelhante à profecia, quando a existência do Benfeitor e sua Máquina tornava-se reconhecível, uma realidade iminente. Em 1929, o controle total da produção literária foi entregue a ARFP (Associação Russa de Escritores Proletários) que se tornou um instrumento para extirpar tudo que ainda fosse independente na literatura russa. Através de campanhas de difamação, pressão sobre os periódicos e editores, do apelo aos métodos policiais, a entidade procurou enquadrar todos na linha exigida — o serviço ao partido. A AREP dedicou-se com ardor ao papel de carrasco e os resultados não tardaram a aparecer. Muitos periódicos e editoras foram fechados. Houve uma onda de suicídios de escritores e poetas. As retratações adquiriram proporções epidêmicas. Um sem-número de escritores que não pertenciam ao partido, desfibrados, retrataram-se publicamente dos seus pecados e juntaram-se ao rebanho, repudiando e reescrevendo suas obras.
Uma campanha particularmente insidiosa foi desfechada contra Zamiatin e Pilnyak. Este último foi exposto à execração pública devido à publicação no exterior do romance Mogno. Nós, escrito quase dez anos antes e inédito na União Soviética, foi usado como pretexto imediato para a destruição de Zamiatin. Conquanto sua primeira tradução para o inglês (em 1924) e para o Tcheco (em 1927) não provocassem qualquer reação das autoridades soviéticas, sua publicação em 1927 no "Volya Rossii", um jornal de emigrados impresso na Tchecoslováquia, sem o conhecimento ou a autorização do autor, foi usada, dois anos mais tarde, como desculpa conveniente para desencadear toda a força da pressão oficial contra o autor. Ocaso foi discutido numa assembléia do Sindicato dos Escritores no verão de 1929, quando Zamiatin estava ausente em viagem de férias. Um por um dos seus colegas, amedrontados e subservientes, ergueram-se para denunciá-lo. Zamiatin respondeu com uma carta indignada e corajosa, pedindo demissão do Sindicato. "Acho impossível", escreveu, "pertencer a uma organização literária que... toma parte na perseguição de um associado."
Pilnyak foi incapaz de suportar a pressão e retratou-se. Os antigos alunos e admiradores de Zamiatin — Ivanov, Katayev, Kaverin sacrificaram seus talentos para se tornarem escribas, produzindo o que quer que fosse necessário, na forma e no estilo exigidos. Os de espírito mais forte, como Isaac Babel, emudeceram. E apenas gigantes isolados como Zamiatin e Bulgakov recusaram a se submeter. Vedado o acesso à publicação, as peças retiradas de cena apesar do enorme sucesso popular, os livros retirados das livrarias e bibliotecas, eles escreveram a Stalin solicitando permissão para deixar a Rússia. Ambos falaram da proscrição das suas obras como de uma sentença de morte literária.
Graças à intercessão de Gorky junto à Stalin, o pedido de Zamiatin foi, surpreendentemente, concedido. Ele abandonou a Rússia em 1931 e radicou-se em Paris. Seus últimos anos transcorreram em grande solidão e privação. Morreu de doença cardíaca em 1937, seu enterro foi acompanhado somente por um punhado de amigos, pois ele não aceitara o convívio da comunidade de emigrados. Até o fim considerou—se um escritor soviético unicamente à espera, conforme escreveu à Stalin, "de que se torne possível em nosso país servir às grandes idéias sem aviltar-se diante de homúnculos", até que "haja ao menos uma mudança parcial na concepção vigente do papei do artista literário". Ele nunca chegou a ver esse dia. Sua morte não foi mencionada pela imprensa soviética. A exemplo do poeta rebelde de Nós, e de muitos dos maiores poetas e escritores russos do século vinte, ele foi literalmente 'liquidado" — reduzido à não-existência. Seu nome foi suprimido das histórias literárias e, por muitos anos, permaneceu desconhecido em sua terra.
E ainda assim, ele continua vivo. No dizer do seu companheiro de infortúnio Bulgakov, "os manuscritos são incombustíveis". Ele reviveu no Mundo Ocidental. Nós foi traduzido em mais de dez línguas. Muitas de suas estórias, ensaios, e peças foram publicadas no exterior em russo, e traduzidos para o inglês. Mesmo na Rússia Soviética seu nome começou a aparecer nos últimos anos (timidamente) em um ou outro livro de memórias, em um ou outro ensaio obscuro sobre ficção científica e literatura utópica. Foi mesmo reincluído nas enciclopédias literárias — naturalmente com o inevitável comentário negativo. E embora sua obra continue a não ser vendida na Rússia Soviética, sem dúvida tem chegado às mios de alguns leitores, escritores e acadêmicos de forma clandestina, pois sua influencia destaca-se no pensamento de alguns rebeldes atuais como Sinyavsky, Daniel e outros que lutam para restaurar a liberdade de criação na literatura russa.
Como todas as grandes obras de arte, Nós presta-se a uma multiplicidade de interpretações. Escreveram-se numerosos ensaios e análises sobre Zamiatin (3), e sobre Nós, abordando-os de vários pontos de vista e várias formas: como um estudo do homem moderno divorciado do seu eu natural; como uma charada freudiana; como um mito apresentando o dilema do homem em termos de sonhos e arquétipos; como uma parábola religiosa de forte influência dostoyevskiana; como uma das mais importantes anti-utopias modernas, e assim por diante. Nós é tudo isso, e mais. É um dos grandes romances trágicos de nossos tempos.
Mas deixemos o livro falar por si. O leitor perspicaz encontrará em Nós muito mais do que poderíamos sugerir numa introdução.
(1) Este ensaio, assim como outros aqui citados, encontram-se em A Soviet Heretic: Essays Eugene Zamiatin (Chicago, 1972).
(2) (N.T.) Veja The Dragon: I5 Stories por Eugene Zamiatin (New York, 1967).
(3) (N.T.) Um ótimo estudo crítico e biográfico, de autoria de Alex M. Shane foi publicado nos Estados Unidos em 1968 — The Life and Works of Eugene Zamiatin (Berkeiev, 1968) constando entre outros dados, uma excelente bibliografia.
OPINIÃO
Nós, uma utopia negativa
Por Ella Kobiaco
O livro Nós, de Evgueny Zamiatin escrito em 192-21, muito mais do que uma obra política, insurge como um corajoso ataque ao totalitarismo que com suas mãos de ferro viola os direitos individuais, subverte os valores humanos, corrompe as relações humanas, usurpa a liberdade do livre-pensar e agir, destrói a criatividade e por assim dizer violenta a arte em nome de idéias equivocadas sobre um suposto bem comum.
É ainda um grito em defesa da liberdade do homem; um alerta, para um perigo eminente: Cuidado! Querem fazer-nos acreditar na segurança da não-liberdade.
Assim, D-503, personagem principal que escreve a história, sob o jugo de seu condicionamento tece comentários:
“A liberdade e o crime estão tão indissoluvelmente ligados... liberdade do ser humano igual a zero, e ele não comete crimes. Isto está claro. O único modo de livrar o homem dos crimes é livrá-lo de sua liberdade.”
E entre outros, também:
“Por que a dança é bonita? Resposta: porque não é um movimento livre, porque todo o sentido profundo da dança consiste justamente na absoluta submissão estética, na não-liberdade ideal.”
E mais, D-503 afirma:
“O ideal (está claro) vai ser quando não acontecer mais nada...”
À tal afirmativa, a própria história de vida e obra de Zamiatin se opõe, e com certeza ele se refere à revolução permanente de Trotsky quando sua heroína, I-330, profere o seguinte discurso:
“— E que revolução é essa que você diz ser a última? Não há a última, as revoluções são infinitas. A última é para crianças: o infinito assusta as crianças, e é necessário que as crianças durmam tranqüilas à noite.”
Original, dono de aguçada percepção e imaginação, Zamiatin, numa narrativa surrealista, permeada pela ironia — combinando realidade e irrealidade, acontecimentos trágicos e rizíveis, fazendo uso de uma linguagem contida, propositalmente disciplinada; preocupado com a liberdade de escolha, com o querer e o criar — satiriza o contexto histórico em que vivia e mais, antevê o futuro de si próprio e de seu país, profetizando a desumanização, os pensamentos e as ações programadas, a banalização das necessidades do homem, a repressão das emoções, o extermínio dos que estão em desacordo com a ordem imposta, a produção de autômatos, as lavagens cerebrais, a destruição daqueles que lutam para manter vivas imaginação, alma e originalidade.
Escreve D-053:
“A minha querida O vem visitar—me amanhã, tudo será simples, correto e limitado como um círculo. Eu não temo essa palavra — “limitado” — a função da mais alta faculdade do homem — a razão — consiste justamente na limitação contínua do infinito, da divisão do infinito em porções cômodas e facilmente digeríveis...”
A Gazeta do Estado Unificado publica:
“Devereis submeter ao jugo benéfico da razão entes desconhecidos que habitam outros planetas — talvez ainda na condição selvagem da liberdade. Se eles não entenderem que nós lhes levamos a felicidade matematicamente infalível, nosso dever é obrigá-los a serem felizes”.
A história em Nós, fala das causas e de como se articula e acontece uma revolução num tempo futuro, num espaço cercado por Muros, onde os membros da sociedade, constantemente vigiados pelos Guardiões, habitam casas de paredes de vidro, não recebem nomes, mas números; são obrigados a reverenciar ritualmente o Benfeitor e sua Máquina, têm pensamentos e atitudes condicionados, executam trabalhos mecânicos, e suas vidas particulares e sociais são programadas e controladas por um governo autoritário, o Estado Unificado. O controle e as programações vão mesmo até seus encontros íntimos transformados em impessoais, com horários e locais estipulados, entre indivíduos (números) previamente registrados.
Mas apesar da Máquina do Estado, do Muro e seus Guardiões a revolução acontece. Alienação e pensamentos condicionados dão espaço a reflexões e questionamentos intermináveis. As mudanças permeiam. O Muro é transposto, para além dele, uma nova vida nasce do ventre de O-90, a amante de D-503. As emoções sufocadas sobrevivem. A utopia é sonhada, a busca pela felicidade permanece. E além do Muro Verde a esperança usa óculos.
Temas, situações e conceitos encontrados em Nós (escrito em 1920-21) — aqui, numa tradução notável de Clarice Lima Averina, a partir da primeira edição russa, de 1990 — inspiraram alguns escritores como Aldoux Huxley em Admirável mundo novo (publicado em 1932) e George Orwell em 1984 (publicado em 1949).
Em Nós, o herói D-503, um matemático, vive em constante conflito por ter como ideal subjugar suas emoções e sentimentos, embasar seus pensamentos e ações nos argumentos padronizados inculcados em sua mente pelo Estado Unificado e contrariamente se descobre possuidor de uma identidade individual, constatando a força de seu inconsciente nos sonhos, tendo desejos não-programados pelo sistema, vivendo uma paixão irrefreável, repentinamente vendo-se obedecer a impulsos irracionais e sendo levado a acreditar e querendo acreditar estar terrivelmente doente por possuir uma alma.
O médico faz um diagnóstico para D-503:
“ — Vai mal hein? Pelo visto, formou-se uma alma em você.
— Alma? ... É... muito perigoso? Balbuciei eu.
— Incurável.”
Ter uma alma, ter imaginação era ter uma doença incurável no Estado Unificado, até que descobriram a cura, ou seja, uma operação de remoção de um centro de imaginação no cérebro, tornando o indivíduo alheio à sua individualidade, um sorridente-imbecil, completamente alienado, a mercê do poder central.
Enquanto D-503 descreve no seu cotidiano, a natureza e a qualidade de seus relacionamentos íntimos e sociais, emergem pouco a pouco os problemas intestinos e sem solução do Estado Unificado, manifestam-se os conflitos íntimos e de convivência social de cada personagem, assim como os dele mesmo, e da aparente frieza e impessoalidade de cada um deles sobrevém um novo contexto — resultante da combinação de sensações e sentimentos puramente humanos — que indiferente à ordem vigente escapa sorrateiro de seus inconscientes e cruza os semblantes, flui pelos olhos, treme nas mãos, e brota nas bocas independentemente:
“— Escute —... e lá onde termina seu universo finito, o que há mais além?”
Alexandre Beluco põe na forma escrita as suas reflexões sobre Nós, de Eugene Zamiatin
O livro Nós, de Eugene Zamiatin, é um romance antecipatório. Ele foi escrito em 1920 e conta a estória de pessoas vivendo em um futuro em que o governo é autoritário e em que alguém controla a vida de todos.
É antecipatório no sentido de tratar de temas recorrentes desde o início do século passado e por um certo clima (pode-se dizer "kafkiano") que percorreu a Europa nos anos que antecederam a Segunda Grande Guerra.
Algumas frases do livro são bastante eloqüentes, como: "Não existe uma revolução definitiva, as revoluções devem ser infinitas. Uma revolução final é para crianças... elas temem o infinito e é importante que durmam tranqüilas à noite." Ou: "Não quero que alguém queira por mim. Quero querer por mim mesma." Ou ainda: "Derrubaremos todas as paredes para deixar a aragem renovadora soprar livremente de um extremo a outro da Terra."
Alguns elementos de Nós inspiraram, entre outros, Aldous Huxley em Admirável mundo novo e George Orwell em 1984. As personagens têm horas marcadas para empreenderem esforços de procriação, em contatos extremamente impessoais. E em 1984 ficou famoso um trecho em que a personagem principal mantém relações sexuais com uma moça, e o faz executando um ato político.
Em 1984 vivem mercê de um Grande Irmão, no caso de Nós um Benfeitor, sempre presente. Em Nós os prédios são transparentes, e os moradores têm permissão de fechar cortinas apenas durante os encontros íntimos. Em 1984 existem as telas de vídeo.
Em Nós, o governo, o Estado Uno, como o denominam, se refere aos mortos na revolução como "números" perdidos, já que as pessoas não recebem nomes, mas números. Os personagens principais da estória são D-503, I-330, U, O-90.
A estória consiste em uma revolução sendo armada e deflagrada. O cotidiano e as causas da revolução emergem facilmente da narrativa. A personagem principal descobre-se a certa altura doente, e sua doença consiste no nascimento de uma alma.
Mas os homens do Benfeitor descobrem uma maneira de curar essa doença, em princípio tida como incurável. E extirpam-lhe a imaginação, a mutilação constituindo-se em uma cura para a humanidade e para a individualidade.
As personagens, que à primeira vista são lógicas e impessoais, talvez pela forma como se relacionam, na verdade constituem-se em ricas combinações de sentimentos humanos. D-503 é um matemático que não resiste aos seus mais profundos anseios e escreve a estória à qual nos referimos. O-90 é doce e meiga, e é o estopim para a detonação da alma de D-503.
O final é quase folhetinesco, mas não perde seu valor por ser um clássico. O herói é aparentemente vencido, tendo sido reduzido a um imbecil. Mas a muralha que circunda a cidade fora vencida e sua amante, grávida, conseguira fugir.
Ler esse livro pode parecer por vezes como assistir o filme metrópolis, de Fritz Lang, depois de se ter assistido Blade Runner, de Ridley Scott. Mas, mesmo um tanto envelhecido, vale pelas antecipações. É como ouvir obras de Beethoven e seus contemporâneos e encontrar as origens de vários elementos básicos das trilhas sonoras de hoje em dia.
Nós, de Eugene Zamiatin, está citado entre os 100 melhores romances do século XX.
Veja a lista:
1. Ulisses (1922) — James Joyce
2. Em Busca do Tempo Perdido (1913—27) — Marcel Proust
3. O Processo — Franz Kafka
4. Doutor Fausto (1947) — Thomas Mann
5. Grande Sertão: Veredas (1956) — Guimarães Rosa
6. O Castelo (1926) — Franz Kafka
7. A Montanha Mágica (1924) — Thomas Mann
8. O Som e a Fúria (1929) — William Faulkner
9. O Homem sem Qualidades (1930—43) — Robert Musil
10. Finnegans Wake (1939) — James Joyce
11. A Morte de Vírgilio (1945) — Hermann Broch
12. Coração das Trevas (1902) — Joseph Conrad
13. O Estrangeiro (1942) — Albert Camus
14. O Inominável (1953) — Samuel Beckett
15. Cem Anos de Solidão (1967) — Gabriel Garcia Márquez
16. Admirável Mundo Novo (1932) — Aldous Huxley
17. Mrs. Dalloway (1925) — Virgínia Woolf
18. Ao Farol (1927) — Virgínia Woolf
19. Os Embaixadores (1903) — Henry James
20. A Consciência de Zeno (1923) — Italo Svevo
21. Lolita (1958) — Vladimir Nabokov
22. Paraíso (1960) — José Lezama Lima
23. O Leopardo (1958) — Tomaso di Lampedusa
24. 1984 (1949) — George Orwell
25. A Naúsea (1938) — Jean—Paul Sartre
26. O Quarteto de Alexandria (1957—1960) — Lawrence Durrell
27. Os Moedeiros Falsos (1925) — André Gide
28. Malone Morre (1951) — Samuel Beckett
29. O Deserto de Tártaros (1940) — Dino Buzzati
30. Lord Jim (1900) — Joseph Conrad
31. Orlando (1928) — Virginia Woolf
32. A Peste (1947) — Albert Camus
33. O Grande Gatsby (1925) — Scott Fitzgerald
34. O Tambor (1959) — Günter Grass
35. Pedro Páramo (1955) — Juan Rulfo
36. Viagem ao Fim da Noite (1932) — Louis—Ferdinand Céline
37. Berlin Alexanderplatz (1929) — Alfred Döblin
38. Doutor Jivago (1957) — Boris Pasternak
39. Molloy (1951) — Samuel Beckett
40. A Condição Humana (1933) — André Malraux
41. O Jogo da Amarelinha (1963) — Julio Cortázar
42. Retrato do Artista quando Jovem (1917) — James Joyce
43. A Cidade e as Serras (1901) — Eça de Queirós
44. Aquela Confusão Louca da Via merulana (1957) — Carlo Emilio Gadda
45. As Vinhas da Ira (1939) — John Steinbeck
46. Auto de Fé (1935) — Elias Canetti
47. À Sombra do Vulcão (1947) — Malcolm Lowry
48. O Visconde Partido ao meio (1952) — Italo Calvino
49. Macunaíma (1928) — Mário de Andrade
50. O Bosque das Ilusões Perdidas (1913) — Alain Fournier
51. Morte a Crédito (1936) — Louis—Ferdinand Céline
52. O Amante de Lady Chatterley (1928) — D.H. Lawrence
53. O Século das Luzes (1962) — Alejo Carpentier
54. Uma Tragédia Americana (1925) — Theodore Dreiser
55. América (1927) — Franz Kafka
56. Fontamara (1930) — Ignazio Silone
57. Luz em Agosto (1932) — William Faulkner
58. Nostromo (1904) — Joseph Conrad
59. A Vida — Modo de Usar (1978) — Georges Perec
60. José e Seus Irmãos (1933—1943) — Thomas Mann
61. Os Thibault (1921—1940) — Roger Martin du Gard
62. Cidades Invisíveis (1972) — Italo Calvino
63. Paralelo 42 (1930) — John dos Passos
64.As memórias de Adriano (1951) — Marguerite Yourcenar
65. Passagem para a Índia (1924) — E.M. Forster
66. Trópico de Câncer (1934) — Henry Miller
67. Enquanto Agonizo (1930) — William Faulkner
68. As Asas da Pomba (1902) — Henry James
69. O Jovem Törless (1906) — Robert Musil
70. A Modificação (1957) — Michel Butor
71. A Colméia (1951) — Camilo José Cela
72. A Estrada de Flandres (1960) — Claude Simon
73. A Sangue Frio (1966) — Truman Capote
74. A Laranja mecânica (1962) — Anthony Burgess
75. O Apanhador no Campo de Centeio (1951) — J.D. Salinger
76. Cavalaria Vermelha (1926) — Isaac Babel
77. Jean Christophe (1904—12) — Romain Rolland
78. Complexo de Portnoy (1969) — Philip Roth
79. Nós (1924) — Evgueni Ivanovitch Zamiatin
80. O Ciúme (1957) — Allain Robbe—Grillet
81. O Imoralista (1902) — André Gide
82. O mestre e a Margarida (1940) — Mikhail Afanasevitch
83. O Senhor Presidente (1946) — Miguel Ángel Asturias
84. O Lobo da Estepe (1927) — Herman Hesse
85. Os Cadernos de Malte Laurids Bridge (1910) — Rainer Maria Rilke
86. Satã em Gorai (1934) — Isaac B. Singer
87. Zazie no metrô (1959) — Raymond Queneau
88. Revolução dos Bichos (1945) — George Orwell
89. O Anão (1944) — Pär Lagerkvist
90. A Tigela Dourada (1904) — Henry James
91. Santuário (1931) — William Faulkner
92. A Morte de Artemio Crus (1962) — Carlos Fuentes
93. Don Segundo Sombra (1926) — Ricardo Güiraldes
94. A Invenção de Morel (1940) — Adolfo Bioy Casares
95. Absalão, Absalão (1936) — William Faulkner
96. Fogo Pálido (1962) — Vladimir Nabokov
97. Herzog (1964) — Saul Bellow
98. Memorial do Convento (1982) — José Saramago
99. Judeus sem Dinheiro (1930) — Michael Gold
100. Os Cus de Judas (1980) — Antonio Lobo Antunes